Na Revista J.P, um um raio-X de Beatriz Segall, dama da TV brasileira

Beatriz Segall || Créditos: André Giorgi/Revista J.P

Em julho, a atriz Beatriz Segall completa 90 anos, mais de 60 de carreira. Intérprete de algumas das malvadas mais populares da TV, ela mostra que sobreviveu muito dignamente a todas elas

Por Paulo Sampaio para a Revista J.P de abril

Ao contrário do que se pode imaginar, o grande enigma da vida de Beatriz Segall não está relacionado ao assassinato de Odete Roitman, a vilã milionária que a atriz interpretou magistralmente na novela “Vale Tudo”, de Gilberto Braga, em 1988. A questão inevitável, para quem se aproxima dela, é investigar até que ponto Beatriz e Odete são a mesma pessoa. A entrevistada não consegue disfarçar o desconforto quando se faz a associação, o que é bastante sintomático. Em determinado momento da conversa, ela solta: “Sempre enfrentei no teatro e na TV uma implicância muito grande porque achavam que eu era rica, não precisava trabalhar, estava ali tirando o lugar de outros atores. Isso é um absurdo, porque você não trabalha apenas porque precisa, é um direito previsto na Constituição”. Foi muito traumático, diz ela, “horrível, horroroso”. “Havia uma verdadeira perseguição.”

Talvez tenha faltado a Beatriz Segall humor para rir de Odete – e de si. Talvez Beatriz Segall se leve demasiadamente a sério. Muitas atrizes da geração dela, para se proteger, passam entrevistas inteiras interpretando divas. Usam cacoetes que dão certo no palco, pontuam a conversa com gargalhadas histriônicas e chamam a empregada para servir um cafezinho como se estivessem em um espetáculo de vaudeville. Beatriz, enquanto isso, não parece disposta a fazer concessões para seduzir o interlocutor. Então, se alguém insinua que ela é arrogante, por exemplo, sobra pouco espaço para manobra. Não dá para ela se livrar do momento com uma careta cômica, uma jogada de cabeça, um murro cênico no braço do sofá. “Havia uma certa inveja”, continua, incauta.

A atriz na pele de Lourdes Mesquita, na novela “Água Viva” || Créditos: Divulgação/Revista J.P

 

CARA DE RICA

Sobrancelha alta, olhar verde-intenso, nariz desenhado, queixo erguido, Beatriz Segall tem o que os produtores de elenco chamam de “cara de rica”. O aplomb natural é reforçado pela rigidez dos posicionamentos. Às vésperas de comemorar 90 anos, que ela faz em julho, mostra-se intolerante com falta de cultura, impaciente com assuntos que não considera relevantes e intransigente em seus julgamentos. “O teatro está fraquinho. Toda a vida cultural brasileira está muito rebaixada.” Em relação à TV, ela lastima a “falta de interesse em fazer algo de qualidade”. “Parece que não há muito assunto.” Para ela, que ultimamente tornou-se telespectadora assídua de séries estrangeiras como “Downton Abbey” e “House of Cards” (“os roteiros deles são extraordinários”), “há muito tempo não se ouve falar de um grande talento na TV”. “As pessoas querem ser atores, mas se contentam em aparecer na televisão.”

