Nossa homenagem à eterna Rogéria com reportagem da J.P sobre sua “fantasiosa vida real”

Uma notícia triste veio à tona nessa segunda-feira, pegando a todos de surpresa. Morreu Rogéria, aos 74 anos, vítima de choque séptico. Ela estava internada no Hospital Unimed-Rio. Segundo a unidade hospitalar, a atriz estava internada desde 8 de agosto por causa de um quadro de infecção urinária.

O corpo de Rogéria será velado nesta terça-feira a partir das 11h no Teatro João Caetano, no Centro do Rio. Inicialmente, o velório será fechado apenas para pessoas próximas e a família. De 13h às 18h será aberto ao público. O enterro acontece nesta quarta-feira na cidade de Cantagalo, na Região Serrana do Rio, onde ela nasceu.

No dia 25 de agosto, Rogéria chegou a receber alta da Unidade de Tratamento Intensivo do Hospital (UTI) e foi levada para o quarto. Em julho, a atriz passou duas semanas internada em uma clínica em Laranjeiras, por conta de uma infecção generalizada. Houve uma piora em seu quadro depois de uma crise de convulsão.

Glamurama homenageia Rogéria relembrando reportagem seguida de galeria de foto feita com ela na edição de fevereiro de 2013 da Revista JP, na qual o ícone lembra detalhes de sua vida cheia de fantasia.

Às vésperas de completar 70 anos, o travesti mais famoso do Brasil lembra de alguns detalhes de sua vida cheia de fantasia. Nascido Astolfo Barroso Pinto e rebatizado Rogéria nos anos 60, ele foi maquiador, apresentador de TV, jurado do Chacrinha, ator premiado de teatro, namorado de policial do Esquadrão da Morte e, ultimamente, está treinando Taís Araújo para fazer uma vedete no cinema. Na matéria, ele conta como conseguiu sobreviver à sua própria invenção. “Adoro ser como eu sou. Nunca passou pela minha cabeça mudar de sexo”, diz Rogéria.

POR PAULO SAMPAIO FOTOS GUSTAVO PELLIZZON
Num impulso repentino, o entrevistado levanta do sofá, põe um fundo musical espetaculoso no toca-CD, começa a rodopiar com os braços levantados e faz a  “a abertura do show”: “Senhoras e Senhores, Pour Vous Ce Soir, Rogéria em cena!” A plenos pulmões, emenda com o vozeirão: “Eu sou o sambaaaa, a voz do morro sou eu mesmo sim, senhor/Quero mostrar ao mundo que tenho valor/Eu sou o rei dos terreiros/Eu sou o sambaaaa, Oi!” Está de sandálias Havaianas cor-de-rosa.
O palco é a sala escura da quitinete dividida em dois cômodos de Astolfo Barroso Pinto, no Leme, Rio de Janeiro, e a conversa já dura quase três horas. Astolfo é o nome de batismo de Rogéria, 69 anos, travesti incensado no fim dos anos 1960, quando a repressão no Brasil estava apenas começando e pouco se falava na versão “comum de dois” do ser humano. Esse parece ser o principal diferencial de Rogéria: ter virado um híbrido que as famílias de classe média acolheram com a naturalidade de quem recebe em casa uma vizinha falastrona.
Muito antes de tornar-se figura imprescindível nos bailes de carnaval cariocas dos anos 1980, fazendo entrevistas impagáveis para a TV, Rogéria já era uma personalidade consagrada. E não apenas pelos espetáculos gays, incluindo as produções de Carlos Machado e também de similares na Europa, na África e no Oriente. Ela foi jurada do programa do Chacrinha, um hit dos 1970 e 1980, interpretou a si mesma no cinema e fez teatro. Em 1976, em parceria com Agildo Ribeiro, montou a hilariante Alta Rotatividade. Três anos mais tarde, recebeu o prestigioso Prêmio Mambembe por sua atuação no espetáculo O Desembestado, em que interpretava uma rezadeira casada com Grande Otelo. Com o show Gay Fantasy, de 1982, dirigido por Bibi Ferreira, ela ficou um ano em cartaz. Recentemente, participou da montagem brasileira de 7, O Musical, produzida por  Charles Möeller e Cláudio Botelho. E cantou com Chico Caruso e Miele no divertido Homenagem à Trois. Conhecido por atuar ou dirigir divas como Marília Pêra, Elis Regina, Betty Faria e Sandra Bréa, Miele elogia o bom humor constante da colega de Homenagem. “Além do talento extraordinário, da presença em cena, Rogéria é alto-astral full time. Ela diz que a vantagem dela sobre as outras é que ela não tem TPM.”
