O economista, e professor do ITA, e delfim boy, e cartola corintiano, e boa-praça, enfrenta um steak tartare valentemente: nada de titubeios sobre Lula, Andrés Sanchez, Marcelo Odebrecht, Itaquerão ou arbitragem
Por Fábio Dutra para a revista Poder de fevereiro
O economista Delfim Netto é uma das figuras mais emblemáticas, polêmicas e duradouras da vida política brasileira. Famoso pela precocidade intelectual – uma lenda da graduação em economia da FEA-USP, onde os boatos lhe atribuem um 10 perfeito, ou seja, total em todas as disciplinas cursadas –, Delfim também escalou rápido os degraus do poder e chegou a ministro da Fazenda da ditadura militar em 1967 (sim, ele assinou o Ato Institucional nº 5) antes dos 40 anos. E como bom mestre, sempre levou consigo os mais brilhantes discípulos, logo apelidados de delfim boys, o que lhe deu uma visão capilar do Estado digna de um bom coronel nordestino – e muito além do que geralmente os tecnocratas costumam saber. Talvez por isso, ou por sua capacidade de se renovar, Delfim sobreviveu ao ocaso político imposto pela turma da Escola Superior de Guerra, autoproclamada “Sorbonne brasileira”, a turma de Ernesto Geisel, depois da derrocada de seu milagre econômico após o primeiro choque do petróleo do início dos anos 1970: voltou ao governo pelas mãos do ditador João Figueiredo, após o segundo e mais severo baque causado pelo ouro negro à beira da década de 1980. Na bagagem, além de novas fórmulas e retóricas, mais condizentes com o período de abertura política, o biministro trouxe consigo uma segunda geração de garotos brilhantes. O mais notável, que faria voos próprios a partir dessa primeira experiência no poder central, atende pelo nome de Luis Paulo Rosenberg – que gentilmente atendeu ao pedido para almoçar com PODER.
DELFIM BOY
Acabamos de entrar no restaurante quando Luis Paulo Rosenberg chega, pontual, para o compromisso. É um homem raro, desses que aparentam estar muito confortável nos próprios sapatos ao mesmo tempo em que presta atenção ao entorno sinceramente, tratando todos bem de forma quase espalhafatosa. Ele pergunta e presta atenção na resposta. E cumprimenta olhando nos olhos, do garçom à reportagem. A genuinidade, tônica da conversa do começo ao fim, mais tarde será explicada como característica corintiana – mas não vai colar.
Sobre Delfim, ele se derrete, garantindo que o padrinho, além de estudioso e workaholic – “ai de nós se ele ligar pra comentar um novo artigo e não tivermos tido tempo de ler” –, toma conta de todos os aspectos da vida, incluindo casamento e criação dos filhos: “É um privilégio poder contar com tamanho apoio acadêmico, profissional, e ainda ter uma segurança emocional desse porte, é um verdadeiro godfather”, suspira. Além da “verdadeira idolatria”, ele comenta sua trajetória ao lado do mestre como “uma incrível capacidade de caminhar junto” mesmo quando nem sempre estão de acordo. Rosenberg diz que só viveu experiência igual ao lado de Andrés Sanchez no Corinthians, algo bem mais inverossímil, mas que ele sustenta com unhas e dentes. Após passar pelos governos Figueiredo e Sarney, foi no clube paulista, no início dos anos 2000, que ele se pôs a disputar voto. Virou diretor de marketing em 2008: “Ser corintiano é como ser catalão: não queremos separar, está certo, mas, antes de brasileiro, eu sou Corinthians! Se jogarmos com a seleção eu xingo todos os jogadores de amarelo de vendidos!”, diverte-se.
VAI CORINTHIANS!
