Referência no cuidado da saúde feminina no país, a ginecologista e obstetra Albertina Duarte Takiuti é quem acolhe vítimas de abusos e violências no Hospital das Clínicas. Aqui, ela fala sobre autoestima, sexualidade, alegrias, frustrações, e faz um raio X de sua trajetória.
Por Carol Sganzerla para revista Joyce Pascowitch
Se tem alguém que entende tudo sobre as agruras e alegrias das brasileiras é a ginecologista e obstetra Albertina Duarte Takiuti. Há 40 anos, ela atende pacientes de todas as classes sociais, seja em sua clínica particular ou em sua sala no Hospital das Clínicas, em São Paulo, onde recebe mulheres e jovens em situação de vulnerabilidade, vítimas de violência, abusos, adolescentes grávidas. Albertina sempre batalhou por melhorias no atendimento médico e se envolveu na construção de políticas públicas visando ampliar o acesso ao atendimento médico no Brasil. Coordenadora do Programa Saúde do Adolescente da Secretaria Estadual da Saúde de São Paulo e chefe do ambulatório de ginecologia da Adolescência da USP, em 2005, foi apontada como uma das mil mulheres ao Prêmio Nobel da Paz. Aos 69 anos e com mais de 20 mil partos na bagagem, em duas décadas ela foi responsável por reduzir em 55% a gravidez na adolescência no país. Mais do que os números que comprovam a importância de Albertina é a maneira como ela acolhe essas mulheres, ouvindo suas histórias de vida, seus desejos e suas aflições. A seguir, ela conta como lida com os obstáculos impostos pela profissão, como foi ser uma cirurgiã no ambiente hospitalar e fala sobre autoestima, liberdade sexual, aborto e outros tabus que acompanham todas as trajetórias femininas.
J.P: Como você se interessou pela medicina?
ALBERTINA DUARTE: Nasci em Portugal, em uma aldeia chamada Monte Real, e gostava de ajudar uma tia que fazia curativos. Pedia para ver os partos, mas ela nunca me deixou participar. Não lembro de outra profissão que quisesse seguir. Quando viemos morar no Brasil, falava para minha mãe que ia ser médica e ela dizia: “Quem é imigrante e pobre não pode ser médica”. Eu respondia: “Sou pobre, mas sou inteligente”. Logo depois, meu irmão morreu em um acidente de cavalo. Ele tinha 3 anos e, eu, 7. Na hora, disse para ele: “Espera eu crescer, porque vou ser médica”. Meu compromisso com a medicina foi reforçado com a morte dele. Queria salvar a vida das pessoas.
J.P: Em que momento da trajetória seu caminho cruzou com o das mulheres?
AD: Meu pai trabalhava na construção e mudávamos muito de cidade no interior. E eu acabava sendo a pessoa que fazia os curativos dos velhinhos, cuidava das unhas encravadas. Como sempre fui adiantada na escola, comecei a dar aula particular com 14 anos, era uma forma de ganhar dinheiro. Aprendi a alfabetizar com o método Paulo Freire e foi assim que ensinei a minha mãe a ler. Com as aulas, ouvia as histórias das mulheres, de sobrevivência, da vinda do Nordeste para São Paulo. Isso me comovia muito.
J.P: Por quais dificuldades passou por ser uma médica mulher há 40 anos?
AD: Naquela época, não era habitual ver uma mulher cirurgiã, tinha muita discriminação. Eu já era professora, e acontecia de entrar num centro cirúrgico e a enfermeira se referir ao meu assistente ou ao médico homem e não a mim. Passei por isso muitas vezes. Nos primeiros anos de plantão, não existia banheiro feminino. E tinha o quarto dos médicos, mas não o das médicas. Em sete anos de plantão, dormi no quarto de descanso das enfermeiras, que eram 20, 30. Já os médicos tinham o seu espaço exclusivo, com todas as mordomias.
J.P: De que maneira você equilibrou a medicina e a maternidade?
AD: Muitas mulheres de projeção na área médica não tinham filhos ou não eram casadas. Eu queria muito ser mãe e isso aconteceu aos 28 anos. Foi difícil conciliar. Meu marido abriu mão da carreira universitária. Ele era dono de um hospital em Registro e o vendeu para ficar comigo. Eu tinha muito claro que a minha missão era ser professora do Hospital das Clínicas. “A mulher tem medo de não agradar. Ela carrega uma culpa que faz com que aguente situações de violência”
J.P: Quais são os maiores anseios das mulheres hoje?
AD: A mulher tem medo de não agradar. Ela carrega uma culpa e uma cobrança que a faz submissa, faz com que aguente situações de violência, que tenha medo de separar, de não aguentar uma relação tóxica, medo de dizer “eu não concordo”.
