Em um dos crimes mais rumorosos da primeira metade do século passado, um imigrante italiano matou a mulher e cortou suas pernas, para que o corpo coubesse em uma mala que ele pretendia despachar para a Europa. Não deu muito certo…
Por Paulo Sampaio
O vapor Massilia estava prestes a zarpar do porto de Santos em direção a Bordeaux, na França, em 7 de outubro de 1928, quando o comandante foi chamado para resolver o mistério de uma mala já acomodada no porão do navio, que exalava um forte mau cheiro. A etiqueta de identificação da companhia francesa Chargeurs Réunis, que operava uma frota de transatlânticos, trazia o nome de Francesco Ferrero – que, segundo se verificou mais tarde, não correspondia à identidade de nenhum dos passageiros embarcados. Com 85 quilos, a bagagem era bastante pesada até para o estilo “baú” utilizado pelos viajantes da época. O que estaria ali dentro? Bem, melhor seria perguntar quem estaria ali dentro? Pois, ao abri-la, o comandante encontrou um corpo esquartejado, que os médicos legistas, logo convocados pela polícia, identificaram como sendo de uma mulher com estimados 21 anos, branca e, o mais intrigante, grávida de seis meses de uma menina. A autópsia revelou homicídio por esganadura, seguido de esquartejamento. Quase um século depois, apesar da aterradora banalização da violência em São Paulo, o caso conhecido como “o crime da mala” ainda pode ser considerado apavorante.
As manchetes dos jornais anunciavam a ocorrência policial mais impressionante registrada no Brasil até então. No dia seguinte, o dono de uma loja de malas na avenida São João, 111, procurou a polícia para dizer que, na antevéspera, havia vendido um modelo igual ao da foto publicada e ainda 3 metros de corda. A essa altura, no armazém de bagagens 14 do porto de Santos, o encarregado número 71 contava a investigadores que a mala havia sido deixada ali dois dias antes como encomenda, por um motorista que a trouxe da estação de trem. Um “italiano loiro, magro e alto” apareceu para retirá-la e quem a liberou foi o carregador número 79, que reparou que o lugar onde ela ficou estava manchado com algo que parecia sangue, atraindo moscas. O italiano contratou um “chauffeur” para conduzi-la até o cais. “O moço estrangeiro permaneceu sentado em cima da mala, calmamente, durante todo o trajeto”, relatou o motorista em seu depoimento. No cais, algumas crianças que brincavam próximo ao italiano se afastaram fazendo caretas, por causa do cheiro insuportável.
Nem aí
Tudo indicava que o autor do crime não fazia muita questão de esconder sua identidade. Caso contrário, não teria solicitado na loja da avenida São João que entregassem a mala e a corda em sua própria residência, na rua da Conceição, 34, apartamento 5. Ao bater lá, a polícia soube pelo dono do imóvel, Ramiro Franco, que moravam ali, em um quarto alugado, um tal Giuseppe “José” Pistone, 31 anos, e sua mulher, Maria Mercedes Féa Pistone, 21, ambos imigrantes italianos. Nenhum dos dois se encontrava no local. Naquele momento, Pistone estava chegando em uma pensão chamada Grasso, na avenida Ipiranga, 31, de propriedade de um contraparente seu, Giuseppe Perotti. Apresentava sintomas de “catatonia”, como os psiquiatras da época diagnosticaram. Com o firme propósito de se suicidar, segundo declarou a Perotti, ele contou que havia matado a mulher. Espantado com a revelação, o dono da pensão disse que aquilo não era coisa que se acobertasse e chamou a polícia. Menos de 24 horas depois de encontrarem o corpo, Giuseppe Pistone confessava o crime, alegando infidelidade conjugal. Em pouco tempo, porém, descobriu-se que ele era do tipo que “via coisas”. E que a história era mais complicada.
