Autor americano discute em livro se é melhor ser temido ou amado. E ai?

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Para o psicólogo norte-americano Dacher Keltner, chega ao poder quem prejudica menos os liderados e fica nele quem faz exatamente o contrário. Essa é a tese de seu novo livro: The Power Paradox

por Paulo Vieira para PODER de outubro

Conhecido por ter oferecido a base teórica e científica de Divertida Mente, animação da Disney que coloca em cena as emoções humanas – no caso, as de uma menina de 11 anos que é obrigada a lidar com a frustração de ter se mudado de cidade –, o psicólogo norte-americano Dacher Keltner resolveu dissecar as relações de poder em seu novo livro. Em The Power Paradox  (ainda não lançado no Brasil), Keltner lança mão de estudos com 90 grupos sociais diferentes – de crianças em acampamento de férias a militares, de universitários a macacos – para analisar como o poder é construído, afirmado e partilhado.

Na obra, o psicólogo também verifica hipóteses de autores clássicos, como as do italiano Nicolau Maquiavel, para quem o detentor do poder torna-se muito mais seguro “sendo temido do que amado”. Professor da Universidade da Califórnia, em Berkeley, onde é uma das estrelas do Greater Good Science Center, instituto que tem como premissa “fomentar uma sociedade mais próspera, resiliente e de compaixão”, chegou a conclusões bastante distintas das do autor de O Príncipe. Em vez da conquista pela força, ele acredita que o poder é dado pelo grupo àquele que aparenta causar menos dano ao coletivo.

Porém, curiosamente, esse mesmo líder que ascende por empatia acaba por se tornar egoísta, impulsivo e insensível: eis o paradoxo do poder de que trata o título. Em diversas pesquisas feitas para o livro, quem aparece como mais propenso a cometer delitos diversos – de infrações de trânsito à sociopatia propriamente dita –  é justamente aquele que tem melhor posição social.  É trilhando essa estranha trajetória, do bem comum para o lado oposto, que o líder se investe de poder, segundo Keltner. Sua tese lembra uma peça de Shakespeare ou a tragédia grega clássica, em que o destino do protagonista já está traçado. Felizmente, há maneiras, segundo ele, de se isolar do pior. Aqui, os melhores trechos da entrevista que concedeu a PODER.

PODER: Quando o senhor fala que “sucumbimos ao poder” e que “a mera experiência de ter poder e privilégio nos conduz a um comportamento (…) de impulsivos e sociopatas”, parece haver um destino já estabelecido, como se o poder fosse maior e mais forte que seus detentores.  Se é assim, não é  inútil lutar contra isso?

Dacher Keltner: Eu realmente acho que há algo próximo do fatalístico em sucumbir à sedução do poder, de se deixar destacar em grupo para enfim mostrar um comportamento arrogante e impulsivo. Pode acontecer a cada um de nós, é verdade. Mas podemos transcender essa tendência criando sistemas sociais fortes que possam prevenir o abuso de poder. Quando uma comunidade exige responsabilidade do líder e faz com que as decisões sejam transparentes, o abuso de poder é menos provável. Podemos criar condições de fazer o poder se tornar uma força para o bem. É preciso  manter espírito crítico e humildade.

PODER: Considerando que o poder irá controlar seu detentor em algum momento, não é admissível que se faça mau uso dele? O poder em seu momento de “pico” não poderia ser uma desculpa para a mentira e para o ódio e, em último caso, até usado pelo líder em sua defesa nos tribunais?

DK: O argumento é fascinante: dada a força que os efeitos do poder têm, em um caso extremo, de insanidade real, a experiência do poder seria a justificativa para um comportamento não ético. A análise é correta, mas não concordo com a conclusão de que a sedução do poder pode ser uma justificativa legal para um comportamento inapropriado. É importante lembrar que o mais poderoso tem responsabilidades ao influenciar a vida dos demais. Então, de certa maneira, podemos admitir que essa pessoa deveria se sentir mais responsável pelo impacto de suas ações.

PODER: No livro, o senhor compara a vontade de ganhar a estima dos outros ao desejo por sexo ou por chocolate. Quem não tem essa preocupação pode se tornar poderoso? É necessária uma pequena porção de vaidade até para comandar um mosteiro?

DK: Até quem não se preocupa em ser estimado pode ter poder. Um bom exemplo é o do cientista completamente obcecado, que dá a mínima para os outros, e está próximo de uma descoberta que irá mudar a ciência. Mas isso é exceção. A maior parte de nós se preocupa profundamente em ser respeitado e estimado e essa motivação é um grande motor de ações que resultam em ganho de poder.

PODER:  Seus estudos foram realizados com quase uma centena de grupos diferentes. Pensando na maneira como se ganha poder, todos seguem o mesmo padrão? Ou seja, mostram “habilidade em negociar conflitos, reforçar normas, alocar recursos de maneira justa”, como o senhor escreveu em seu livro? Será essa a única maneira de angariar poder?

DK: Nos mais de 90 grupos estudados há diferenças de contexto. Entre militares, para ganhar poder, é mais importante a aderência e o cumprimento às normas; em escolas infantis, mais vale ser gentil; no trabalho, importa ligeiramente mais ter algum domínio técnico. O que você cita sobre habilidades intrínsecas aos poderosos, se não serve para todos os grupos, serve para a maioria deles. São regras que têm a qualidade de se tornarem leis de como ganhar o poder.

PODER: É possível manter-se atento ao coletivo e até mesmo preservar certo cuidado no trato com os liderados quando se é poderoso? O líder é capaz de reconhecer isso e de mudar seu comportamento quando necessário?

DK: Qualquer líder com um pouco de atenção pode transcender sua impulsividade. Os grandes líderes reconhecem o próprio abuso de poder na hora em que perdem a atenção dos demais. E, como se fosse exercício físico ou dieta, acabam adotando essa prática de ouvir ideias, de expressar apreço, de serem mais respeitosos. Ou seja, é possível consertar, sim.

PODER: A parte final de The Power Paradox introduz um dilema: se o poder leva seus detentores a uma vida mais egoísta, como é possível ter poder e, ao mesmo tempo, estar focado nos outros? Para isso o poderoso não teria de dar um passo atrás? O senhor já viu isso acontecer?

DK: Sim, há uma contradição aí. Tudo o que é necessário para conduzir o poder para o bem acaba eclipsado pelo próprio poder. Por muito tempo assumimos que o poder não deve ser constrangido pela ética, por princípios que visam o bem coletivo. Isso se vê na tradição, em Maquiavel, em que não há quaisquer limites para a manutenção do poder. É o que se vê hoje em algumas escolas que dizem que a liderança não deve ser constrangida pela ética. Eu discordo disso. Penso que as evidências de corrupção, de desigualdade e de racismo sugerem que os detentores do poder devem assumir o dilema e confiar em noções como empatia, partilha e respeito para vencer o paradoxo do poder.

 

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