Com nhoque e vinho tinto para acompanhar, o maestro usa a música para fazer uma análise ácida e precisa do Brasil e do mundo
Por Fábio Dutra
Fotos Paulo Freitas e Fernanda Rodrigues
“Uma coisa é um país, outra um ajuntamento. Uma coisa é um país, outra um regimento. Uma coisa é um país, outra o confinamento.” Os versos duros que marcam o início e anunciam o ritmo compassado em que se dará o mais famoso poema de Affonso Romano de Sant’Anna, “Que País É Este?”, de 1980, parece se ajustar mais ao atual estado de espírito de Júlio Medaglia do que à quantidade de vivas aos diversos aspectos da cultura nacional gritados por Caetano Veloso na canção “Tropicália”, que teve arranjos feitos pelo maestro 12 anos antes. Não que ele tenha se tornado um pessimista ou passasse a detestar a cultura popular, ao contrário, mas porque crê que a indústria cultural tem matado a riqueza que o Brasil é capaz de produzir, assim como vem sendo feito no futebol: “Aquilo que nasce da espontaneidade do povo nas ruas deve ser cultivado com carinho para que o talento seja encontrado, floresça. Apesar de aparecerem Neymares solitários aqui e ali, a Copa do Mundo foi aquela tragédia. O mesmo com a música dominada por pessoas que não entendem nada e não criam a infraestrutura para que o talento apareça. Todos esses pagodes não valem uma pausa do Cartola. E isso que chamam sertanejo não passa de um bolerão de bordel de cais do porto”.
O tom é ácido, mas nada de complexo de vira-lata: o fenômeno seria mundial. “Veja Beyoncé, uma mulher belíssima com uma técnica vocal e uma voz fora do comum. No entanto, para ela cantar é preciso gelo seco, dez bailarinos correndo em volta, luzes coloridas piscando incessantemente e uma letra que diz ‘ponha o dedo na minha calcinha e me excite’. Ou seja, chegamos num nível de agressividade que mostra que estamos na mão de gente que não sabe o que fazer com a sensibilidade”, alfineta Medaglia (que, apesar de jamais recusar o “senhor” que lhe é dispensado durante a conversa, tem um tom jovial que combinaria mais com um simples Júlio, ou até Julião). E no Brasil o quadro é ainda pior, já que temos uma “cultura popular de importância cultural”, ressalta a todo momento. Ele chegou a produzir uma série de documentários sobre música brasileira para a televisão de Baden-Baden, região da Alemanha, e ao traduzir as letras recebeu uma bronca do diretor, que não acreditava no tremendo sucesso que eram aquelas composições tão ricas: “Eu disse popular!”, reclamava o alemão. O pop da terra de Goethe, Mozart e Heidegger nunca foi sofisticado, mas, sim, uma alternativa ao erudito, com destaque para o rock, abominado pelo maestro, à exceção do talento, como o de Frank Zappa, com quem estudou em Freiburg. “Sabia tudo e por isso fez um rock inteligente.” Ali também foi vizinho de Heidegger, quem usava para acertar o relógio: “Ele saía para caminhar pontualmente às 12h45 todo dia”, ri.
No campo da música erudita, porém, ele, que comanda o Prelúdio, concurso de calouros de música clássica da TV Cultura, acha que as coisas vão até bem, com muitas orquestras benfeitas e – o que ele considera o mais importante – os trabalhos feitos com jovens carentes Brasil afora por nomes como João Carlos Martins, na favela de Paraisópolis, em São Paulo, e Jony William Villela Vianna, em Campos dos Goytacazes, no Rio de Janeiro – “O (Anthony) Garotinho jamais imaginaria isso!”, caçoa –, pois criam gerações de músicos, o que é mais profundo, perene. Ele mesmo já montou uma orquestra em Manaus. “Tinha um só músico em todo o estado e em três anos formamos o suficiente para quatro orquestras”, conta, autocongratulatório. Há pouco tempo, o paulistano neto de italianos, bem bairrista, iniciou um projeto em São Bernardo do Campo inspirando-se em Birmingham, na Inglaterra, cidade-dormitório industrial que a partir de uma orquestra teve sua vida cultural transformada. “Só posso dizer que, infelizmente, São Bernardo não é Birmingham”, diz, resignado, e emenda: “Lá há uma placa de boas-vindas ‘à cidade da orquestra’, inverteu-se o jogo. Aqui, após dois anos, vários concertos bem-sucedidos e um trabalho sério com apoio do prefeito Luiz Carlos Marinho, batemos nas portas de Volkswagen, Scania, Ford e Mercedes, as grandes fábricas dali, com um projeto aprovado pela Lei Rouanet, para abater do imposto. Não nos responderam”, lembra, dessa vez, indignado. “Temos a mania de copiar o que há de pior dos lugares, principalmente dos Estados Unidos. Lá existe até uma estatal, a National Endowments for the Arts, para auxiliar empresas na escolha de projetos comunitários para apoiar – senão são até boicotadas. Mas preferimos importar coisas como hip-hop, uma verborragia violenta que abdica completamente da música.”