Andrés Sanchez, 53 anos, o mais polêmico e proeminente presidente do Sport Club Corinthians Paulista desde o folclórico Vicente Matheus, foi personagem deste almoço de PODER (edição 80, de fevereiro de 2015) a contragosto, convencido pelo próprio Rosenberg. Ironia do destino, na mesma bat-data e no mesmo bat-local, o ex-diretor de marketing do alvinegro almoçava com ninguém menos que Roque Citadini, arqui-inimigo de Sanchez. A reportagem acompanhou o imbróglio e viu o ex-presidente corintiano, que passou na mesa adversária e cumprimentou todos cordialmente, chamar Rosenberg ao exterior para conversar após o almoço. Fumando, Sanchez gesticulava insatisfeito. Rosenberg minimiza, e diz que nunca se indispôs com ele:
“Quando o então presidente Alberto Dualibi propôs a parceria com a MSI (do bilionário russo Boris Berezovsky, que trouxe Tévez ao time para ganhar o polêmico Brasileirão de 2005, de Tinga e Edílson Pereira de Carvalho, mas que terminou por levar o time à série B após o rompimento), o Roque foi contra, eu junto, e o Andrés a favor. Depois fomos gestão Sanchez e ele foi ferrenha oposição, marcando em cima, mas republicano. Lembro-me de quando a oposição tentou votar um projeto alternativo do Itaquerão, nos atropelando, e ele, presidente do core do conselho não deixou, alegando que a diretoria tinha a prerrogativa de mostrar o dela antes. Roque Citadini é lobo solitário, mas preza pelos interesses do Corinthians em primeiro lugar – e de fato eu achava que era a hora de ele ser presidente depois da gestão do Mário Gobbi”, explica, garantindo que Sanchez continua seu amigo e que respeita sua autonomia de pensamento.
Perguntado sobre o ex-presidente Lula, por conta da construção do Itaquerão pela Odebrecht que povoa as manchetes, obra tocada pela diretoria corintiana da qual fazia parte, Rosenberg dá uma aula sobre Sanchez, Lula, ou sobre gente: “Sabe, eu dei aula mais de 20 anos no Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA) e aqueles meninos, até pelo vestibular, são brilhantes. Noventa por cento são filhos da classe média, mas tem uma minoria que veio de baixo, se fez sozinho. E adquirir raciocínio analítico sem estímulo não é brincadeira, esses 10% sempre me impressionaram, eles são poderosos! O Lula e o Andrés são desses, são geniais, com a diferença de que o Lula nunca se ressentiu de não ter tido educação formal. Então, ele não se sente inferiorizado em círculos que eventualmente o menosprezam tacitamente, ele sabe que é bom; o Andrés criou autodefesas pra esses momentos. Tanto que a imagem pública dele de intratável nada tem a ver com a realidade, ele é um doce com as pessoas, é grande amigo”, filosofa Rosenberg. Bom saber.
IMAGINA NA COPA
Seguimos bebendo água, mas pedimos unanimemente três steaks tartare com fritas (elementary, my dear Watson) e o clima parece ameno o suficiente para perguntar sobre palavras-chave das manchetes de 2016 – Itaquerão, Lava Jato, propina. “Propina que o Corinthians paga deve ser brincadeira”, estabelece, ríspido, sobre a dívida que afoga o clube. Ele não nutre a menor simpatia pela construtora Odebrecht – “uma empresa de serviços, terceiriza tudo, a atividade-fim é reajustes e aditivos”–, muito menos pelo “arrogante” Marcelo Odebrecht, mandatário da empreiteira – “se é verdade que a juventude é uma doença que o tempo cura, pra que dar tanto poder a um garoto?”. Mas refuta a ideia de presente ao corintiano Luiz Inácio Lula da Silva. Segundo ele, havia um projeto inicial, menor, que se transformou por causa da necessidade de ser a sede da abertura da Copa do Mundo de 2014. Dada a vedação à obtenção de crédito por clubes junto ao BNDES, eles tiveram de topar a Odebrecht, mesmo tendo preços melhores, pois a construtora devia pôr na mesa as garantias, um trabalho hercúleo por conta da tergiversação de Marcelo. Por fim, o Banco do Brasil caiu fora, mas a Caixa Ecônomica Federal topou. “Tínhamos um projeto pronto, que foi ampliado, mas o estádio que fizeram não foi o que tinha na maquete, o acabamento é terrível. Agora segue a dívida e vamos pagando para concretizar o sonho do estádio”, lamenta, mas alegre pela cereja do bolo de sua gestão à frente do marketing.
