por Márcia Rocha para revista PODER
Foi a endrocrinologista Claudia Cozer que tirou o marido da roda-viva de trabalho em que ele estava. Não que o cardiologista Roberto Kalil Filho trabalhe menos. “Ela ficou tanto no meu pé que, agora, duas sextas-feiras por mês saio do hospital por volta de meia-noite e viajo para uma casa que temos perto de São Paulo. Volto domingo na hora do almoço e vou direto para o hospital”, conta.
Claudia também conseguiu que o marido começasse a praticar exercícios com regularidade – por isso, entenda-se caminhar na esteira três vezes por semana e fazer aulas de Pilates uma vez por semana. Uma vitória e tanto, já que o doutor Kalil é uma verdadeira máquina de trabalhar. Por volta das 7h30 da manhã, já está a postos no Instituto do Coração (InCor), onde trabalha desde a década de 1980 – atualmente, é professor titular de Cardiologia da Faculdade de Medicina da USP, presidente da comissão de ensino, da comissão científica e diretor da divisão clínica, além de vice-presidente do conselho diretor da instituição. De lá, segue direto para o Hospital Sírio-Libanês a fim de visitar os pacientes internados. Depois, faz um almoço rápido – geralmente no restaurante do hospital mesmo – e atravessa a rua para atender em seu consultório. Sai por volta das 22h30 e volta ao Sírio, onde fica até meia noite. Entre seus pacientes estão a presidente Dilma Rousseff, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e José Sarney, só para citar alguns figurões da política nacional. Ele também atende a outros famosos, como Roberto Carlos e Gilberto Gil. A todos, dispensa o mesmo tratamento. “São poderosos fora do consultório. Aqui dentro são apenas pacientes e estão sob minha responsabilidade”, diz.
Kalil também é consultor do programa matinal Bem Estar, da Rede Globo, desde a estreia, há dois anos. Lá, alerta a população sobre os riscos das doenças cardiovasculares – pacote que inclui doenças dos vasos do coração e do cérebro, angina – o termo médico para dor no peito – e acidentes vasculares cerebrais (AVCs), os derrames. Ele também está escrevendo um livro sobre cardiologia com um especialista de renome mundial, Valentin Fuster, espanhol que dirige a área de cardiologia do Mount Sinai Medical Center, em Nova York. O lançamento está previsto para o ano que vem.
Nesta conversa com PODER, entre ligações para duas de suas oito assistentes a fim de monitorar pacientes, o médico fala sobre o impacto das doenças cardiovasculares na população mundial, o risco para as mulheres, a impotência diante da morte e sua relação com a medicina, entre outros assuntos.
PODER: O que dizem as estatísticas sobre as doenças cardiovasculares?
Roberto Kalil Filho: As doenças cardiovasculares (DCVs) são a maior causa de morte no mundo, seguidas de longe por alguns tipos de câncer.Projeções da Organização Mundial da Saúde (OMS) indicam que elas serão a maior causa de mortalidade nos próximos 20 anos. As DCVs estão relacionadas a fatores hereditários, que são importantíssimos, e também a fatores de risco, como hipertensão, colesterol alto, diabetes, obesidade, tabagismo, uso de drogas e o estresse do dia a dia. É uma doença típica de países desenvolvidos. A poluição, por exemplo, aumenta em 2,5 vezes as chances de alguém ter problemas cardíacos. No campo das drogas, o consumo de cocaína pode elevar esse risco 25 vezes.
PODER: As mulheres infartam mais?