Pistone e Maria se conheceram em 1926, a bordo do navio Giulio Cesare, que partiu de Gênova em direção a Buenos Aires. Ambos eram do Piemonte, região ao norte da Itália, mas de províncias diferentes. Ele já havia morado na Argentina por um período curto, mas suficiente para cometer estelionato, ser preso e liberado sob custódia. A família foi contra quando Pistone resolveu deixar a Itália pela primeira vez e, por isso, para bancar a viagem, ele passou a pegar secretamente pequenas quantias da caixa em que o pai, comerciante, guardava as economias. Em pouco tempo, havia juntado 30 mil liras, que gastara sem dó em pouco menos de um ano, em noitadas nos cassinos e com mulheres em Mar del Plata. Voltava agora para a Argentina para um segundo turno de gastança – às custas da mãe, que lhe dera dinheiro suficiente para que ele sobrevivesse um bom tempo sem trabalhar. Pelo laudo do psiquiatra forense, que o analisou depois do crime, Pistone havia sofrido um transtorno após lutar na Primeira Grande Guerra, de forma que passara de rapaz sumamente responsável a alguém “sem o menor amor ao trabalho, disposto apenas a esbanjar”.
Simpatia amorosa
Maria, por sua vez, ia da Itália para a Argentina encontrar-se com a mãe, que depois da guerra na Europa migrara com o filho homem para a América do Sul, em busca de oportunidade. A “simpatia amorosa” entre Maria e Pistone deu-se logo no embarque, em Gênova. Em uma escala em Barcelona, ele pagou a diferença para que ela passasse da terceira para a segunda classe, na qual viajava. O Giulio Cesare aportou em Buenos Aires em dezembro de 1926, quando Pistone preferiu separar-se da namorada, com medo da reação do irmão dela caso soubesse até que ponto os dois tinham ido. Passaram seis meses sem se ver, até que, em meados de 1927, ele a visitou; os dois ficaram noivos em janeiro de 1928 e se casaram em fevereiro. Então, voltaram para a Itália, mas não por muito tempo, já que Maria não se adaptou à vida na província onde a família de Pistone morava. Retornaram para Buenos Aires e, em seguida, para São Paulo.
Casamentos “no escuro” eram mais comuns há um século, quando as moças se sentiam pressionadas a arrumar um marido. Maria só soube com o tempo que o dela era um mitômano com mania de grandeza, cuja mente sobrevivia de “falsificar a realidade” – como disse o psiquiatra que o interrogou. “A incapacidade (de Pistone) de exercer um juízo da realidade se depreende da mania que tem de referir-se com toda seriedade às coisas mais absurdas, sem se dar conta de que a realidade vai aparecer à luz do dia, mais cedo ou mais tarde.”
A descoberta definitiva de Maria sobre as fraudes do marido se deu de uma promessa enganosa dele a Francisco Piarelli, um amigo de sua família, que o empregara em um comércio no centro de São Paulo e lhe oferecera sociedade se ele investisse no negócio. Pistone inventou que sua mãe havia mandado um telegrama assegurando o envio de 150 mil liras, dinheiro que empenharia na sociedade. Ocorre que a quantia não aparecia e Piarelli cobrava de Pistone um documento comprobatório de que a mãe dele de fato o havia mandado. Pressionado, Pistone acabou dizendo que o telegrama estava em poder de Maria. Piarelli então a procurou e, pega de surpresa, a italiana ficou sem saber o que dizer. Vendo o embaraço dela, Piarelli percebeu que seu marido havia mentido. “O senhor Piarelli mostrou-se surpreendido e perdeu a estima que com certeza havia depositado em José, não só pela família de quem descende como em memória do falecido pai. Oh, mãe, por que não me ajuda Deus a fazê-lo mudar?”, escreveu Maria à sogra, dona Marcelina, em uma carta repleta de desabafos. Quando Pistone chegou em casa e ela o confrontou com a história, os dois discutiram. Maria também escrevia outra carta, para o próprio irmão, na Argentina, pedindo que a acolhesse. Pistone interceptou essa segunda com medo de o cunhado vir tomar satisfações.
