Luedji Luna é destaque da nova MPB com talento e discurso engajado: “Enquanto negros estiverem morrendo, nem esquerda nem direita me representam”

A imagem forte de Luedji Luna é daquelas que capta todos os olhares de cara. Alta, rosto anguloso, atitude, ‘pero sin perder la ternura’. Ela, assim como suas canções, podem enganar à primeira vista. A sonoridade é suave, mas as letras carregadas de significado e protesto. Não por acaso Luedji, sim esse é seu nome de batismo, de origem africana e significa amizade, rio e lua, tem conquistado cada vez mais fãs por onde passa. Este ano se apresentou no concorridíssimo SXSW, em Austin, ao lado do DJ Nyack, parceiro de Emicida, e se prepara para encarar uma turnê pela Europa. Tá bom ou quer mais? E tudo isso com um propósito muito bem delineado em seu caminho: mandar a real sobre racismo, feminismo e outras questões tão discutidas nos dias de hoje, porém ainda muito distantes de um ideal de igualdade de gêneros e raças.

Baiana nascida em Cabula, bairro de Salvador que foi povoado por povos africanos que vieram de países como Angola e Congo, e que tocavam e dançavam um ritmo quicongo religioso, conhecido como kabula, sempre soube qual era seu lugar no mundo, graças a seus pais, Orlando e Adelaide, um historiador e uma economista, ambos funcionários públicos e militantes do movimento negro da capital baiana. “Meus pais são dois heróis. Se conheceram muito jovens, no contexto da militância de esquerda negra, em Salvador. Estavam na faculdade, ele de História e ela de Economia, e conseguiram subverter a marginalização e dar uma condição de vida melhor para a família”, orgulha-se Luedji, 31 anos, que antes de mergulhar na carreira de cantora se formou em Direito e reconhece que muito de sua força e posicionamento vem do fato de ter tido a oportunidade de estudar e ter uma família que a orientasse. Confira mais dessa conversa empoderada de Luedji Luna com Glamurama:

Glamurama: Só para começar: Luedji Luna é seu nome verdadeiro?
Luedji Luna: Meu nome é Luedji Gomes Santa Rita. Luna é artístico. Luedji é um nome de origem africana, da região do Congo e Angola. Era uma rainha e significa ‘amizade, rio e lua’.

Glamurama: Você é baiana…
LL: Sim, nasci em Cabula, bairro de Salvador com grande influência afro e me criei em Brotas, que é próximo. Há quatro anos troquei a Bahia por São Paulo.

Glamurama: E como foi essa mudança?
LL: Difícil, mas necessária. Mudei para São Paulo quando decidi seguir a carreira artística. Não venho de uma família de músicos, não tinha um incentivo nesse sentido, mas sempre gostei de música. Sempre fui muito criativa. Tomei a decisão de seguir a carreira artística tarde, aos 25 anos. Depois disso ainda fiquei dois anos em Salvador tentando entender como seria trabalhar com isso, até perceber que tinha que vir para São Paulo, onde teria mais possibilidades.

Glamurama: São Paulo não é uma cidade fácil.
LL: É uma cidade muito dura, fria e cinza, mas sempre pronta a abraçar o novo, com grandes possibilidades para quem trabalha. Isso permite que a gente cresça. Sou muito grata, apesar de todas as dificuldades e diferenças culturais. Batalhei durante dois anos até que alguma coisa desse certo. A primeira dificuldade, além do clima mais frio, foi o fato de não me enxergar na cidade. Venho de uma cidade que é 80% composta de negros, onde me sentia parte daquilo. Em São Paulo minha cultura não é referência. Tem uma coisa que acontece em Salvador: todo mundo conhece todo mundo, tem um sentimento de comunidade que não se vê em uma cidade como São Paulo. Mas depois passei a ter intimidade com o lugar e ser reconhecida. Hoje estou superadaptada e não me vejo vivendo em outro lugar no momento.

Glamurama: Esse processo de adaptação acabou gerando seu primeiro álbum, ‘Um Corpo no Mundo’, lançado em 2017. Antes o clipe homônimo já havia viralizado no Youtube. Como foi esse momento?
LL: Foi aí que veio a inspiração de falar justamente sobre o povo negro no Brasil. Somos mais da metade da população brasileira, e não nos vemos representados politica e socialmente. ‘Corpo no Mundo’ viralizou no Youtube. As pessoas começaram a pedir um disco, a me conhecer, fazia festas, showzinhos. Foi uma surpresa, ao mesmo tempo que já esperava por isso, sou muito estratégica. O clipe foi feito para dar certo. Tinha um debate importante, qualidade técnica, produção feminina e preta em um campo machista e racista.

Glamurama: Você acha que a música e a arte de modo geral estão tomando um rumo mais engajado, com mais propósito?
LL: Acho que sim. Sinto que o público não quer apenas a arte pela arte, quer narrativa, propósito, ideologia, fundamento, tudo no mesmo pacote. Sinto um movimento nesse sentido na MPB. A internet chegou para democratizar tudo. E a arte veio no bolo. Vim da cidade preta para a cidade branca. Foi num momento propício da arte ligada a uma narrativa. Cheguei a ir a saraus na periferia, nas quebradas, trocar com imigração africana.

