J.P aborda a redescoberta da gentileza em um mundo polarizado e individualista: escuta atenta, interesse pelo bem-estar do outro e respeito a todas as formas de vida

O novo gentil || Créditos: Ilustrações Nando Santos

Escuta atenta, interesse genuíno pelo bem-estar do outro e respeito a todas as formas de vida: a redescoberta da gentileza é extremamente necessária em um mundo cada vez mais polarizado e individualista

Por Denise Meira do Amaral Ilustrações Nando Santos

Em Homens Imprudentemente Poéticos, romance que se passa no Japão antigo, Valter Hugo Mãe não usa a palavra “não” nenhuma vez. A ideia era enaltecer o costume dos japoneses de responder a negativas de forma mais gentil com uma expressão que correspondente a “isso é difícil”. Foi essa mesma gentileza japonesa que chamou a atenção da Monja Coen nos anos 1980, quando morou no país para estudar o budismo. Recém-chegada, ficou impressionada ao receber a ajuda de um executivo desconhecido em um trem-bala, que saiu de sua rota em pleno expediente para levá-la a seu destino, em Tóquio. “Os japoneses têm um respeito muito grande pela coletividade. No Brasil, vivemos como se estivéssemos separados do resto”, compara a fundadora da Comunidade Zen Budista. Ela lembra que a gentileza, no entanto, pode ser uma saída para transformar a realidade: “Se um átomo modificado da bomba atômica pode destruir tudo, imagina se cada um de nós nos transformamos em um átomo de gentileza?”.

A gentileza é mais do que um protocolo formal de polidez, é uma consideração genuína pelo outro que vai além da ética, porque cobra do gentil mais do que respeito ao mínimo para a convivência e vai além do direito, porque supera de longe as exigências legais do comportamento autorizado. É o que acredita o professor de ética Clóvis de Barros Filho, autor do livro Shinsetsu: O Poder da Gentileza. Na obra, ele relembra um episódio em que um japonês sentado na poltrona à sua frente no avião perguntou se ele se incomodaria se reclinasse a poltrona. E mesmo dizendo que tudo bem, ele reclinou só um pouquinho. Prova de que o dia a dia pode ser mais suave com pequenos gestos vindos de desconhecidos. “Após o surgimento do neoliberalismo, nossa qualidade de vida piorou muito. Tanto nas relações laborais, sociais, como no cuidado com o sono e alimentação. E as pessoas passam a ficar mais insatisfeitas, estressadas e angustiadas. A tendência é que isso gere falta de gentileza” explica a psicanalista Vera Iaconelli. Para ela, precisamos rever nossos hábitos e permitir um aceno de paz. “A gentileza é um exercício fundamental da civilidade e uma forma de dizer: ‘Vim em paz’. Um ‘bom- -dia’, ‘boa-tarde’, é como um sinal de boa vontade, de baixar a guarda e diminuir a animosidade das relações humanas. Se após bater o carro você descer e falar ‘ah, que pena’ em vez de sair gritando, o gatilho agressivo do outro é desmontado”, sinaliza.

As relações íntimas, principalmente em tempos de pandemia, em que as pessoas estão mais fragilizadas, lembra Vera, demandam ainda mais gentileza. “Temos a tendência de naturalizar a violência verbal dentro de casa, mas precisamos dar um passo atrás e olhar para o outro com mais cuidado, além de olharmos com atenção para nós mesmos”, acredita. Quem endossa é Rosiska Darcy de Oliveira, escritora e autora do livro Liberdade: “Como estamos distantes de pessoas queridas, passamos a dar mais valor ao convívio, que tinha sido substituído pelo número de likes. A compaixão, a empatia e a gentileza nos mantêm vivos. E fazem uma falta terrível na vida cotidiana. A pandemia veio nos dizer que ou nós somos cidadãos ou morreremos todos juntos. Sem vínculos, não somos ninguém”.

De sua aldeia no médio Rio Doce, em Minas Gerais, Ailton Krenak diz que se a gentileza fosse nossa orientação de vida, não teríamos nos separados dos outros seres vivos e do planeta a ponto de estarmos ameaçados por um vírus. “É uma resposta do ecossistema de que não fomos gentis com a vida na Terra”, sinaliza ele, uma de nossas maiores lideranças indígenas do país. Para o escritor e ambientalista, nossa vida tem sido reduzida a biografias de alguém que cresceu, fundou isso ou aquilo, uma grande coreografia ridícula e utilitária: “Por isso digo que vida não é útil. O que tem utilidade é um aspirador de pó. A vida é maravilhosa, é um dom, nos atravessa como um vento, um raio de sol”. Todas as 130 famílias que vivem em sua aldeia já foram vacinadas contra a Covid-19. Apesar de Krenak sentir um certo alívio no início, logo percebeu que os outros ao redor, assim como a grande maioria dos brasileiros, não estavam na mesma situação. Um bom exercício para sairmos de nós mesmos, segundo ele, é entender que o outro é um ser plural. “A gente só quer conversar com pessoas iguais a nós, mas se não sairmos desses espelhos, não vamos a lugar algum. Espelho é repetição.”

Um dos grandes difusores da comunicação não violenta, o pesquisador britânico radicado no Rio Dominic Barter trabalhou em conflitos armados na África e nos morros cariocas e diz que o grande erro é a nossa aversão a conflitos, já que é justamente através dele que deriva o diálogo e a superação dos problemas. “Conflito é um aspecto da convivência humana, se queremos viver em democracia, precisamos abraçar os conflitos.” Para Barter, enquanto não ouvirmos o choro do outro, estaremos nos afastando cada vez mais. “É preciso mudar a forma como eu me trato, como trato o outro e como a gente se relaciona no coletivo”, explica, sobre a base da comunicação não violenta.

Isolado em sua casa, em São Paulo, há um ano, o ator Sérgio Mamberti, 81 anos, acredita que não há melhor momento do que agora para colocarmos a gentileza em dia. “As pessoas estão tendo que aprender a conviver. O que está acontecendo no mundo é muito triste. A pandemia é uma oportunidade para olharmos para o outro e praticarmos a empatia: acolher os problemas dos amigos, da família e mesmo de pessoas que você não conhece. Sempre podemos colaborar de alguma forma. A gentileza é uma energia que precisa ser cultivada”, afirma. E por que não cultivada com flores? Pensando em viver de uma forma mais gentil, o carioca Nathan Kunigami trocou seu cargo em uma grande empresa para se dedicar a elas. Pediu demissão e montou um ateliê com arranjos inspirados na tradicional arte japonesa da ikebana. “Não estava satisfeito com essa dinâmica do mundo corporativo de cada um por si.

Após uma viagem ao Japão, entendi essa minha metade, que é muito presente”, diz ele, filho de mãe maranhense e pai de ascendência japonesa. Trabalhar com flores faz com que ele presencie a beleza e a efemeridade da vida e encontre beleza até mesmo no vazio – um dos pressupostos da ikebana. “As pessoas geralmente compram flores para presentear alguém que ama. Uma das partes mais lindas é escrever os recados. Às vezes, entrego até pessoalmente para conhecer quem está recebendo”, revela. Gentileza gera gentileza, sempre.

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