 Nenhum outro “ator transformista” – a definição é da própria – tinha conseguido tal penetração (sem trocadilhos) no showbiz nacional. Mesmo Roberta Close, que se tornou muito famosa bem depois, não tinha o carisma de Rogéria. Roberta era decantada por uma beleza “de mulher mesmo”, posou para a revista Playboy e virou letra de música de Erasmo Carlos. Não se considerava homem. Acabou fazendo cirurgia de mudança de sexo, casou-se com um suíço e mudou-se para lá. “Adoro ser como eu sou. Nunca passou pela minha cabeça mudar de sexo”, diz Rogéria, que, mesmo mantendo o pênis, abalou as convicções de muitos machões empedernidos, incluindo o policial-estrela Mariel Mariscot, com quem teve um caso comentadíssimo. Para dar uma ideia, a atriz Darlene Glória, estrela do cult Toda Nudez Será Castigada e conhecida pelo estilão Living La Vida Loca,  namorou Mariscot bem depois de Rogéria…
Catoliquérrimo
Nascido em Cantagalo, a 200 quilômetros do Rio, Astolfinho tinha dois irmãos e foi criado pela mãe e os avós na mais asseverada fé cristã. “Eu vim ao mundo na terra do Euclides da Cunha, o homem mais macho do Brasil. Na hora do parto, chamaram o padre porque mamãe corria perigo de morte. Moral da história: sobrevivemos nós duas.” A mãe morreu no ano passado, aos 91: “Ela nunca se envergonhou de ter um filho gay, isso é uma glória!” Com o pai, Rogéria não conviveu. Segundo ela, “é Deus, Jesus Cristo, meu avô”. Na adolescência, quando já havia se mudado com a família para o subúrbio carioca de Maria da Graça, vizinho ao Méier, ela passou a frequentar o Cine Rin-Tin-Tin, para assistir especialmente a comédias musicais americanas.
Ali surgiu a paixão por Marilyn, a quem trata assim mesmo, pelo primeiro nome, com uma intimidade que só a fantasia da identificação com o mito pode justificar. “Até os 10 anos, essa menina (Marilyn Monroe) entrou em dez lares como órfã. Você sabe o que é isso? Depois, foi a mulher mais desejada do mundo”, diz Rogéria, assombrada com o infortúnio e o esplendor do símbolo sexual. Ela parece se reconhecer na história sofrida da bombshell americana. Assim como MM, é loira, sexualmente avançada e “geminiana com ascendente em leão”.  Tudo a ver.  Mas na sala da quitinete, Rogéria ganha. Ela aparece com mais destaque que a deusa de O Pecado Mora ao Lado. Sua imagem em preto e branco no panô que cobre quase toda a parede é muito maior do que as muitas fotos enquadradas de Marilyn Monroe. “Eu me lembro que uma vez fiquei furiosa com o Paulo Francis (jornalista da Folha de S.Paulo), porque ele escreveu em uma coluna que a Marilyn estava gorda em Quanto Mais Quente Melhor. Um absurdo. E olha que eu adorava o Paulo Francis! Bom, ele já morreu mesmo, nem tem a ver lembrar, tá perdoado…”
Surra nos Skinheads
Um pouco mais tarde, mas ainda antes de tornar-se Rogéria, ela passou a frequentar a Cinelândia, um conhecido reduto de “transformadas” no centro do Rio. “Eu me maquiava toda, entrava na lotação e ia lá pro fundo. Se alguém olhasse, eu dizia alto: ‘Tá olhando o quê!? Algum problema?’.” Ela conta que na época havia uma versão carioca, mais bronzeada, dos skinheads.  A diferença é que, segundo Rogéria, por mais homofóbicos que eles fossem, por mais violentos, não conseguiam colocar medo nela e em sua turma. “Se eu estivesse sozinha, dava um jeito de ir até a Lapa e voltava cheia de malucas comigo, dispostas a enfrentá-los. Os desgraçados apanhavam da gente que nem loucos. Nós ainda dizíamos: ‘O último, deixa pra mim!’”