RKF: Há um mito de que a mulher não infarta, o que não é verdade. A incidência aumenta depois dos 55, 60 anos, quando ela entra na menopausa e perde a proteção do estrogênio sobre a parede dos vasos sanguíneos. Aí, vem outra questão importante: é preciso fazer reposição hormonal? Isso é uma grande discussão, porque não são todas as mulheres que precisam fazer reposição hormonal para prevenir doenças cardiovasculares. Porque a reposição hormonal não protege do jeito que se achava. O maior problema é que, dos 40 aos 60 anos, as mulheres não se cuidam. Elas costumam fazer mamografia e papanicolau uma vez por ano. Mas quantas avaliações cardiológicas fazem por ano? Isso quer dizer que uma mulher chega a passar 20 anos sem fazer check-up cardiológico. Ela não se preocupa muito com os fatores de risco e, quando tem a doença cardíaca, aos 60 anos, o quadro está bem mais grave, porque ela não se cuidou. E nas mulheres jovens ainda há outros problemas a considerar, como o tabagismo, uso de anticoncepcionais, não fazer exercícios, estar acima do peso… Elas também correm risco de infartar, principalmente se tiverem fatores hereditários associados. As mulheres devem fazer avaliação cardiológica como os homens. Mas não têm esse hábito, porque existe o mito que mulher não infarta.
PODER: Depois que infartam, as mulheres morrem mais do que os homens?
RKF: Como ela não se cuida, muitas vezes a incidência de morte é um pouco maior. Mas não é isso o que importa: o fundamental é que a mulher infarta da mesma maneira que o homem. Já que as mulheres querem igualdade em tudo, têm igualdade também na doen-ça coronária. Só que isso acontece quando elas ficam mais velhas – aí, elas infartam tanto quanto os homens.
PODER: A partir de que idade homens e mulheres devem fazer exames preventivos para problemas cardiovasculares?
RKF: O melhor é consultar um clínico geral e ele faz a programação baseada nos fatores de risco. Se você vem ao meu consultório e não tem fatores genéticos associados, não fuma, não bebe e faz exercícios com regularidade, eu, provavelmente, vou pedir um teste de esforço a cada dois anos. Para homens e mulheres, o mais importante é procurar orientação médica – sempre.
PODER: Poderosos e pessoas que têm vida pública correm mais risco de ter problemas do coração?
RKF: As pessoas que vivem expostas publicamente não são diferentes de grandes executivos. E, como a doença coronária está diretamente relacionada ao estresse, essas pessoas correm mais risco, sim. Porque não costumam levar uma vida regrada, não fazem exercícios físicos com regularidade.
PODER: Depressão tem a ver com o aumento de problemas cardiovasculares?
RKF: Tem, sim. Existem estudos comprovando essa relação. Entre outros fatores, quem tem depressão é mais sujeito a estresse, o que predispõe aos problemas cardiovasculares. Além da depressão, há outros fatores de risco não cardíacos superimportantes, como, por exemplo, o sono. Ele é fundamental sob vários aspectos – desde pessoas muito agitadas que costumam dormir mal à apneia do sono (obstrução das vias respiratórias que inibe a passagem de ar por alguns segundos várias vezes durante a noite), que aumenta o risco de obesidade e hipertensão. A pessoa não descansa, é um estresse constante. A apneia do sono aumenta o risco de doença cardíaca, sim. Assim como a depressão.
PODER: Mas com a evolução da medicina, por que a taxa de morte por doenças cardivasculares ainda é tão alta?
RKF: A cardiologia é uma especialidade que evoluiu bastante e a brasileira não deixa a desejar para nenhuma do mundo – aliás, a medicina brasileira como um todo. Os médicos são muito preparados, competentes, temos centros de referência mundial.
PODER: Apesar disso, por que as pessoas estão morrendo e vão continuar morrendo?
RKF: Há vários estudos mostrando que o grande problema é a falta de prevenção. Quando o paciente infarta, ele tem a mais alta tecnologia para tratá-lo. Tanto que o risco de alguém morrer de infarto hoje é menor do que há dez anos. Mas por que as pessoas estão infartando mais? Por falta de prevenção. Por mais que haja campanhas das sociedades médicas, dos governos, a população não se conscientiza. E isso acontece no mundo inteiro.
