Lorena Comparato, Karina Ramil e Andrezza Abreu, da Cia de 4, falam de representatividade no universo do humor: “Dá para fazer rir sem diminuir o próximo”

Cia de 4: Andrezza Abreu, Anita Chaves, Karina Ramil e Lorena Comparato / Crédito: Thaís Berlinsky

Humor e girl power, uma combinação bombástica. Se você ainda não conhece a Cia de 4, a hora é essa. Criada pelas amigas Andrezza Abreu, Anita Chaves, Karina Ramil e Lorena Comparato, o grupo de humor, com projetos para teatro e online, aborda questões cotidianas pelo olhar feminino e traz representatividade para a comédia brasileira, ainda dominada por homens.

Glamurama entrevistou três delas, Karina, Lorena e Andrezza em uma chamada de vídeo para lá de animada. A conversa começou na criação do grupo, em 2011, e passou por temas sérios como quarentena, dificuldades da mulher no universo humorístico e novos tempos. “Ainda existe uma discrepância muito grande nesse cenário e estamos a passos de formiga. Hoje quando vemos séries como ‘Fleabag’, e ‘I May Destroy You’, e descobrimos que elas também foram escritas por mulheres, pensamos ‘caramba, que conteúdo diferente, com representatividade e retratando um universo que reconhecemos’”, conta Karina.

Já Lorena Comparato desabafou sobre a evolução do humor: “É importante lembrar que o humor de agora não é politicamente correto ou cheio de ‘mimimi’… o antigo que era totalmente incorreto. Era sempre uma pequena parcela da população rindo em cima de uma minoria que se sentia excluída e sofria”, explica. “Estamos passando por uma transição em que o público também está entendendo mais o seu poder. Quando caímos em um conteúdo completamente homofóbico, racista e preconceituoso, as pessoas cobram”, complementa Andrezza.

Confira a entrevista com Cia de 4 e divirta-se!

Glamurama: A Cia de 4 se formou em 2011. Como vocês se conheceram e como criaram a companhia?

Lorena: Nos conhecemos em aulas de teatro, assistindo cenas umas das outras e, na escola, no caso da Anita e da Karen. Nessa época já rolava uma admiração mútua e muita competição. Era até incômodo. Cansamos disso e resolvemos nos unir.

Andrezza: E tudo aconteceu genuinamente. Era um incômodo que todas nós estávamos passando e vivendo. Era sempre uma personagem feminina para seis homens, então pensamos: vamos criar a companhia e estamos juntas há quase 10 anos.

Glamurama: Atualmente se fala muito mais em feminismo do que em 2011. Naquela época vocês já discutiam as dificuldades de entrar para o mundo do humor?

Karina: Não nos denominávamos feministas naquela época, justamente por essa pauta não ser tão discutida, mas tínhamos, de maneira orgânica, pensamentos e atitudes feministas. E hoje, é claro, somos uma companhia feminista. Queríamos criar espaço para as mulheres, convites e novos horizontes.

Lorena: Mas é bom lembrar que o feminismo está por aí há décadas, em movimentos como as mulheres buscando o direito do voto, a queima de sutiãs… e nós queríamos mais espaço. Dentro do humor, a mulher por anos foi sexualizada por que os conteúdos eram criados predominantemente por homens, e para esse público.

Glamurama: A comédia pode ser usada como uma ferramenta para ajudar e ensinar sobre feminismo de maneira leve e eficiente?

Karina: Com certeza. Permitir esse riso sobre a nossa vivência é importante. Quando vemos um texto escrito por uma mulher em que ela fala sobre o nosso dia a dia, conseguimos nos identificar, e é aí que surge a representatividade.

Andrezza: E não só isso! Com a comédia conseguimos levar pautas feministas de maneira sutil até as pessoas. Somos conhecidas por nosso humor ácido e pensamento crítico, e conseguimos passar isso através do nosso trabalho. Uma pessoa que não conhece o feminismo, ou nunca procurou saber, pode conhecer e pensar: “então isso é feminismo?” e fazer parte disso.

