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O engenheiro Márcio Stancioli e a mulher, Eloísa Ballesteros||Créditos: Acervo do Jornal do Estado de MG

 

O engenheiro Márcio Stancioli e a mulher, Eloísa Ballesteros||Créditos: Acervo do Jornal do Estado de MG
O engenheiro Márcio Stancioli e a mulher, Eloísa Ballesteros||Créditos: Acervo do Jornal do Estado de MG

Assim ficou conhecido o caso da empresária mineira Eloísa Ballesteros, assassinada com cinco tiros pelo marido, o engenheiro Márcio Stancioli, enquanto dormia. Transtornado de ciúmes, ele atirou nela pelas costas

Por Paulo Sampaio e Sabrina Abreu para a revista Joyce Pascowitch de abril

1973 – quando o sinal fechou na avenida Pedro Álvares Cabral, zona sul de Belo Horizonte, o jovem engenheiro Márcio Stancioli aproveitou para investir na morena clara que estava ao volante do carro ao lado. Depois de fazer um certo charme, ela acabou concordando em parar para conversar. Disse seu nome, Eloísa, e o papo evoluiu até o ponto de os dois combinarem de ir ao restaurante Chez Bastião, ponto de encontro da juventude burguesa de BH, na Savassi, bairro nobre da cidade. Em pouco tempo, ele soube que a garota pertencia à família Ballesteros, uma das mais conhecidas da cidade, e era dona da grife de roupas masculinas Toulon. Tinha o perfil de uma moça ativa, exuberante, articulada. Márcio, por sua vez, contou a ela que era filho de médico e havia se formado em engenharia mecânica. Baixo, calvo, sisudo, não se podia dizer que fosse um sujeito atraente. Mas os dois engataram namoro. Poucos meses depois, apaixonados, decolavam para uma temporada de 40 dias na Europa, viagem que a família de Eloísa não sabia que ela estava fazendo na companhia dele. Em maio do ano seguinte, no dia 17, os dois se casaram. Ambos tinham a mesma idade, 26.

Logo em seguida, o casal partiu para Nova York, onde Márcio fez uma pós-graduação na Columbia University; ela, embora não precisasse, trabalhou como baby-sitter. Na volta, ele assumiu a chefia do departamento de planejamento financeiro da Usimec, subsidiária do grupo siderúrgico Usiminas, e construiu uma casa na avenida Portugal, na Pampulha, um dos bairros mais exclusivos da cidade. Tiveram dois filhos – em 1976 e 1979. Lourdes, a babá das crianças, definia Eloísa como uma mulher “tranquila, alegre, risonha, espontânea”, e Márcio como um homem “calado, calmo e muito amoroso”. “Ele era louco por ela”, afirmou Lourdes. “Ela correspondia, mas não era tão carinhosa, era mais seca.” Aos poucos, a diferença de expectativa de um em relação ao outro os distanciou, e isso levou Márcio a achar que a mulher o estava traindo.

Enquanto ela mantinha a rotina, indo à ginástica pela manhã, jogando tênis no Pampulha Iate Clube e trabalhando à tarde, ele alimentava desconfianças sobre sua fidelidade. Certa vez, quando Eloísa voltou do Rio com um problema íntimo e disse que estava com corrimento, ele suspeitou que ela tivesse contraído uma doença venérea. Com o tempo, passou a verificar o hodômetro do carro dela, para saber se a contagem dos quilômetros coincidia com as distâncias percorridas habitualmente. Um dia, constatou que o instrumento aferia muito mais do que o suficiente para ir ao trabalho e voltar. Ela garantiu que não havia rodado mais do que aquilo. Em setembro de 1979, ao dar uma incerta na academia onde ela treinava, Márcio não a encontrou. Perguntou a sua irmã, Maria Luiza, que frequentava o mesmo lugar, se a tinha visto. Maria Luiza disse que não. Mais tarde, Eloísa chegou em casa vestindo um traje esportivo e contou que estava na academia. “Foi a primeira mentira comprovada da minha mulher”, revelou ele, mais tarde.