Beatriz Segall fala do alto de uma trajetória profissional de mais de 60 anos, repleta de sucessos retumbantes. No teatro, onde estreou nos anos 1950, ela interpretou textos de Ibsen, Molière, Tennessee Williams, Friedrich Dürrenmatt, Lillian Hellman e muitos outros. Em 1954, casou-se com o economista e sociólogo Maurício Segall, filho do pintor modernista Lasar Segall, e passou 14 anos sem atuar, por opção, para criar os três filhos. Hoje, está separada. A consagração em grande escala, na TV, veio um tempo depois. Entre 1978 e 1989, ela fez pelo menos três personagens determinantes em sua carreira, todos escritos por Gilberto Braga, especialista em grã-finas malvadas. Braga a presenteou com Celina de Souza Prado Cardoso (“Dancin’ Days”, 1978); Lourdes Mesquita (“Água Viva”, 1980) e Odete Roitman (“Vale Tudo”, 1988). “Beatriz tem muitos recursos, é sempre um prazer trabalhar com ela”, diz Braga. Muito destemida, a atriz pagou o preço de ser uma das megeras mais lembradas da teledramaturgia brasileira: “Você sabia que naquela época houve um movimento entre os atores para aumentar o salário de quem fazia papel de mau? Argumentava-se que eles não eram chamados para fazer comercial. Comercial dava muito dinheiro”. Como assim, dinheiro? Imagina-se que uma atriz que dava 80% de ibope no horário nobre, como Beatriz Segall, tinha um bom salário, não? “Quando fiz ‘Vale Tudo’, ganhava muito pouco, R$ 40 mil, enquanto as outras (protagonistas) recebiam R$ 80 mil.”

Em “Dancin’ Days”, como Celina || Créditos: Divulgação/Revista J.P

MANTÔ DE LÃ

Nascida no Rio em uma família da classe média, Beatriz de Toledo era filha do diretor do prestigiado Instituto Lafayette, uma escola na Tijuca, zona norte, e recebeu uma educação primorosa – aprendeu francês, piano, costura etc. “No fim do ano, a escola sempre chamava um encenador e montava uma peça de teatro. Eu me lembro de assistir aos ensaios, com 12 anos, absolutamente encantada.” Mas no fim dos anos 1940, garotas de família eram mantidas longe do ambiente “promíscuo” do teatro. Por isso, quando Beatriz comunicou em casa que pretendia integrar o elenco de uma peça profissional, seu pai reagiu mal. Disse: “Pode ir, mas vai me dar um grande desgosto”. Beatriz não foi. Conta que aprendeu uma lição. “Nunca mais informei a meus pais o que iria fazer.” Anos mais tarde, sua mãe ficou intrigada quando a surpreendeu costurando o forro de seda de um mantô de lã: Beatriz tinha ganhado uma bolsa para estudar teatro e literatura em Paris e, dessa vez, não pretendia abrir mão. “Imagina, naquele calorão do Rio, eu cozendo um mantô”, ela ri. “Já estava tudo acertado, não voltaria atrás.”

Beatriz Segall é assim, determinada. Seu temperamento se impôs no teatro, onde desde o início fez questão de atestar refinamento: “Quando voltei da França, achava que as únicas duas cidades em que eu viveria seriam Paris e o Rio. E estou até hoje aqui (em SP), muito feliz”. Em um meio de seres suscetíveis como é o do teatro, falar de Paris assim, sem muito distanciamento, eventualmente afasta os não tão viajados. Esse é um dos assuntos que ela não acha relevante. Tanto que não vê nada de estranho em declarar que, em 60 anos de carreira, fez apenas dois amigos na classe teatral. Cláudio Correia e Castro (1928-2005), com quem contracenou diversas vezes e considerava seu melhor companheiro de cena, e Sérgio Viotti (1927-2009), “o mais antigo”. José Possi Neto, que a dirigiu em três espetáculos (“O Manifesto”; 1987; “Três Mulheres Altas”, 1995; “As Pequenas Raposas”, 2004), acredita que quem critica a postura de Beatriz pode estar confundindo esnobismo com “consciência da posição que ocupa”. “Ela é de uma geração de atrizes muito cultas, independentemente da classe social de onde vieram. Beatriz tem repertório, sabe disso e valoriza.” Possi afirma que “apesar de não ser da natureza dela fazer a simpática ou a boazinha, enquadrá-la na categoria ‘madame’ é uma grande bobagem”.