PODER: Quais são os sintomas de que alguma coisa não vai bem com o coração?
RKF: O grande problema da doença coronária é que 50% das pessoas apresentam dor intensa no peito, no braço esquerdo, suor frio – chegam no pronto-socorro como se estivessem com uma placa “estou infartando”. Acontece que a doença cardiovascular é traiçoeira, insidiosa. Para os outros 50%, ela pode aparecer como uma dor leve no braço, nas costas, no estômago, pode ser algo parecido com angústia, que aperta o peito e sobe para o pescoço, uma dor que deixa a mandíbula dolorida ou outro sintoma inespecífico. As pessoas acabam morrendo porque, como a dor vem e passa espontaneamente, não procuram atendimento médico. Ou a pessoa sente dor de estômago, toma um remédio e a dor passa. Ou tem dor de dente e vai ao dentista, quando, na verdade, o problema é no coração.
PODER: O senhor se considera duro com seus pacientes?
RKF: Extremamente. O paciente é poderoso daqui para fora. A partir do momento em que entra por aquela porta, está sob minha responsabilidade. Então, sou extremamente rigoroso e realista, explico que ele tem de se cuidar, sou bem duro. Não fico dourando a pílula. Minha consulta não é um bate-papo, é uma consulta técnica.
PODER: O senhor se sente poderoso?
RKF: Poderoso, não. Sou sério.
PODER: E quando se sente impotente?
RKF: Quando você perde o paciente, se sente completamente impotente, incapaz, um lixo. Isso acontece até hoje, mesmo com toda a minha experiência. Para um médico, é muito difícil lidar com a morte do paciente. Não digo que dê a ideia de falha, porque um profissional sério faz tudo pelo paciente, mas dá uma ideia de incapacidade mesmo, de “eu não pude com isso”.
PODER: O que tira o senhor do sério?
RKF: Com a minha equipe, o que mais me irrita é mentira, enrolação. Por exemplo: eu ligo para uma das minhas assistentes e ela diz que está na UTI e não está. É uma bobagem, mas me irrita. Incompetência também me tira do sério. Outra coisa é quando minhas assistentes não atendem ao celular no primeiro toque – como agora, por exemplo (enquanto fala, está ligando para uma das assistentes). Eu atendo o celular no primeiro toque. Quando dá três toques e cai na caixa postal, fico transtornado! Também fico irritadíssimo quando uma secretária pergunta: “Vamos trabalhar no próximo feriado?”. Claro que sim! Natal, carnaval, isso não existe!
PODER: O senhor exige de seus assistentes a mesma dedicação pela carreira?
RKF: Sim, mas eles trabalham menos do que eu. Agora, têm de apanhar mesmo. Apanhei muito do doutor Pileggi (Fulvio Pileggi, diretor do InCor, tio de Kalil e de quem ele foi assistente), ele era muito duro. Essa geração de hoje é muito mais mole. Na minha época, a formação dos residentes era muito diferente, um esquema militar. Com o doutor Pileggi era 24 horas. Hoje, é tudo mais liberal. No InCor, impus um sistema rígido, porque é só assim que funciona. Tem de ter horário, responsabilidade, respeitar hierarquia, seguir protocolo – senão, não vai ser médico!
PODER: É verdade que o senhor não gosta de viajar?
RKF: É verdade, eu não gosto. Mas aprendi a descansar nos fins de semana. A Claudia me fez ver a importância disso. A vida inteira sempre vim ao hospital todos os dias. Nunca tive sábado, domingo, feriado. Mas a Claudia ficou tanto no meu pé que agora faço exercícios. Nos fins de semana, temos uma casa próxima a São Paulo. Então, duas sextas-feiras por mês, saio do consultório e vou para lá. No sábado, ando, faço exercício, descanso, durmo e, no domingo, volto para o hospital. É muito bom, até porque fico mais tempo com as minhas filhas, Rafaella e Isabella. Elas adoram!