Luis Paulo Rosenberg, corintiano fanático, desses que não têm roupa verde, explica que sempre esteve no clube, mas só aceitou o desafio de dedicar seu precioso tempo a uma função executiva por conta do momento dramático do time, que tinha caído pra Série B e se dividia entre dívidas, frustação da torcida e investigações da Polícia Federal pós-MSI. Na sua cabeça, ficaria apenas um ano, 2008. “Mas aí fechamos com o Ronaldo (o Fenômeno voltou da Europa para jogar no alvinegro no início de 2009) e foi aquela coisa…”, lembra, saudoso. Cair para a segunda pode ter sido ruim, mas estar lá foi bom: custos menores e boa grana. Sob o comando de Rosenberg, o time do povo de São Paulo – e do poder – , conseguiu naquele ano mais dinheiro de televisão do que o Flamengo, o time do povo do Brasil, na Série A. A Rede Globo mostrava os jogos da segunda divisão do time do Parque São Jorge por interesses comerciais e de audiência, o que não costuma fazer com outros times grandes quando vão ao fundo do poço. Mas ele não comemora: “É como aquela filha querida que cai na prostituição, mas acaba por virar a menina mais desejada: nem por isso você vai comemorar”, brinca.
Fato é que a reestruturação deu certo e ele cumpriu os pontos principais da gestão: dar casa (Itaquerão) e passaporte (ganhar Libertadores da América e Mundial Interclubes) ao Corinthians, acabando com os maiores estigmas do clube. E, por isso, apesar de criticar a atual gestão, sem foco e profissionalismo, e apoiar chapas aqui e ali, ele diz que não voltará a um cargo executivo no futebol. “Eu tive casamentos satisfatórios com mulheres maravilhosas, tenho filhas lindas, netos incríveis, ganhei dinheiro. A única coisa que faltava era ganhar um Mundial, o que fizemos em Tóquio. O que mais eu posso fazer lá? Sou um homem realizado.”
OLHAR PANORÂMICO
Intelectual experimentado nas disputas políticas, o economista diz que prefere o clube porque o interesse comum é mais claro que a multifacetada disputa pelo Estado, mas não se exime de dar suas opiniões. Sobre o Corinthians em particular, fica em cima do muro (salvo quando citamos as ambições do ex-jogador e comentarista Neto de chegar à Presidência e levamos um “a piada tem limites” entre gargalhadas como resposta), mas sobre o Brasil em particular é incisivo: Temer tem se mostrado à altura do desafio da transição. Tal qual Delfim Netto, quem ele elogia por ser respeitado e transitar por todos os espectros, da extrema esquerda à extrema direita, Rosenberg também olha para todos os lados. Segundo ele, o primeiro ano do primeiro governo Dilma foi “talvez a melhor presidente que já tivemos”, pela atenção às questões fiscais e ao superávit e o indiscutível padrão ético da época da chamada faxina. A presidente eleita em 2014 teria jogado tudo por terra ao acelerar no momento de frear, acredita ele, gerando o caos econômico.
Para o economista, o legado do impeachment e das medidas liberais de Temer levará à escolha de um presidente comprometido com a responsabilidade fiscal e com o desenvolvimento, e comenta alguns nomes. Lula: muito difícil chegar a ser candidato; Ciro: um cérebro brilhante, mas extremamente briguento, não me admira que o dólar chegue a R$ 5 se ele tiver chances reais de ser eleito; Alckmin: dos nomes aventados é o que tem maior experiência administrativa, a qualidade mais necessária no atual momento, muito boa opção. E lança um nome um pouco surpreendente: Jarbas Vasconcelos – “grande nome com a característica de ser nordestino e não olhar só para o sul e sudeste, algo muito positivo”, avalia.
Estamos no cafezinho e tomamos coragem para perguntar sobre as acusações pelo Ministério Público de que contratos de consultoria do padrinho Delfim Netto sobre a obra da hidrelétrica de Belo Monte seriam propina. O afilhado Rosenberg dá de ombros e refuta: “A pergunta é outra? O que faz um homem de quase 90 anos, resolvido e com um neto lindo, continuar trabalhando e se interessando pelo país?”. Nesse momento, o corintiano lembra de um professor de sociologia que teve na graduação. “Ele nos perguntava: se subíssemos numa escada no meio do Mappin (ainda tinha Mappin!), os passantes iam ajudar a segurar ou a sacudir a escada? E a resposta era que todo mundo sacode, que o normal do ser humano é tentar arrastar os outros para a mediocridade, e por isso essa perseguição aos bem-sucedidos”, sustenta. Não sabemos se Delfim sobe escadas, mas o fato é que não nos cabe sacudir.