MAIOR QUE 20 CM
O maestro chega no horário combinado ao restaurante Parigi, em São Paulo, mas por um mal-entendido acaba se sentando em outra mesa. Ao telefonar para a reportagem, quase irritado, desfaz-se o equívoco. Ele vem em direção à mesa reservada para o encontro calmo, mas agitado. Com os olhos sempre arregalados, que têm um brilho de dar gosto, desses de garoto sonhador, ele começa a conversa faceiro, antecipando o boa-praça que transparece ser. Exímio contador de histórias e convicto de suas posições no limite da irredutibilidade, ele segue, quase a discursar, para deleite dos ouvintes dispostos a aprender sem interromper muito.
Chamar Júlio Medaglia de maestro é simplificação. Podemos dizer que ele já fez tudo o que chamamos costumeiramente de arte. Reger orquestras, fazer arranjos e criar trilhas sonoras conviveram com o escritor – que hoje é membro da Academia Paulista de Letras –, o ator – premiado como melhor coadjuvante pela Associação Paulista de Críticos de Arte – e o diretor-artístico de rádio – Roquette Pinto e trilhas sonoras da Rede Globo –, que fazem questão de deixar sua competência sublinhada. Tudo isso começou cedo. Rompendo o clichê da sociedade casa grande e senzala em que cresceu, Medaglia foi iniciado, sim, pela empregada doméstica da casa de seus pais – mas no violino, seu instrumento original. “Percebi logo que o mundo era bem maior que os 20 cm do braço do meu violino e fui me aventurando em outras searas”, lembra. Oralizar os concisos e gráficos poemas concretos com os irmãos Augusto e Haroldo de Campos foi uma dessas primeiras incursões no mundo externo às partituras. “Nessa época o isomorfismo era nítido e sedutor: a poesia concreta, a bossa nova, a arquitetura de Niemeyer, eram todos muito parecidos numa riqueza extremamente enxuta. Assim me aproximei da cultura popular, da bossa, mas também daquele jazz cool de então, aquela coisa de diminuir notas e aumentar a tensão. Era o tempo da implosão – bem diferente da explosão que viria com a tropicália”, suspira nostálgico, sempre dedilhando a mesa ou erguendo os braços como que a reger uma orquestra imaginária para ilustrar seus devaneios. Para comer, o nhoque de batata assada com lascas de haddock, a primeira sugestão do garçom que foi logo aceita pelo apressado maestro – “Vamos experimentar! O senhor (garçom) recomenda?” –, que ainda aproveitou para pedir rapidamente uma taça de vinho “encorpado; tinto; seco.” (O rapaz começa a balbuciar as opções) “Pode ser argentino ou chileno, sim. Alamos Malbec? Claro, pode trazer.” O maestro faz uma pausa antes de prosseguir: “A vida sem vinho deve ser triste”. E continuamos a conversa.