Aos 19 anos, ela se apaixonou pela primeira vez. Conheceu o “bofe” em um dos bailes de carnaval do Teatro República, no centro do Rio, famosos pelo nome de Fuzarca; quando o rapaz a viu “de homem”, no dia seguinte, rolou um estresse. Rogéria achou que fosse tomar um passa-fora, mas, segundo conta, ele a beijou: “Caí desmaiada”, lembra, com o timing tragicômico remanescente dos tempos de  teatro de revista. No começo do romance, houve “um probleminha” com a mãe do rapaz, que queria um neto. “Eu disse a ele que naquele filme não tinha papel pra mim.” O relacionamento  durou quatro anos, o rapaz tornou-se cabeleireiro e eles são amigos até hoje.
Naquela ocasião, Astolfo começou a trabalhar como maquiador na extinta TV Rio e virou queridinho de grandes estrelas do teatro e da música. “Não tive Actors Studio, mas um camarim de ouro. Maquiei Fernanda, Glauce Rocha, Dalva de Oliveira, Emilinha, Josephine Baker (ela  pronuncia o nome com acento francês e informa que “pouca gente sabe que é assim que se fala”). Elis começou comigo”, conta.  Veja bem: não foi ela que começou com Elis. Rogéria explica que “essas mulheres maravilhosas”, quando a viam transformada, cheia de talento, em seus shows particulares no camarim, davam força para que ela se jogasse na carreira artística. O primeiro rebatismo do maquiador foi obra da vedete Zélia Hoffmann.  Ela alegou que Astolfo estava mais para nome de executivo, soava muito sisudo, não combinava com ela. Sugeriu Rogério. Dali para Rogéria, foi um pulo.
A Alta-roda no Underground
Em 1965, a estrela transformista em ascensão estreou em grande estilo no show Les Girls, de Viriato Ferreira, cuja plateia era frequentada pela elite carioca da época. O espetáculo foi um dos precursores do hi-low na cena underground, que ultimamente voltou a ser tendência.  Os playboys já achavam incrível frequentar a decadente galeria Alaska, do Rio, ou acabar a noite no Val Improviso (consagrado por Cazuza em “Só as Mães São Felizes”), em São Paulo, que tinha como sócia a transexual cult e militante gay Andréia de Maio. Para quem não é da época, o mais próximo daquilo hoje é a Love Story, no centrão de São Paulo, frequentada por patricinhas e garotas de programa.
“O show era um luxo, o Viriato ficou milionário com aquilo. As roupas pareciam feitas pelo Yves Saint Laurent e as marcações não deixavam nada a dever às do Roland Petit [bombado coreógrafo francês que criou o Ballet National de Marseille]”, lembra Rogéria, cujos delírios de glamour a conduzem para longe o tempo todo. Ela vai e volta a Hollywood pelo menos cinco vezes durante a entrevista. Sempre que cita alguma aventura amorosa, ou desastrosa, lá vem o nome de um filme. Assim, quando ela levou uns tapas de um amante paulista “foram tipo os que o Glenn Ford deu em Rita Hayworth em Gilda”;  o hotel onde ela esteve no centrão da África, no fim da década de 1960, depois de se livrar de um obscuro empresário de shows em Angola, “era igualzinho à casa da Scarlett O’Hara em E o Vento Levou”;  e, na época da ditadura militar, quando a polícia a pegava de biquíni  na praia da Glória, com as amigas, ela era “a Esther Williams mergulhando para catar mariscos”. “Levavam a gente para a cadeia, no Catete, e o delegado perguntava: ‘O que eles fizeram?’ O policial dizia: ‘Estavam de biquíni, na praia’.  Aí, nos passavam uma descompostura e mandavam embora.”
Suficientemente Subversiva
Apesar de aqueles tempos serem altamente repressivos, Rogéria conta que nunca explorou a política em piadas de duplo sentido no teatro. “Não precisava. A gente já tinha uma figura suficientemente subversiva.” No elenco de Les Girls estavam também Brigitte Búzios (não confundir com a Bardot), Nádia Kendall,  Valéria e grande elenco, todas “atores transformistas” – mas quem ouviu falar das outras?
A justificativa para a sobrevivência do personagem, sem que Rogéria nunca tenha traído sua caracterização, pode estar na habilidade que ela sempre teve para “fazer a limonada”. Exuberante, simpática, falante, ela usa a tática da verdade como escudo. Conta que ganhou a atenção de Carlos Machado quando o avisou que não sabia dançar.  Disse: “Eu faço uma coreografia própria, sozinha, mas não tenho preparo de bailarina para seguir um grupo”. Ele, então, a colocou para fazer apenas um número e ela “roubava o espetáculo”. Acompanhavam-na mulheres estupendas, como Marina Montini, Aizita Nascimento, Rossana Ghessa, Suely Antonelli (mãe de Giovanna) e também o corpo de baile do Theatro Municipal.
