Com cancha na política e um histórico que mistura polêmicas e exemplos de boa gestão, a senadora Marta Suplicy se diz pronta para disputar, de novo,a prefeitura da maior cidade no país. Continua boa de briga, mas vários tons abaixo
Por Nataly Costa para a revista PODER de julho
Escorado no balcão de um desses estabelecimentos bem simples na periferia de São Paulo, misto de venda, lanchonete e bar, o empresário Márcio Toledo fazia hora enquanto sua mulher, a pré-candidata à prefeitura de São Paulo Marta Suplicy, circulava pelas redondezas, no tradicional footing eleitoral pelas regiões mais carentes da cidade. “Peraí que a gente vai quando a Marta chegar”, disse a alguém. Foi o que bastou. A dona da biboca, até então alheia à qualquer movimentação diferente no bairro, pulou da cadeira, levou as mãos ao rosto e fez cara de quem recebe um afago ou uma graça dos céus. “Minha branquinha!”, exclamou, já com os pés para fora do cubículo e fazendo sinal para que Toledo tomasse conta de tudo enquanto ela saía para a tietagem. Durante 20 minutos, até que o filho da dona chegasse, o lugar passou a ser administrado pelo ex-presidente do Jockey Club de São Paulo. “Você pelo menos vendeu alguma coisa, Márcio?”, quis saber a esposa, depois, às gargalhadas. “Nada! Nem um salgadinho…”
Aos 71 anos, Marta Teresa Smith de Vasconcellos Suplicy, senadora da República, ex-ministra do Turismo, ex-ministra da Cultura, ex-petista e ex-prefeita quer ser, de novo, prefeita. A reação que desperta em gente como a dona da biboca na periferia é, até hoje, 12 anos depois de deixar o cargo, seu maior trunfo eleitoral. Fez uma gestão majoritariamente voltada para a população mais pobre, levou lazer onde não tinha (os CEUs), integrou o transporte (Bilhete Único), fez o trabalhador perder menos tempo no ônibus (corredores).
O legado é consistente, sem dúvida, mas faz sentido Marta Suplicy, depois de trilhar caminho até Brasília, romper com um governo, entrar no outro, pegar o caminho de volta sentido Viaduto do Chá? “Não tem nada a ver com trajetória. Tem a ver com vontade mesmo”, diz, escancarando o pragmatismo, traço de sua personalidade que pouco se esconde, mas que ficou ainda mais evidente há um ano e três meses, quando saiu do PT batendo porta, bradando contra a corrupção, e filiou-se ao PMDB de Eduardo Cunha, Romero Jucá, José Sarney, Renan Calheiros e outros. De novo: faz sentido, Marta? “O PMDB é estruturado e me dá espaço para trabalhar dentro do que acredito”. Ah, bom. Pragmática. Mas a corrupção… Ela, então, evita citar os caciques do partido e faz um comentário genérico: “Existem investigações dentro do PMDB, mas é diferente. Lá são pessoas investigadas. No PT é sistêmico, é dinheiro público na veia partidária para a manutenção do poder. Quando percebi isso, saí.”
ATÉ AQUI DE MÁGOA
Agora, o real motivo que levou Marta a debandar do PT depois de 33 anos de militância: ela não engoliu uma derrota interna para Fernando Haddad, escolhido por Lula para a corrida municipal de São Paulo em 2012. A candidata natural, na opinião de Marta, era ela. Engoliu o sapo, mas guardou. Foi para a campanha de rua, andou de carro de som com Lula, guardou. Deu as mãos para Haddad, ajudou a elegê-lo na periferia, guardou. “Fui preterida. Mesmo assim, vesti a camisa porque acreditava que ele seria um bom prefeito”, diz. De mau grado, aceitou o Ministério da Cultura como prêmio de consolação, até que, em novembro de 2014, decidiu vazar para a imprensa uma ruidosa carta de demissão do governo Dilma – verba volant, scripta manent, como diria o também missivista Michel Temer –, já colocando o pé para fora do partido. A saída definitiva do PT aconteceu em abril de 2015. “Quando saí, os petistas entenderam muito bem, fiquei até impressionada com a compreensão”, conta. “Agora, com a questão do impeachment, senti que embaçou um pouco. Houve uma radicalização de posições”, diz a senadora, que votou a favor do afastamento da ex-colega Dilma Rousseff. “Essa história de golpe é ultrapassada. Não tem nada a ver dizer que ser a favor do impeachment é ser de direita. Não passa por aí, e sim por perceber que o país precisa sair da paralisação”, defende-se, sem definir sua posição no espectro político . “Se ser de esquerda for defender minorias, igualdade social, posso me considerar assim. Mas são termos ultrapassados.”