ESPIÃO DE MULHER

A obsessão de Márcio só crescia. Até que, no dia 25 de julho de 1980, em uma de suas incursões para espionar a mulher, aconteceu o que ele considerou uma prova cabal da traição dela. Na manhã daquele dia, ao retornar de uma viagem ao Rio e não encontrar Eloísa, resolveu ir atrás  dela pela cidade. Primeiro, passou na loja. Ninguém sabia dela. Em seguida, entrou em todos os restaurantes que ela costumava frequentar, mas não a achou em nenhum. Decidiu então ir ao BH Shopping, onde ficava a filial da loja. De acordo com o que relatou depois, quando entrou no estacionamento ele a viu dentro de um carro, acompanhada de um homem. Chegou perto, constatou que o “amante” era um antigo namorado dela, o empresário Márcio Augusto Ferreira. Ao perceber a aproximação do marido – ainda de acordo com o que ele contou –, Eloísa teria saído correndo do carro, para fugir do flagrante. Na hora, apesar de já estar meio alto, vindo de um bar, Márcio não abordou Ferreira. Disse que foi para casa, ligou a TV e acabou adormecendo. “Acordei assustado com gritos. Peguei meu revólver Taurus 38, dei uma volta na casa e vi que quem estava fazendo barulho era Eloísa, que xingava porque o volume da televisão estava alto. Nós discutimos, ela me deixou falando sozinho e voltou para o quarto. Fui atrás dela, enfiei o pé na porta, entrei no escuro e descarreguei as cinco balas que havia no revólver”, contou ele no tribunal, ao depor sobre as circunstâncias que o levaram a matar a mulher. Os peritos encarregados do caso afirmaram que haviam sido disparados sete tiros, e essa diferença entre a investigação deles e o que Márcio afirmava nunca foi elucidada. O assassino disse que jogou a arma na Lagoa da Pampulha. Enquanto configuração de tragédia, o número de disparos não fazia muita diferença, já que Eloísa estava morta. Rapidamente, o caso se transformou em um escândalo na cidade. Todo mundo falava do “crime da mansão da Pampulha”, como ficou conhecido, referência à casa de 8 milhões de cruzeiros onde tudo aconteceu.

O primeiro a prestar depoimento à delegada plantonista Jane Maluf foi o vigia Lúcio de Fátima Damasceno, 24 anos, que acumulava outras funções: abria o portão para os carros, limpava a piscina e cuidava do jardim. De acordo com Damasceno, Márcio tinha o costume de chegar em casa às 18 horas, mas, no dia do crime, embicou na garagem às 19 horas. Eloísa, minutos depois. “Mais ou menos à 1h30, eu ouvi o som de tiros, mas pensei que vinha do galpão que fica vizinho à casa”, contou o vigia. “Então, o seu Márcio saiu da garagem com o Passat dele. Quando me aproximei, ele me mandou fechar o portão. Não notei nenhuma mudança de comportamento, ele não me pareceu nervoso, era o mesmo homem de sempre.” Ainda foram inquiridas na delegacia de homicídios a arrumadeira, a cozinheira e a babá. Foi Lourdes que encontrou o corpo. Nos corredores da DH corriam rumores de que o casal havia consultado um advogado no começo do mês para dar início ao processo de desquite. A arrumadeira Clotilde Romão afirmou que o casal dormia junto, mas Lourdes lembrou que alguns meses antes Eloísa “mudou-se” para o quarto das crianças e, depois, para o do pai, Eloy, que morava com o casal – mas não estava na casa no dia do crime.

VINHO, VODCA E GUIMBAS

A arrumadeira contou que na manhã do dia 26 encontrou restos de uma macarronada que o patrão preparara na madrugada, pratos e talheres usados, três garrafas de vinho vazias, uma de vodca e nove tocos de cigarro: “Tive curiosidade de contar”, disse. Márcio só se apresentou à Justiça na quinta-feira, 31 de julho. Em seu depoimento, que durou 14 horas, ele se fez acompanhar de um psiquiatra. Ao longo desse tempo, caiu em prantos pelo menos duas vezes. O delegado Antônio Orfeu Braúna, que assumiu o caso, elogiou a escolha do advogado de defesa, Ariosvaldo Campos Pires, dizendo: “É um dos profissionais mais brilhantes do estado”. Ariosvaldo foi o criador da tese da “legítima defesa da honra”, que ele já havia usado com sucesso no caso do empreiteiro Roberto Lobato, acusado de matar a ex-mulher, Jô. Segundo o delegado Braúna, o advogado pretendia repetir a estratégia com Márcio e “transformar o crime em mais uma ‘tragédia Ângela Diniz’”: “Mas isso não vai acontecer”, garantiu. (Braúna referia-se ao caso da socialite mineira morta pelo playboy paulista Doca Street. O advogado Evandro Lins e Silva, que defendeu Doca, alegou que seu cliente não suportou as humilhações impostas pelo comportamento  libertino de Angela e acabou por matá-la.) Durante o julgamento de Márcio Stancioli, o promotor Edmundo Teixeira da Silva se referiu ao réu como “o Doca Street do subúrbio”.

