Na estante

O GRANDE IRMÃO

“Era um dia frio e luminoso de abril, e os relógios davam treze horas. Winston Smith, queixo enfado no peito no esforço de esquivar-se do vento cruel, passou depressa pelas portas de vidro das Mansões Victory, mas não tão depressa que evitasse a entrada de uma lufada de poeira arenosa junto com ele.

* (…) O apartamento ficava no sétimo andar e Winston, com seus trinta e nove anos e sua úlcera varicosa acima do tornozelo direito, subiu devagar, parando para descansar várias vezes durante o trajeto. Em todos os patamares, diante da porta do elevador, o pôster com o rosto enorme fitava-o da parede. Era uma dessas pinturas realizadas de modo a que os olhos o acompanhem sempre que você se move.

O GRANDE IRMÃO ESTÁ DE OLHO E M VOCÊ, dizia o letreiro, embaixo.” Assim começa o primeiro capítulo de “1984”, o último romance de George Orwell (1903-1950) e sua obra magistral, em que o protagonista Winston vive aprisionado na engrenagem totalitária de uma sociedade completamente dominada pelo Estado, onde tudo é feito coletivamente, mas cada qual vive sozinho, e ninguém escapa à vigilância do Grande Irmão.

* E, certamente, porque ainda se impõe como uma poderosa reflexão ficcional sobre os excessos delirantes, mas perfeitamente possíveis, de qualquer forma de poder incontestado, seja onde for, “1984” acaba de ganhar novas edição e tradução no Brasil, pela Cia. das Letras, e será apresentado numa adaptação teatral do ator e produtor norte-americano Tim Robbins, na 23ª Feira Internacional do Livro de Guadalajara (México), em dezembro deste ano. foto capa livro e de Tim Robbins

VALE A PENA LER DE NOVO

Ao ser publicado originalmente em 1949, poucos meses antes da morte de Orwell, “1984” foi lido como uma crítica devastadora aos belicosos totalitarismos nazifascistas da Europa, de cujos crimes o mundo ainda tentava se recuperar. Nos Estados Unidos, foi visto como uma fantasia de horror quase cômico contra o comunismo da hoje extinta União Soviética, então sob o comando de Stalin e seu Partido único e inquestionável. No posfácio, o escritor Thomas Pynchon afirma que: “Desde o minuto em que o bigode do Grande Irmão surge no segundo parágrafo de “1984” – O vestíbulo cheirava a repolho cozido e a velhos capachos de pano trançado. Numa das extremidades, um pôster colorido, grande demais para ambientes fechados, estava pregado na parede. Mostrava simplesmente um rosto enorme, com mais de um metro de largura: o rosto de um homem de uns quarenta e cinco anos, de bigodão preto e feições rudemente agradáveis (…) – muitos leitores, lembrando imediatamente de Stalin, mantiveram o hábito de tecer analogias”. E que: “O romance foi publicado no auge da era McCarthy, quando o ‘comunismo’ era oficialmente condenado como uma ameaça mundial (…)”.

* Faz tempo que a “ameaça” do comunismo não ronda mais o imaginário mundial, e, quando se toma conhecimento apressadamente de que, em “1984”, Orwell aborda justamente uma conjuntura histórica ultrapassada, e que até mesmo a data, então, futurista do título já ficou há muito para trás, pode-se conceber esse livro como um texto anacrônico, que serviria apenas aos interessados em compreender a história moderna. Sim, “1984” se presta a isso – e isso já seria muito. Mas, como toda grande obra literária, trata, inclusive, de questões humanas universais, e essas são atemporais. Nesse caso, está em pauta a relação com o poder: o Grande Irmão, que a todos vigia, tornou-se a mais famosa personificação literária de um poder cínico e cruel ao infinito.

* O’Brien, hierarca do Partido, é quem explica a Winston que “só nos interessa o poder em si. Nem riqueza, nem luxo, nem vida longa, nem felicidade: só o poder pelo poder, poder puro”. E, agora, tenho a impressão de, ao reafirmar aqui a importância desse livro e a genialidade de Orwell, estar falando do que todos já sabem e de estar militando em prol de uma causa que já tem adesão geral. Pode até ser, mas, pelo sim, pelo não, digo: sempre vale a pena ler de novo “1984”.

TEATRO MEXICANO

A adaptação de “1984” para o teatro, dirigida por Tim Robbins e interpretada por seu grupo The Actor´s Gang, sediado em Los Angeles, deve ser apresentada nos dias 5 e 6 de Dezembro no Teatro Experimental de Jalisco, como parte da programação da Feira Internacional de Guadalajara. Em 2008, participaram do evento o colombiano Gabriel García Márquez, o mexicano Carlos Fuentes e o português António Lobo Antunes, entre outros nomes importantes da literatura mundial.

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