ELES POR ELES
Já houve quem dissesse que, para escritores, narrar é mais importante do que experimentar, sendo assim, seus diários não devem ser lidos como se fossem retratos fiéis da realidade. Na maioria das vezes, esses textos são compostos de invenções dos autores sobre si mesmos, ou, no mínimo, são interpretações da vida como eles pensam que ela é – e isso não quer dizer que haja neles sempre um desejo consciente de mentir. Isso é apenas parte do jogo que se estabelece entre escritor e leitor, e que torna saborosa a leitura de diários: tentar adivinhar o que é fato e o que é inventado, tendo a certeza de que jamais se saberá a resposta.
* Tudo isso para dizer que acabam de chegar às livrarias dois diários que, para quem gosta do gênero, são imperdíveis: “A Rainha Albemarle ou o Último Turista – Fragmentos” (Globo), de Jean-Paul Sartre, e “Diários” (Cia. das Letras), de Susan Sontag. “A Rainha Albemarle ou o Último Turista – Fragmentos” – Jean-Paul Sartre (1905 – 1980) foi figura central do existencialismo no século XX, escreveu obras fundamentais como “A Náusea” (1931) e “O Ser e o Nada” (1943), na maior parte da vida, foi companheiro da escritora Simone de Beauvoir e recusou um Prêmio Nobel.
Nada disso é novo. O que não se sabia, ou nunca foi muito divulgado, é que, ao visitar a Itália em 1951, deixou-se tomar de emoção – e mais: permitiu que ela transbordasse – contrariando a imagem do homem que tentou juntar literatura e filosofia, narração e tese, e que defendia as obras literárias como espaço de engajamento político dos escritores. São justamente os relatos dessa viagem que estão em “A Rainha Albemarle ou o Último Turista – Fragmentos”, organizado por Arlette Elkaïm-Sartre, filha adotiva do escritor. Os textos são compostos de pequenas notas esparsas – algumas anotadas em suporte improvisado, outras num caderno – que nunca foram ordenadas, e, se Sartre teve a intenção de produzir um livro, deixou-o inacabado, por isso o subtítulo “Fragmentos”. O livro propicia a experiência de passear por Roma, Nápoles, Capri e Veneza de mãos dadas com Sartre: um turista incomum, perspicaz e irônico, e que inusitadamente se mostra despido do papel de filósofo engajado.
TETÊ-À-TÊTE
Não se pode pensar em Sartre sem pensar em Simone de Beauvoir: “Como Abelardo e Heloísa, os dois estão sepultados no mesmo jazigo, seus nomes ligados para sempre”, assim está escrito no prefácio de "Tête-à-Tête "(Objetiva), e foi nesse livro que pensei ao tratar dos relatos de viagens do escritor. Essa publicação de 2006 não é um diário, mas, nele, a biógrafa Hazel Rowley produz um retrato do casal e de seu intenso e turbulento relacionamento, que, se não corresponde exatamente aos fatos, é pelo menos uma visão bastante interessante de Simone e Sartre. Arrisco mais: é provavelmente a grande história que os dois queriam que suas vidas fossem.
DIÁRIOS AINDA
“Quem inventou o casamento era um torturador astuto. É uma instituição destinada a embotar os sentimentos.” São reflexões agudas como essa que compõem “Diários”, da intelectual, escritora e ativista norte-americana Susan Sontag (1933-2004), e que foram selecionadas por seu filho David Rieff depois de sua morte. Mesmo que o período abordado no livro seja apenas da fase de juventude Sontag (1947-1963), consegue-se acompanhar os percursos de sua formação intelectual, principalmente porque o tom da narrativa é confessional.
* Ela fala de sua descoberta da sexualidade na adolescência, da época de caloura precoce na Universidade da Califórnia, onde ingressou aos dezesseis anos, do breve casamento aos dezoito com seu professor Philip Rieff e das duas grandes relações amorosas mantidas com mulheres na sua fase de jovem-adulta. É possível que alguns leitores não concordem com muitas das ideias de Sontag, mais pela radicalidade e não por acharem que são infundadas, porque isso elas não são mesmo. “Nos diários, eu não apenas me expresso mais francamente do que faria com qualquer pessoa; eu me recrio”, escreve Sontag.
* O que seduz na leitura dessa recriação é justamente descobrir os processos existenciais pelos quais ela passou e que a tornaram uma intelectual capaz de refletir sobre assuntos tão diferentes quanto a estética fascista, a Aids, a fotografia e a literatura pornográfica. Sontag esteve presente também na Guerra do Vietnã, como correspondente, criticou a intervenção americana em Cuba (mas também disse que o comunismo era apenas um fascismo com rosto mais humano).
* Por três anos ela esteve nos Bálcãs, durante as guerras que desmantelaram a antiga Iugoslávia, na maior parte do tempo na cidade sitiada de Sarajevo. E se posicionou contra Bush logo depois dos ataques terroristas de 11 de setembro. Se os diários de Sontag são uma recriação – ou invenção – de si mesma, pode-se se dizer que ela trabalhou muito bem.
Por Anna Lee