Glamurama: Uma pesquisa revelou que existem, em média, 2 mil personagens masculinos para cada personagem feminina (com falas) em filmes blockbusters de comédia. Vocês acreditam que isso tende a mudar nos próximos anos?

Lorena: Na minha opinião, isso já está mudando e tem uma tendência a melhorar, mas acredito que só vai realmente mudar quando começarem as políticas para isso ser implementado. Nós, como cidadãs, podemos começar a fazer essa mudança também em como agimos na sociedade, principalmente no voto. Quanto mais tivermos pessoas no alto escalão de poder representando a diversidade, mais chances de acelerar esse processo. As mulheres trans, por exemplo, ainda estão longe de terem o espaço que merecem.

Andrezza: Esse é só o início de um longo caminho. Ainda hoje, muitos projetos são coordenados por homens brancos, cis e com aquele pensamento antigo e conservador. Isso vem mudando aos poucos. Temos visto, felizmente, diversas séries com mulheres à frente, protagonizando e escrevendo, mas ainda temos muito para conquistar.

Karina: Ainda existe uma discrepância muito grande nesse cenário e estamos a passos de formiga. Hoje quando vemos séries como ‘Fleabag’ e ‘I May Destroy You’, e descobrimos que foram escritas por mulheres, pensamos: ‘caramba, que conteúdo diferente, com representatividade e retratando um universo que reconhecemos’. Estamos acostumadas a ouvir as mesmas histórias, do ponto de vista masculino, e isso vem sendo mudado muito aos poucos. Temos que ser otimistas, mas com um pé na realidade.

Glamurama: Durante a pandemia, como tem sido as apresentações da Cia de 4? Quais os planos de vocês para quando tudo isso acabar?

Karina: Passamos a quarentena inteira separadas, e o que você está vendo hoje é uma exceção, mas passamos todo esse tempo trabalhando virtualmente, principalmente em projetos que envolvem escrita. Então, como nem sempre estamos atuando, dá para fazer muita coisa online. Conseguimos fazer diversos projetos interessantes, como o ‘Zodíaca’ em parceria com o portal Hysteria, e agora estamos trabalhando no ‘Jornal das 4’ para falar sobre questões políticas.

Lorena: Antes, fazíamos poucas reuniões virtuais, mas nos adaptamos a isso na quarentena. Agora, com a cidade praticamente toda aberta, estamos abrindo algumas exceções, mas bem poucas. Nossa ideia mais pra frente é viajarmos para querentenarmos juntas, por que esse contato físico faz diferença.

Glamurama: Vocês falaram sobre política. Estamos andando para trás?

Andrezza: Com certeza, é muito triste ver o desenvolvimento de anos, em vários quesitos, regredir rapidamente.

Karina: O mundo todo está sendo impactado por essa direita extrema, e isso é uma pena. O Brasil é um país tão rico e é governado por um presidente tão careta, com ideais retrógrados, um boçal.  A cultura já estava super prejudicada e isso só piorou.

Lorena: Sem contar as leis que protegem a mulher de violência doméstica, por exemplo. A gente vê que essa parte também anda desestruturada, infelizmente. E agora é um momento muito importante porque temos a eleição presidencial nos Estados Unidos e as eleições no Brasil também. E as pessoas vivem ainda numa ignorância da importância do voto consciente, porque não é só o presidente que muda as leis. As pessoas pensam que, votando em branco, estão tirando a responsabilidade das costas, mas não é assim.

Glamurama: Vocês estão de volta à TV com a segunda temporada de #ENoFilterWknd, roteirizado e estrelado por vocês. Acreditam que isso pode abrir portas para humoristas mulheres? 

Andrezza: Acreditamos muito nesse lema de uma puxa a outra, né? E queremos ir além da palavra, e fazer acontecer. Isso fala sobre nossa história e o movimento que acreditamos. Nos nossos projetos tentamos ser o mais inclusivas possível, sempre chamando atrizes para trabalhar conosco. Queremos somar. Não pode ser só na teoria, a prática tem que existir.

Karina: Não podemos falar sobre privilégio e não reconhecer nossos próprios privilégios. Então queremos ajudar a mudar isso e toda essa engrenagem.

Glamurama: Quais humoristas mulheres vocês mais admiram?