PORTA-BANDEIRAS
O posicionamento pró-impeachment acabou colocando Marta em um impasse diante dos grupos pelos quais sempre militou, como o feminismo e o LGBT, hoje fortemente engajados no Fora, Temer. “Não posso falar por eles, mas falo por mim. Eu não mudo nenhum centímetro da minha posição a favor desses grupos. No Senado, ainda sou a pessoa que os escuta e os recebe”, diz. Marta sabe que o movimento gay em peso rechaça um governo em que um dos líderes é Eduardo Cunha, autor de um projeto de lei que criminaliza a “heterofobia” e outro que cria o Dia do Orgulho Hétero. Para quem já foi madrinha de Parada Gay, ficou no mínimo esquisito militar ao lado de uma figura tão conservadora, não? “O movimento LGBT foi muito prejudicado com o Cunha, ele não colocava os projetos nem em pauta. Mas não é só ele, o Congresso é muito conservador. Tem a bancada BBB (bala, bíblia e boi)…”, relativiza. Para Marta, o reacionarismo do deputado evangélico “não é uma posição peemedebista”. “No PMDB, as pessoas têm liberdade de se posicionar. No PT não tem disso, todo mundo vota igual”, compara.
Do lado das mulheres, também não deu para festejar o elenco que compõe o governo interino de Michel Temer, com pouquíssima – nos ministérios, nenhuma – representação feminina. “Nesse primeiro momento, ele precisou fazer uma composição político-partidária e os partidos não indicam mulheres”, diz ela, que se considera feminista “desde o primeiro momento”. “Uma vez, fui dar uma palestra em outro estado e a primeira-dama mandou me dizer que era ‘feminina, não feminista’”, conta, afrouxando a risada. “Achei tão estranho aquilo, não tem nada de incompatível! Feminismo é muito simples, é direito igual, salário igual. Quem é contra?”
RADICAL CHIC
Uma coisa chama atenção na Marta Suplicy de agora: ela parece mais serena. “Estou menos radical nesse sentido”, diz, respondendo a uma pergunta sobre religião, mas que pode valer para tudo. Sim, Marta anda meio religiosa, ou “voltada para a espiritualidade”, como prefere dizer. Já fez uma de suas colunas na Folha de S.Paulo sobre Santo Expedito, anda visitando paróquias e postando foto com padre no Facebook. Ela diz que “é a idade”, mas confessa que vem se aproximando da Igreja Católica graças à gestão do papa Francisco. “Admiro muito o jeito como ele lida com o mundo moderno. Está conseguindo construir uma mudança na Igreja com extrema habilidade”, derrete-se. “Às vezes, eu até comungo, coisa que não fazia há muito tempo.”
Há muito tempo, Marta era, digamos assim, uma figura um tantinho menos ecumênica. Batia boca com eleitor, vivia em pé de guerra com a imprensa, comprava cada briga. Para fazer mudanças no sistema de transporte de São Paulo e implantar o Bilhete Único, por exemplo, enfrentou a fúria dos empresários de ônibus e vivia sob ameaça – certa vez, foi desaconselhada pela polícia a comparecer a um evento porque havia indícios de que seria vítima de um atentado. Vestiu o colete à prova de balas (andava com ele no carro) e foi mesmo assim. “Comecei a falar pulando de um lado para o outro para não me acertarem”, diverte-se. “A sorte é que caiu uma chuva daquelas e mandei todo mundo para casa, disse que não queria ninguém doente, entreguei o microfone para o secretário e saí correndo.” Ela lembra do período com certa nostalgia e diz que faria tudo de novo. “Algumas brigas compraria igual. Bom, talvez não precisasse ir a um lugar onde teria gente disparando contra mim, né?”