O INÍCIO, O FIM E O MEIO
“A palavra jovem nos anos 1960 era feiticeira, significava ser inovador, inteligente, provocador”, garante Medaglia. “Tom Jobim e Cartola tinham aquele excesso de sensibilidade, era a melhor música do mundo, mas simples, provocadora de tão enxuta.” (Ele bate dois dedos alternadamente na mesa cantarolando baixinho o início de “Águas de Março”, de Jobim: “É pau, é pedra…”). “Já com Chico Buarque, Caetano, Gilberto Gil e aquela turma era a música inteligente, juntando vanguarda com retaguarda, música intimista com erudita, vocal com instrumental, eletrônica com Vicente Celestino, poesia concreta e da cuíca de Santo Amaro, um caldeirão a formar um todo harmônico. Até prejudicou a música brasileira porque, nos anos 1970, ninguém mais sabia o que explorar e voltou o bolerão com Simone e Angela Ro Ro”, resume. “Fui o elo dos baianos com o teatro de Zé Celso, com a poesia concreta dos irmãos Campos e Décio Pignatari e com a música erudita. Foi o Caetano quem me propôs que eu fizesse o arranjo de ‘Tropicália’ depois de assistir a uma peça escrita por Bráulio Pedroso, uma espécie de cabaré brechtiano que tinha uma música minha cantada por Walmor Chagas e Cacilda Becker”, frisa, lembrando que “na época a cultura popular puxava o carro da nacional. O festival de 1967 da Record, que consagrou ‘Ponteio’ de Edu Lobo, deu 94 pontos de audiência: Paulo Machado, o dono, mandou pendurar o boletim na parede da emissora. Um caviar musical! E querem me convencer que o povo não gosta do que é bom”, protesta ele, que foi jurado do festival e jurou ao jornalista Fred Melo Paiva, em 2007, que sentiu o vento do violão de Sérgio Ricardo (que se irritou com a plateia ruidosa e destruiu seu violão antes de atirá-lo imprudentemente contra o público para eternizar-se no anedotário nacional.) Ferreira Gullar e Salomão Schwartzman juraram o mesmo.
DANÇA DA MANIVELA
Devidamente almoçado e terminado o vinho, que estava “uma delícia”, o maestro experimenta a sobremesa, espuma de manga. Apesar do açúcar, segue a vislumbrar amargos prognósticos para o pop mundial: “Imagine você o presidente da Hyundai decidir voltar aos tempos dos carros a manivela. É impensável! Mas na música parece que ocorre isso, quanto mais a tecnologia avança mais se anda para trás”, reflete. Mas sem tropeçar em ludismos: “A internet é genial, não me entenda mal, mas é imbecil, é apenas um banco de dados. Se você puser um computador diante do desconhecido ele será mais inútil que uma barata. A ‘Crítica da Razão Pura’, de Kant, está toda na rede e se você pesquisar a ‘Nona Sinfonia’, de Beethoven, terá um milhão de resultados. Ninguém vira filósofo ou passa a apreciar boa música por isso. Há que viajar, ler, estudar. Se o ser humano não melhorar, a tecnologia não melhora”, pontua sério.
O potencial imbecilizante não tem limites, segundo o raciocínio de Medaglia, que agora toma café – e fôlego – antes de seguir: “Foi-se o tempo em que um gole de vinho ou um simples olhar emocionavam as pessoas” e que “hoje é necessário uma coisa pobre, agressiva, a manter o sujeito consumindo o descartável, como quer o mercado para vender seus produtos”. A tristeza, contudo, é que não se trata de plástico: “Com celular funciona bem, já tive uns 20 e quando se tornar obsoleto trocarei novamente. Mas as coisas da alma não são assim, dá para escutar Mozart uma vida toda”. O maestro, aliás, mostra-se particularmente irritado com os livros de colorir como best-sellers. “Eles deviam vir com babador para não borrar. Fica lá a criança no computador e o papai colorindo e babando no livrinho”, impacienta-se.
Mas, afinal, estamos fritos? “Nos anos 1950 tinha aquele bolerão dos Orlandos Silvas, Angelas Marias e Nelsons Gonçalves. Os meninos da bossa nova estavam lá no canto deles cantando baixinho em apartamentos e acabaram roubando a cena. Acredito na guerrilha do talento para minar os alicerces dessa grande indústria”, resiste Medaglia. Aos 77 anos, ele está bem feliz com os novos tempos, por outro lado, já que lembra que seus tios nessa idade “pareciam que já estavam mortos”. O maestro diz ter planos para os próximos 40 anos. E, sim, bastante otimista: “Estou seguro que imbecilidade cansa”. Mais ou menos como o encerramento do poema de Sant’Anna a ponderar que “o aumentativo de fome possa ser revolução”.