Karina: Muitas! Posso começar com a Dercy Gonçalves? Das brasileiras temos diversas atrizes, que podem não ser consideradas humoristas, mas fazem comédia com primor, como Andréa Beltrão, Drica Moraes, Heloísa Périssé, Ingrid Guimarães, Tatá Werneck. Todas são maravilhosas. E lá fora têm várias também, como Phoebe Waller-Bridge. E, se pensar na infância, temos até mesmo Whoopi Goldberg.

Glamurama: A Globo vai mudar toda sua produção de humor e já anunciou o fim de vários programas. Qual o futuro do humor e que tipo de humor será feito daqui pra frente?

Lorena: Não tem como sabermos como o humor vai mudar, mas se as mulheres puderem fazer parte dessa mudança, vai ser ótimo. É importante lembrar que o humor de agora não é politicamente correto ou cheio de ‘mimimi’… o humor antigo que era totalmente incorreto: era sempre uma pequena parcela da população rindo em cima de outra parcela que se sentia excluída e sofria. O que estamos mostrando agora é que dá para fazer rir sem diminuir o próximo.

Andrezza: Estamos passando por uma transição em que o público também está entendendo mais o seu poder. Então quando caímos em um conteúdo completamente homofóbico, racista e preconceituoso, as pessoas cobram.

Glamurama: Atualmente, o Brasil está conquistando bastante espaço nos serviços de streaming e já engatamos séries de sucesso, como ‘Bom Dia, Verônica’, da Netflix, e “Desalma”, do Globoplay. Vocês conseguem acompanhar essas produções?

Karina: Ontem terminei ‘Bom Dia, Verônica’ e adorei a série. Dentro da companhia nós temos uma política de ver tudo o que é produzido no Brasil. Não só pela valorização da nossa cultura, mas para prestigiar as pessoas que estão com a gente nesse meio, o que está sendo dito e pensado. Nós quatro temos acesso a conteúdo estrangeiro, porém ver o conteúdo brasileiro é muito inspirador. Antigamente, o país pegava o espírito americano e muitas vezes eram feitas produções que não tinham nada a ver com a gente.
Agora estamos em outro lugar. Há quanto tempo não vemos uma história com uma mulher policial?

Andrezza: E é importante não só consumir conteúdos visuais brasileiros, mas podcasts também. Existem diversas plataformas.

Glamurama: Recentemente um dos humoristas e roteiristas mais importantes da Globo foi acusado de assédio moral e sexual, e afastado de seu cargo de direção do núcleo de humor. Quando se pensa em atitudes como essas, dificilmente ligamos a humoristas, que parecem ser sempre ‘gente boa’, distantes de realidades como essas? 

Karina: Acho que toda mulher já sofreu assédio dentro e fora do trabalho, infelizmente. E eu fico pensando aonde  se cria essa ideia de que o corpo da mulher pode ser vendido, independente do trabalho que ela faça. Fico pensando se pelo fato de o corpo do ator ou atriz muitas vezes ser o nosso trabalho, acham que isso é normal. Nunca sofri assédio direto, mas já ouvi comentários, brincadeiras e provocações. É muito nebulosa o limite entre o que é brincadeira e o que não é.

Andrezza: É esse assédio velado e maquiado como piadinha, mas que é algo que nos deixa desconfortáveis. E é sempre assim: a pessoa acha que tem poder sobre o outro e esquece que até a maneira como tocam num fio de cabelo pode mexer com as nossas estruturas e nos fazer sentir invadidas.

Lorena: É muito triste essa questão do assédio. Sofremos isso até mesmo dentro da nossa própria família, e é uma realidade muito presente nos lares do mundo todo, infelizmente. Existe algo muito velado, em qualquer situação de poder, que é o assédio moral, que é alguém falar do seu corpo, ou o jeito como alguém te trata. É uma linha muito tênue e acredito que é nesse limiar que as coisas ficam nebulosas. E é nesse lugar que temos que ter cada vez mais atenção. O que eu mais vejo de assediadores são respostas no estilo: “eu não sabia que aquilo era assédio”. E, para mim, eles sabiam sim!

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