Hoje em dia, quem está na mira – de maneira mais metafórica, ainda bem – é o atual dono da cadeira, Fernando Haddad. Como boa rival, Marta já engrossa o coro da oposição e desfia um rosário de críticas ao petista. Ciclovias? “Algumas são apenas ciclotinta com um monte de buraco.” Gestão da saúde? Atrasada. Política para a população mais pobre? Não fez. Programa para a cracolândia? Mal planejado. “Se ele tivesse sido um bom prefeito teria chances de reeleição, apesar do PT”, opina. “A gestão dele é excludente e beligerante. Sempre coloca dois lados para brigar, é Uber contra táxi, comércio contra residência, carro contra bicicleta. Não consegue dirimir conflitos”, diz, em um discurso que rescende a horário eleitoral. Só vale recordar que os anos Marta na prefeitura também não foram exatamente sem animosidade. Quando decidiu cobrar R$ 6 de taxa para a coleta de lixo – e ganhou o apelido de “Martaxa”, que carrega até hoje – a cidade também “veio abaixo de confusão”, para repetir uma expressão que proferiu na entrevista referindo-se a Haddad. “Foi um erro”, assume. “A ideia era boa, iria mudar a tecnologia nos caminhões e implantar coleta seletiva. Mas talvez não naquele momento, com economia ruim, quando as pessoas já tinham assimilado o IPTU progressivo… foi um abuso, não podia ter feito.” A taxa – e o túnel alagado, e uma viagem para Paris no meio do verão com enchentes, e certa má vontade da imprensa – fizeram Marta ser derrotada na tentativa de reeleição em 2004 (ganhou José Serra, atual companheiro de Senado) e em 2008 (ganhou Gilberto Kassab, com quem hoje também tem um bom relacionamento). Essa última campanha foi mortal para a imagem da então petista, com a veiculação de uma peça eleitoral em que fazia questionamentos sobre a vida pessoal do atual ministro da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações. “É casado? Tem filhos?”, perguntava uma voz em off no vídeo, como se isso importasse (e como se Marta também não tivesse provado do veneno de ter que dar satisfações sobre sua vida pessoal quando se separou de Eduardo Suplicy e se casou com o argentino Luis Favre). “Foi um trauma. Me tirou a estabilidade por uns dois dias”, diz, sobre o episódio da campanha. Mas, dessa vez, não puxa para si a responsabilidade e aponta dedos. “Um erro crasso do João Santana (então marqueteiro do PT) que foi ao ar sem minha autorização. Realmente é algo sério na biografia de uma pessoa que sempre lutou por direitos. Acho que meu povo LGBT entendeu que foi uma manipulação. Mas até hoje tenho de ficar falando sobre isso.”
MARTA E OS BONEQUINHOS
De fato, alguns assuntos são recorrentes na vida da senadora – são coisas que, querendo ou não, ela “tem de ficar falando sobre isso”. Basta entrar em sua página oficial no Facebook para ver que os eleitores não perdoam, têm boa memória em relação às pisadas de bola da senadora e, claro, adoram uma picuinha. “Outro dia teve um que falou que achava absurdo eu ainda assinar como Suplicy. Não é de outro planeta?”, comenta, referindo-se ao sobrenome do ex-marido, que ainda carrega (mas usa cada vez menos, preferindo somente ‘Marta’ ou ‘Marta Senadora’ nas redes sociais). “Respondi: você está se metendo no que não entende. Como uma pessoa que foi casada 37 anos, escreveu nove livros e construiu uma carreira com o nome não pode usá-lo, se o dono do nome concorda?” Sim, Marta lê tudo e gosta de responder ela mesma as críticas, sugestões e elogios dos seguidores – usa o tempo em aeroportos e deslocamentos de carro para isso. A senadora até já se acostumou com o tom raivoso e a belicosidade dos comentaristas da internet. “Eles xingam mesmo, colocam bonequinhos vomitando”, diz, referindo-se ao “vomitaço” que usuários do Facebook promoveram nas páginas de políticos do PMDB. “Vou lá e apago!” Por via das dúvidas, o time de Marta resolveu contra-atacar: criou “bonequinhos” da senadora que estão sendo postados aos montes em sua página oficial como resposta aos comentários. Tem Marta com olhinhos de coração, Marta com cara espantada, Marta com lágrima escorrendo no rosto, Marta piscando, Marta sorrindo. Uma simpatia só.