MAESTRO POPULAR
Em 2008, Júlio Medaglia foi demitido da TV Cultura por João Sayad, presidente da Fundação Padre Anchieta no governo Serra. “Ele arruinou a prefeita Marta Suplicy quando foi secretário e meteu os pés pelas mãos numas questões de imposto, foi o pior secretário da Cultura que o estado já teve (e achávamos então que estávamos no fundo do poço) e chegou querendo até vender propriedades, achava que um andar bastava. Ele não é do ramo! E pôs uma assessora com ódio para demitir pessoas que estavam lá fazendo um trabalho sério há anos em uma entidade de direito privado, sem apadrinhados”, indigna-se. Sayad entrou no lugar de Marcos Mendonça, que depois reassumiu. Ao sair, o ex-secretário soltou o artigo “Taxonomia dos ratos”, que falava da pequena corrupção, a pior, que suga as instituições por anos a fio. O maestro, feliz com a volta de Mendonça, “um homem que entende de cultura e produção”, já havia sido readmitido na gestão anterior. “Fizeram um movimento, ‘amigos do Medaglia’, que até hoje não sei quem foi, e encheram o e-mail dele de agressões. Ele até me aumentou o salário”, ri, maroto.
PROFESSOR PARDAL
Quando estava na Globo, Medaglia dirigiu um núcleo que marcou época no quesito trilhas sonoras. “Eu praticamente morava na casa do Dias Gomes e da Janete Clair, estudando minuciosamente cada personagem e encontrando músicas condizentes. Depois os arranjadores preparavam temas tristes, alegres etc. para casar perfeitamente com o enredo. Hoje não há essa preocupação, quem paga entra”, constata desolado. “‘Que Rei Sou Eu?’ vendeu quase 3 milhões de discos, era bom negócio”, garante ele, que chegou a propor para Roberto Marinho (“o único carioca bom na Globo, que na verdade é uma emissora paulista”) alugar um cinemão antigo e com as sobras de cenário e com o elenco ocioso fazer um laboratório de cultura. “Não havia interesse”, resigna-se.
TROPICALISTA
Júlio Medaglia é paulistano de carteirinha, boné MMDC e passeata de 9 de Julho. Não desce do orgulho à cidade nem na hora de elogiar a condução da cultura por Vargas: “O pior presidente foi o melhor nesse campo, um ditador que soube se cercar”. Ele falava então das ilusões do século 20, quando dois terços da população mundial viraram socialistas e apostaram que o homem competitivo daria lugar ao solidário e a posterior derrocada. “Hoje o dinheiro manda, e metade do Brasil não tem saneamento básico…” Lembramos de um concerto em que ele enumerou a frota de helicópteros, as vendas das butiques e outros dados endinheirados de São Paulo, mas ele refuta ter sido protesto: “São dados impressionantes! Na Itália ficaram embasbacados quando eu disse que meu avô fez parte disso, não sei quem inventou que era ironia”, defende.
IL PADRINO
“O John Neschling não existia até reger ‘O Guarani’, célebre composição de Carlos Gomes (‘A Voz do Brasil’ a empresta como vinheta), na Alemanha, a convite de um empresário de lá, seu amigo. Ele regeu Plácido Domingo, fizeram o maior barulho e ele acabou vindo para a Osesp (Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo)”, ataca Medaglia. Em recente confusão, Neschling, atualmente diretor do Theatro Municipal de São Paulo, se desentendeu por meio dos jornais com o diretor cênico Giancarlo del Monaco, convidado para montar “Otello”. Ele teria externado dúvidas quanto à regência que vazaram e, segundo ele (em versão encorajada por Medaglia), enfureceram o maestro. “Acontece que o ex-governador José Serra (PSDB) demitiu o Neschling depois de umas barbeiragens e o Juca Ferreira, secretário municipal de Cultura (governo do PT), agora trouxe de volta por picuinha”, explica impaciente. “E a cultura nacional fica refém desse tipo de briga de meretrizes!” Os termos, claro, foram outros.