Amor, Estranho Amor
O coração de Rogéria estava sempre ocupado.  Depois do “primeiro marido”, ela conheceu o tal Glenn Ford dos tapas, numa temporada de shows em São Paulo. “Ele era rico, lindo, ciumento e deliciosamente agressivo”, conta, ligeiramente traquinas.  “Mas foi só uma paixonite de viagem.”  Serviu para constatar que Rogéria não se incomodava nadinha com “uma pegada mais forte”…
Um dia, o amor realmente bandido apareceu. Veio na figura do intrépido policial Mariel Mariscot, estrela do grupo paramilitar de extermínio Esquadrão da Morte. Na ocasião, Rogéria apresentava um show no lendário Beco das Garrafas, como ficou conhecido o conjunto de bares que funcionavam em uma travessa da Rua Duvivier, em Copacabana, no Rio. O Beco tinha sido muito famoso anteriormente, quando cantaram ali Sergio Mendes, Elis, Baden Powell, Leny Andrade, Claudette Soares, Simonal e muitos outros. Agora, tornara-se um inferninho frequentado por garotas de programa estilo uísque com guaraná; Rogéria fazia uma saideira às 5h30, no Little Club, cantando um repertório que ia de Elizete Cardoso a Maria Bethânia, passando por Cartola. “Eu vinha do espetáculo Deu a Louca em Hollywood, do Carlos Machado, que a gente apresentava no Fred’s, na Avenida Atlântica, onde depois construíram o Méridien.” Rogéria passava a madrugada peregrinando de boate em boate, onde fazia shows variados. Conta que recebia cash. “Eu ia com a peruca na mão, imagina, anos 1960, 1970, não existia isso de homem ‘loira’ de vestido caminhando pela rua.”
Eis que, em uma dessas noites, o temido Mariel Mariscot resolveu dar uma incerta no Beco. Entrou num bar, saiu de outro, foi a um terceiro, até que se sentou em uma mesa de pista no Little Club, rodeado de mulheres. Rogéria conta: “Meu agente na época, o Denis Duarte, me disse: ‘Quando entrar em cena, olha pra quem você quiser na plateia, menos para ele (Mariel). O cara é perigoso, tem mulher que não acaba mais e todas morrendo por ele’”. Ela ri só de lembrar: “Só por isso, eu não conseguia olhar para outra pessoa. Bicho, foi  babado…”
O caso durou pouco, mas foi intenso. Um clássico. Acabou num 31 de dezembro, quando um amigo de Mariel tirou Rogéria para dançar em uma boate fim de linha da Rua Rodolfo Dantas, no Lido, aquela parte de Copacabana que resvala o mundo cão.  “Assim que nos viu dançando, Mariel veio, despejou uma taça de champanhe na minha cabeça e saiu com uma mulher. Eu chorei da Rodolfo Dantas até Niterói, onde eu morava”, conta. No dia seguinte, ela achou que não ia ter forças para entrar em cena no show do Fred’s. “Eu só chorava no camarim, a maquiagem toda borrada. De repente…” Ela viu pela janela, de onde se avistava o calçadão da Avenida Atlântica, Mariel com um ramo de tulipas na mão. Em seguida, um mensageiro entrou no camarim e entregou as flores a ela, com um cartão. O texto: “Todo meu amor, Mariel”. “Fiz o melhor show de toda a temporada”, conta. Terminado o espetáculo, os dois saíram para passear de carro. O romance ainda teve uma sobrevida, mas “não dava para dividi-lo com tanta gente”. “Nem eu, que era avançadinha, conseguia levar aquilo numa boa.” Mariel foi assassinado em uma tarde quente de 1981, no centro do Rio, quando parava o carro para ir a uma reunião com bicheiros. Tinha 41 anos.
Coaching de Vedete
Ao final da entrevista, o telefone toca, é da assessoria de Taís Araújo. Eles perguntam a Rogéria a que horas o carro pode pegá-la. Ela vai fazer uma espécie de coaching com Taís, que no filme Pixinguinha, Um Homem Carinhoso, de Denise Saraceni, interpreta a mulher do compositor carioca. “A Betty era corista nos anos 1920. Embora a Rogéria não tenha vivido na época, ela vai me ajudar a compor uma vedete de teatro de revista.” Encantada com a professora, Taís conta que o  coaching vai além da conversa. “Ela me dá toques tão bons que pedi para levá-la na filmagem”. Tá, meu bem?
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