Na pele da emblemática Odete Roitman, na novela “Vale Tudo” || Créditos: Divulgação/Revista J.P

Avó de oito netos, Beatriz reconhece que não “faz a boazinha” com as noras. “Avisei logo que eu não ia ser vovó de tomar conta de neto. Me dou muito bem com eles, mas nem pensar!” A aparente independência afetiva só dá sinais de vulnerabilidade quando ela recebe alguma crítica negativa no teatro. “Dói até o fundo do coração. O ator que disser que não, está mentindo.” E quem teria escrito algo com tamanho potencial destrutivo? Ela conta que sofreu marcação cerrada de um crítico teatral de São Paulo, por motivos pessoais. Segundo ela, ele também disputou a bolsa de estudos em Paris, mas não conseguiu ganhar; e, pior ainda, a cortejou e foi rejeitado. Nos anos 1970, quando ela e o marido administraram um importante projeto de produção de grandes espetáculos no Theatro São Pedro, na Barra Funda, Maurício impediu a entrada do crítico em um espetáculo porque ele chegou 20 minutos atrasado. Foi a gota d’água: “A partir daí , eu já sabia. Tudo o que eu fizesse seria ruim para ele”. Descontando esse caso de perseguição pessoal, cujo autor ela prefere não citar nominalmente, Beatriz Segall acredita que naquela época os jornalistas eram mais preparados, tinham conhecimento de causa, capacidade para dar opinião.

AS ‘ELITE’

O inconformismo da atriz em relação ao que ela chama de “rebaixamento da cultura brasileira” está diretamente ligado ao seu posicionamento político radical contra Lula, Dilma e o Partido dos Trabalhadores. Embora afirme que não sabe o suficiente de “sociologia” para discutir o assunto, ela acredita que o governo do PT contribuiu muito para essa “queda no nivelamento”. E então, baixa uma Odete rápida: “A atitude deles é de desprezo pelas ‘elite’. Pode colocar sem o ‘s’ mesmo”. Apesar de ter tido um marido socialista que chegou a ser preso na época da ditadura militar, e de ter votado em Lula “no início”, Beatriz Segall agora integra a ala dos que se consideram “enganados”. “A primeira vez em que ouvi falar do PT foi em um jantar na casa do Celso Lafer. O Fernando Henrique (Cardoso) nos falou da formação do partido, e eu me lembro de a gente ter ficado muito entusiasmado.” Beatriz conta que chegou a dar dinheiro para o partido: “Depois parei.” Quando se pergunta sobre um representante da elite cultural, ela responde FHC.

A questão é que FHC já está, digamos, cumprindo a hora extra, e a elite do Brasil no momento se compõe de gente como o presidente da Câmara, Eduardo Cunha; do Senado, Renan Calheiros; e o vice-presidente, Michel Temer, os três investigados por corrupção. Beatriz reage brava: “Existe uma diferença grande entre ocupar um cargo de poder em Brasília e fazer parte da elite. Aquilo ali não é elite nem aqui nem na China”. Para começar, diz ela, quem está no poder no Brasil governa à revelia do povo que os elegeu. “Você já esteve no plenário da Câmara? Eles não ouvem nem a si mesmos. Falam, falam, e os outros conversando ali ao lado. Não prestam atenção nenhuma.”

“A atitude deles [do PT] é de desprezo ‘pelas elite’. Pode colocar sem o ‘S’ mesmo” || Créditos: André Giorgi/Revista J.P
SENHORINHA OBEDIENTE

Agora, Beatriz Segall se senta no sofá da sala de seu apartamento, que fica embaixo de um retrato dela assinado por Lasar Segall. O tempo passa rapidamente em um momento, e de repente a atriz é uma senhorinha bem comportada que obedece às orientações do fotógrafo, enquanto posa. Diz que, ao contrário de muitos atores, não se sente constrangida quando se assiste na TV. “Eu me vejo, sem problema.” A saúde, diz, vai bem, descontando um acidente no último espetáculo de que participou, o musical Nine, quando levou um tombo. “Quebrei o braço em cena, e não poderia fazer a personagem (a mãe de Fellini) engessada.” Coincidentemente, isso foi no dia em que completou 89 anos. Para a tristeza de seus incontáveis fãs, a atriz afirma que o musical foi seu último ato no teatro. “Canso facilmente hoje em dia. E não tenho vontade de fazer.” Apesar da máscara de resignação, os olhos verdes brilham mais vivos do que nunca.

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