Silva apresentou a denúncia em 5 de agosto de 1980, dez dias após o crime. Em sua acusação, afirmava que a mente de Márcio estava “transtornada por um ciúme invencível, que o levou a vigiar e martirizar a mulher, com desconfianças imaginárias”. O promotor acusava o réu de homicídio triplamente qualificado, por motivo fútil, sem possibilitar a defesa da vítima e contra cônjuge. Pedia uma pena entre 12 e 30 anos de prisão. Márcio Stancioli foi a júri popular em 12 de maio de 1983. Durante as 16 horas que durou o julgamento, o amplo salão no térreo do Fórum Lafayette ficou lotado de estudantes de direito, advogados, curiosos e jornalistas de todo o país. Em seu depoimento, Márcio disse que quando buscou saber sobre as idas da mulher a São Paulo e o relacionamento dela com Márcio Augusto Ferreira perdeu a cabeça “não vendo mais nada”. A defesa apelou para “os ventos de libertinagem de nossos dias”. “Família, lar, filhos, fidelidade: em que pese a crise moral, são conceitos a ser observados pelos jurados”, invocou Ariosvaldo Campos Pires. Sem temer a reação das feministas, que se manifestavam em peso dentro e fora do plenário, alegou que “Márcio trabalhava todos os dias e chegava às 18 horas, pois seus filhos estavam abandonados, já que Eloísa só pensava em ser empresária”; disse ainda que “a mulher se casa para o lar e os filhos: Eloísa casou-se depois de intensa vida social, e era experiente, enquanto Márcio era inexperiente”. Nesse momento, arrancou ruidosas risadas das mulheres que acompanhavam o julgamento, levando o juiz ameaçar esvaziar o tribunal. O advogado persistiu na provocação: “Elas não sabem nada”.

FÚRIA FEMINISTA

A covardia do crime já seria suficiente para acirrar os ânimos das mulheres presentes.  (A essa altura, já se sabia que o relato de Márcio sobre a forma como cometeu o crime não correspondia à verdade. De acordo com os peritos, Eloísa não estava acordada, mas dormindo, de bruços, e foi baleada pelas costas.) Para piorar sua revolta, as feministas, que não contavam na época com o respaldo legal que dispõem hoje para se defender, tiveram de engolir o comentário infeliz de um delegado que, uma semana depois do crime, dissera que Márcio “poderia ter dado uns tapas na mulher, em vez de tiros”. Defesa e promotoria alimentaram fartamente seus egos no circo montado durante o julgamento. Na sua vez de falar, o promotor Teixeira da Silva aludiu a Caim e Abel e lembrou que “a inveja sempre existiu no universo”. “Eloísa brilhava mais que Stancioli, sendo grande empresária da alta moda, enquanto o réu, que veio ao mundo para ganhar sempre, sentiu-se ofuscado pelo brilho da esposa e decidiu matá-la por vingança”. Ele se referiu ao réu como “mafioso” 30 vezes. Ao mostrar as fotos do cadáver aos jurados e, depois, ao próprio Márcio, brandiu: “Malandro, porca miséria, olha a foto dela de camisola. Era pudica até em casa. Como podia ter outro? E o mafioso quer desmentir”. A plateia estava tão hipnotizada com as atuações que ninguém deixou a sala – nem mesmo para acompanhar o jogo Santos e Atlético – quando o juiz pediu um intervalo às 21 horas.

Estranhamente, o réu foi enquadrado por homicídio culposo (cometido sem intenção deliberada de matar) e não doloso (com intenção clara). O júri decidiu pela condenação por 4 votos a 3. O juiz fixou a pena em dois anos, mas concedeu ao réu, por ser primário e ter bons antecedentes, suspensão condicional da pena. Durante a leitura da sentença, as mulheres gritavam “chega!”, enquanto vários homens aplaudiram. Uma jurada rasgou sua carteira e disse que nunca mais voltaria ao tribunal. O delegado Braúna também se surpreendeu com a decisão da Justiça: “Respeito o veredicto, mas nem por isso acho que foi correto”. O promotor recorreu da sentença e conseguiu levar o engenheiro a novo julgamento, em 25 de março de 1988. A pena foi aumentada para seis anos. Um amigo do réu, mineirão do  tipo machista, comentou sorumbático: “O erro do Marcinho foi ter acreditado no amor”.

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