Glamurama: A Bahia é sempre foi um celeiro de arte e música, com artistas que muitas vezes só fazem sucesso localmente. Por que você preferiu sair de lá para encarar sua carreira musical em São Paulo?
LL: O segmento que monopolizou a Bahia foi o axé. Outra coisa é ser uma artista independente, na contramão, e conseguir se destacar. A maioria tem que sair para dar certo. É muito comum.

Glamurama: Fale um pouco da sua infância, de seus pais.
LL: Meus pais são dois heróis, se conheceram muito jovens, no contexto da militância de esquerda negra, em Salvador. Ambos estavam na faculdade, ele de História e ela de Economia. Conseguiram subverter a marginalização e ter uma família estabilizada, com uma condição melhor de vida. Foi justamente o debate racial e político, essa consciência, que tirou eles desse local periférico onde os negros ficam. Mudaram a vida deles e a minha. E eu dou continuidade a um processo que ainda é necessário. Um pai de família morto com 80 tiros mostra que o Brasil é um país que mata pessoas negras. Isso é fato! É uma responsabilidade entender que meu trabalho está a serviço dessa militância, desse propósito, da minha família. Conquistei poder porque estudei em colégio particular, meus pais sempre me orientaram…

Glamurama: Você se formou em Direito, não é?
LL: Sim, sou formada em Direito. Tive várias crises no meio do caminho. Escolhi uma faculdade convencional, foi uma escolha pragmática. Ainda não me enxergava no mundo. Não sabia o que fazer. Foi total no risco. Cantava e compunha desde criança, mas todos levavam como brincadeira. De repente, estava estudando decidi virar cantora. Queria cantar o que eu pensava, o que acreditava. Terminei a faculdade, fiz escola de canto, participei de recitais, me apresentei. Fiz um grande show em um teatro do Pelourinho, divulguei legal, e depois disso vim pra São Paulo.

Glamurama: Como é seu processo de criação?
LL: Minha música é ligada à militância, com esse compromisso. Meu processo de criação é bem livre. Já nasce empoderada, mensageira… Não forço nada. Não tenho um método. Sou uma mulher preta consciente. É tudo espontâneo. Acho que a vida é muito generosa. Em todas as minhas 24 horas do dia, sou mais cantora do que filha, do que namorada, do que amiga… É só o retorno de todo esse trabalho, esse amor. No início me surpreendia. Ir na casa do Caetano (Veloso) ou tomar uma cerveja com a (Maria) Gadu. Me sinto merecedora desse lugar, com toda a humildade. Me sinto tranquila, nada deslumbrada. Subi essa escada.

Glamurama: Você se considera feminista?
LL: Para mim, o feminismo nasce a partir de uma mulher preta, com minha mãe compartilhando com meu pai as responsabilidades da criação. Na minha adolescência, o feminismo era branco, punk… Não me interessava. Salvador é a cidade do matriarcado, especialmente nas famílias pretas. A mãe é que manda. O empoderamento vinha das minhas raízes. Depois com internet e outras leituras, construí relações com mulheres pretas, trocando sobre nossas vivências, nossas ambições. Sou feminista com contradições, erros, dúvidas, mas estamos construindo uma nova realidade. Quando a base se move, toda a estrutura se move junto. Não tem jeito. Estou muito feliz e tranquila de estar fazendo essa mudança, somos nós que vamos mudar o mundo.

Glamurama: E sobre a militância política e social?
LL: Tenho cultura de esquerda, que vem dos meus pais, que construíram um partido, uma ideologia, um projeto político. Tenho uma opinião bem definida sobre isso. A gente é fundamento e não mais recorte. Estamos em posição de disputar o poder. Ambos os projetos que se apresentam agora, de esquerda ou direita, não me representam. O genocídio do povo preto continua. O Brasil já cansou a comunidade quilombola, negra, LGBT… mesmo nos anos da esquerda branca, a despeito de tudo conseguimos, como ascensão social e política. O atual retrocesso é resposta ao avanço dos últimos anos. Vamos seguir lutando com direita ou esquerda. Me sinto cada vez mais forte. O grande projeto do Brasil sempre foi o extermínio do meu povo, e a gente continua aqui, sendo a resistência, sendo o assentamento desse país. Não me sinto com medo desse indivíduo que foi colocado no poder e vamos seguir avançando. O Brasil ainda está aprendendo a ser um país democrático. Continuo esperando a real esquerda e a real democracia. Mas enquanto negros estiverem morrendo, nem esquerda nem direita me representam.

Glamurama: Quais seus próximos projetos profissionais?
LL: Quero fazer um novo álbum falando de amor, de como a população preta é carente de afeto. Em maio, vou lançar o EP ‘Mundo’ idealizado por mim e o DJ Nyack. O projeto consiste na releitura de 5 canções do disco “Um Corpo no Mundo”, com participações de MCs em cada uma das faixas: Djonga, Stephane Mc, Ricon Sapiencia, Zudizilla e Tassia Reis. Dias 1 e 2 de junho faremos um show no Sesc Pompéia, e em julho sigo para turnê pela Europa e depois Nova York.

Sair da versão mobile