Os dois tiveram uma nova discussão e ele a esganou. Essa é a versão que apresentava maior coerência, de acordo com a sequência de fatos que sucederam o assassinato, e também a que contava com o maior número de testemunhas. “Enraivecido com a contrariedade da mulher, José Pistone revelou toda a maldade de sua índole e toda a esterilidade emotiva de sua alma”, dramatizava uma matéria de jornal. A versão de Pistone, que os investigadores consideraram pouco crível, confirmada apenas por ele mesmo, alegava infidelidade de Maria. Naquele dia, segundo o autor do assassinato, ele entrou em casa por volta das 11h30, como sempre o fazia, e encontrou um estranho com a mulher na cama. Ao ouvi-lo girar o trinco com a chave, o homem levantou-se de um salto, encaminhou-se para a porta e, ao passar por Pistone, chegou a esbarrar nele. “Perdi a calma e apertei a garganta dela”, contou o assassino. “Para evitar seus gritos, apertei um pouco mais. Ela passou a gemer. Para acabar com o gemido, apertei até que notei que já não vivia mais.” A história dele não convenceu a polícia. Articulistas o crucificavam: “O que aquela pobre mocinha chamada Maria Féa quis em vida evitar que seu marido cometesse, o malvado executou sem resultado, após ela morta”.
Detalhes mórbidos
Ávidos para saber detalhes do crime, imprensa e opinião pública não disfarçavam a morbidez. Em seu depoimento à polícia, já praticamente vencido, Pistone levava a mão à boca para disfarçar um tique no lábio superior que o fazia contorcê-lo involuntariamente, enquanto relatava detalhes impressionantes da história. Depois de matar a mulher, ele deixou seu corpo estirado na cama e voltou ao trabalho, onde ficou até o fim da tarde. Então, foi comprar a mala – sua intenção era adulterar a etiqueta de identificação do passageiro (não seria difícil conseguir uma com agentes de viagem) e despachá-la, na esperança de que a tripulação só se desse conta de seu conteúdo quando o navio estivesse em alto-mar. E que, já que não haveria como investigar, jogassem a bagagem no oceano. Mas as coisas não deram muito certo para ele. Pistone estava extremamente desorientado para agir com a frieza necessária.
De volta a sua casa, enquanto aguardava a entrega da mala, deitou-se ao lado do corpo da mulher, sacudindo-o de vez em quando, de leve, para tentar reanimá-lo. Quando o emissário da loja chegou, não abriu a porta completamente. Depois de despachá-lo, o assassino tentou acomodar o cadáver na bagagem, mas as pernas pendiam para fora. Muito nervoso, pegou a navalha com que costumava se barbear e cortou-as na altura dos joelhos. Encontrou certa dificuldade por causa da rigidez cadavérica. Enrolou o corpo nu com pertences dela, camisolas Baptiste, camisetas de malha, um vestido de seda preto, blusas, meias, lenços e luvas e fechou.
Passou a noite perambulando a esmo pelas ruas da cidade.
Ao contar sua história, com o olhar fixo no chão, “típico de um catatônico”, ele “desconfessava” o crime amalucadamente: “Quiçá sou doente! Não tenho consciência de ter culpa. Culpado não sou, mas como suspeitaram de mim, quero terminar comigo”. Convencido do desequilíbrio do assassino, o delegado perguntou depois ao médico: “Quem pode assegurar, com um gesto que parece sério e convincente aos ouvintes, que a pessoa assassinada encontra-se sã e salva em casa?”. Assim que, a duras penas, acomodou Maria na mala, Pistone chamou um motorista para ajudá-lo a levá-la à Estação da Luz. Comprou um bilhete de primeira classe no trem e despachou-a para Santos. Lá, contratou outro motorista para conduzir a encomenda até o armazém de bagagens.
Graças à frenética cobertura dada ao caso pela mídia e ao furor causado na opinião pública, o inquérito do crime correu rápido. Quando perguntaram no tribunal por que tinha recorrido a uma ideia tão estúpida, Pistone, que alternava o português, o italiano e o francês, respondeu: “Per scappare”. E, em seguida: “Je n’ai pas eu l’idée de déterminer quelque chose. Més idées ont été pertubées”. Declarar-se perturbado não foi suficiente para “escapar” da pena. José Pistone foi condenado a 31 anos de prisão por homicídio e profanação de cadáver. Dezesseis anos depois, o presidente Getúlio Vargas comutou sua pena para 20 anos, por bom comportamento. Em 1948, Pistone foi posto em liberdade. Casou-se de novo e terminou seus dias em Taubaté. O túmulo onde Maria Féa foi enterrada, no cemitério do Saboó, em Santos, passou a receber romarias de mulheres que a “canonizaram”, acreditando que ela tinha poderes sobrenaturais.