J.P: Nesses anos todos, você vê uma maior liberdade sexual?
AD: Sim. Perguntava para as mulheres no Hospital das Clínicas: “Como vai a sua libido?”. Muitas nem sabiam o que era libido. Em uma pesquisa sobre a sexualidade da mulher brasileira que fiz 30 anos atrás, entrevistamos camponesas, operárias e de nível social muito alto. E vimos que a questão do corpo era muito importante. A mulher operária se preocupava em ter saúde, a burguesa se sentia com vergonha e medo, mas já apontava a proposta de poder ser livre, de ter o direito de sua sexualidade ser reconhecida. Lembro de uma história em que uma operária queria ser a Angela Maria, porque podia ter quantos amores quisesse. Ela era livre. Então a mulher operária nos anos 1990 já dizia que queria ser livre. A mais privilegiada economicamente era muito preocupada nas ferramentas que teria para mudar o corpo e ficar mais bonita, a plástica como uma dádiva.
J.P: Como anda a autoestima da brasileira?
AD: Anda muito ruim. Talvez a política do corpo nunca tenha sido tão violenta como agora. O modelo apresentado segue sendo o da alta, loira, sem marcas, sem celulite e as mulheres ainda estão sendo internadas por distúrbios alimentares. Essa política do corpo machuca e essa desconstrução tem que acontecer. Na violência sexual e na violência doméstica, a primeira coisa que o abusador diz é: “Você não me agrada, não é nada para mim”. No ciclo da violência, ele a seduz, depois faz com que ela fique dependente e se põe como “o único que gosta de você, veja como você é feia”. A mulher vai ficando pequena, com medo da rejeição. Não ser desejada é a pior tragédia para uma mulher. Percebo isso também nas relações homoafetivas, não apenas nas heterossexuais.
JP: O aumento dos casos de violência contra a mulher têm relação com alguma mudança de comportamento da sociedade?
AD: Sempre existiu a violência. Agora, as mulheres falam que há mais de 20 anos estão em uma relação tóxica, que desde criança foram abusadas. A violência sempre existiu, só que as máscaras estão caindo. Eu não diria que aumentou, diria que está mais visível.
JP: Quais as consequência dos abusos na vida dessas mulheres?
AD: Vemos mulheres com mais dificuldade em engravidar, com fortes cólicas menstruais sem causa aparente, com dores no corpo. E ninguém sabe que na verdade elas sofreram esses abusos. O corpo sofre, o corpo chora. A violência existe e as consequências estão mais difundidas. Houve uma naturalização da violência e ela precisa ser desconstruída.
J.P: De que maneira você lida com as histórias difíceis?
AD: Tem muitos dias que não durmo, dias em que choro. Há muitos casos de violência, de estupro. Já fiz parto de uma menina de 10 anos. Esse dia foi muito marcante. Fiquei horas com ela. Já tinha acolhido menina de 2 anos vítima de abuso, voltei para casa muito mal depois de operá-la. A acompanhei durante 20 anos. Ela casou, teve muita dificuldade na relação sexual, dores no corpo porque essas marcas ficam para o resto da vida.
J.P: Na sua opinião, o aborto deve ser legalizado no Brasil?
AD: Acho que hoje devemos garantir o aborto legal nos casos previstos em lei: estupro, risco da mãe, fetos anencéfalos. Acho um retrocesso inimaginável a tentativa de impedir o procedimento como o do caso recente da menina de 10 anos, [que engravidou depois de ser abusada pelo tio]. A legalização do aborto em outras situações precisa de uma discussão mais ampla. E o aborto é legal economicamente para quem tem condições de pagar clandestinamente.
J.P: Em que momento da sua carreira a médica precisou ir para o divã?
AD: Quando comecei a trabalhar no plantão do Hospital das Clínicas e tive mais responsabilidades como médica. Achei que não ia dar conta. Era muita sobrecarregada, ser mãe, ser médica, querer uma carreira universitária. Tinha uma revolta grande dentro de mim. Queria mudar as coisas muito rápido. A terapia me ajudou a ter tolerância, a trabalhar com o coletivo, a reconhecer meus limites.
J.P: O que a medicina mais te ensinou?
AD: Uma coisa que aprendi é a doença da palavra. É uma marca para sempre, principalmente vinda de um profissional da saúde. As pessoas precisam ser acolhidas, esse é o grande segredo. Ouvir é fundamental e isso não está em nenhum protocolo. Quando você acolhe e ouve, faz um exercício de solidariedade e sororidade com a outra pessoa. Eu não me canso.