A Covid-19 legou uma nova maneira de viver, com ênfase no isolamento social e atenção permanente para os riscos de contaminação, e a infectologia, especialidade outrora de menor destaque, ganhou inusitada notoriedade com a pandemia. Bom que nela militam figuras como o mineiro Esper Kallás – nosso escolhido para representar essa categoria de profissionais tão vitais –, para quem a medicina é principalmente “alívio para o sofrimento”
Por Paulo Vieira / Fotos: Claudio Edinger para Revista PODER
Das muitas carreiras da medicina, a dos infectologistas é uma das que se parecem com a de um contrabaixista de uma banda de rock ou a de um volante esforçado num time de futebol. Raramente brilham, estão lá para zelar pelo conjunto, fazer o arroz com feijão, de alguma forma deixar que os holofotes iluminem outros colegas – cirurgiões, cardiologistas, oncologistas, neurologistas. Dada a profusão de diferentes surtos epidêmicos no Brasil, contudo, isso vem mudando. Mas não bastaram as ondas de gripe suína, zika, chikungunya, febre amarela e as dos vários subtipos da dengue para que o brasileiro se desse conta de que infecção era coisa muito nossa. Foi preciso que o país se tornasse vice-líder mundial de casos oficiais da pandemia de Covid-19 para que os infectologistas se tornassem a verdadeira linha de frente da medicina, profissionais onipresentes nos gabinetes de crise dos palácios de governo, nos jornalísticos das TVs e nas lives da internet. E, claro, também em seus ambientes de origem: os hospitais, laboratórios e clínicas médicas.
O Brasil tinha na primeira quinzena de julho cerca de 2 milhões de casos confirmados da Covid-19, 1% de toda sua população contaminada, e há certo consenso de que o número é bastante subestimado. No começo, porém, não parecia haver no imaginário coletivo espaço para colapsos hospitalares, lockdowns, cruzeiros interditados ou congestionamento de veículos de transporte de mortos, algo que se viu no início de 2020 na China, no Japão e na Itália. Mas a imunização baseada no pensamento positivo não funcionou e as primeiras mortes decorrentes da doença acenderam todos os sinais amarelos. Com as enormes dúvidas em torno da Covid-19 e o risco palpável e inusitado de morte que se abateu de repente sobre todos os brasileiros, os infectologistas viraram espécie de tábua de salvação, o último reduto, os equivalentes científicos de xamãs e sacerdotes.
Nada disso casa muito bem com o perfil discreto de profissionais como Esper Kallás, médico do Hospital das Clínicas de São Paulo e professor titular do Departamento de Moléstias Infecciosas e Parasitárias da Faculdade de Medicina da USP, um dos infectologistas que se destacam nesse mundo subitamente transformado. Mas ainda que tenha escolhido uma carreira que até outro dia se alojava bem à sombra, a clareza de raciocínio, a velocidade de transmissão de ideias e a simpatia fizeram desse médico de 54 anos um sujeito calhado para os novos tempos: sem prejuízo das habilidades pertinentes a seu campo de conhecimento, Esper é um comunicador nato.
O sotaque da Mantiqueira mineira, que ele cuida em não disfarçar – nem tampouco hachurar – parece agregar valor: mesmo quando ele tem de falar termos como hemaglutinina e neuraminidase (o “H” e o “N” dos vírus da gripe), o tom não é nada professoral. Lembra mais um velho amigo a contar as novidades entre goles de café excessivamente adoçado. O problema é que, como ficou claro na entrevista a PODER, o que ele tem a dizer nem sempre é agradável. De início, a constatação de que “ninguém estava preparado para a pandemia”. Para Esper, a força de transmissão do coronavírus causador da doença é algo que “não se via desde a Segunda Guerra”, o que também explica sua baixa letalidade diante dos surtos recentes de ebola, H5N1 (gripe aviária) e MERS, as duas últimas responsáveis por matar, respectivamente, metade e um terço dos acometidos.
Depois, que tudo poderia ter sido bem diferente. “Investir em pesquisa para mapear os vírus entre as populações de morcegos e roedores ao redor do mundo, fonte dos coronavírus e de outros vírus que agora circulam entre a gente, custaria uma fração das perdas econômicas da Covid-19.” Pior: esse conhecimento “já poderia estar na mão”. Seria preciso ter fortalecido a cooperação internacional para enfrentar um inimigo comum.
Donald Trump, que retirou os recursos estadunidenses que ajudavam a manter a Organização Mundial da Saúde (OMS) seria então um claro empecilho a tal união. “A agenda política não abraçou essa cooperação”, diz Esper, com a cautela que lhe caracteriza. “Todas as vezes em que se fala de pesquisa científica começa a surgir um ceticismo, perguntam se aquilo é verdade ou se é roteiro de filme de ficção científica, e isso também se mistura um pouco com a agenda [hoje polêmica] de que preservar a natureza é importante, de que o aquecimento global tem interferência nessas coisas.”
Esper lamenta que a ciência tenha se tornado objeto de paixão política e que distorções grosseiras de seus postulados hoje alimentem boa parte da indústria de fake news, algo que é ainda mais pernicioso na infectologia, campo em que a eficácia das campanhas de imunização são inteiramente dependentes da crença da população. Eis um paradoxo: é preciso ter fé na ciência, e há muita gente fomentando a descrença. Polido, o médico jamais dá nome aos bois. “Procuro atuar de forma construtiva, a polarização é muito ruim para o país, se você entra nessa disputa acaba colhendo rusgas e ataques. Fico distante, tento trazer a reflexão do campo técnico e científico.”
LÍBANO E ITAJUBÁ
Esper, que tem o mesmo nome de um tio libanês, o primeiro da família a radicar-se no sul de Minas, e também de um avô materno, formou-se em sua Itajubá natal, na Faculdade de Medicina de Itajubá (FMI), e só veio a São Paulo a fim de fazer a residência médica no Hospital do Servidor. Seu pai, o comerciante libanês Georges Kallás, morto há menos de um ano, fundou em 1957 na cidade mineira a Casa Joka, um armazém de tecidos que se tornaria o grande magazine local – e cujo sucesso ajudou a lançar as carreiras de seus cinco filhos.
Embora Itajubá seja uma cidade de tradição universitária, com uma escola centenária, a hoje Universidade Federal de Itajubá, por onde passaram um presidente da República, um vice e outros políticos de menor expressão, uma dificuldade poderia surgir – e de fato surgiu – na carreira de Esper diante de colegas formados na nobreza acadêmica médica do Brasil, a USP e a Unifesp (em que ele viria a fazer mestrado e doutorado). “Na prova de residência a preferência é pelos alunos que vêm das universidades mais conceituadas, de histórico de melhor desempenho. Mas eu compensei com cursos extracurriculares, me engajando em pesquisa científica.”
Em seu último ano de residência médica, ele teve contato com um tipo de paciente que definiria para sempre sua carreira, o portador do vírus da Aids. “Fiquei fascinado.” “Eu e meus colegas temos um pouco dessa veia, de que a gente tem de ir ao encontro dos desfavorecidos.” Naquela época, primeira metade dos anos 1990, era ali mesmo que o desfavor estava, já que ainda não se conhecia o coquetel retroviral que eliminaria do contaminado a angústia pela certeza da morte iminente. Uma briga evidentemente perdida, caso Esper não considerasse a medicina como “alívio do sofrimento”.
Se o objetivo primordial da medicina é esse, aliviar o sofrimento, faz sentido que Esper tenha se aprofundado na observação do comportamento social das pessoas da comunidade LGBT+, a fim de compreender o universo de seus pacientes e minorar suas dores. Ver as travestis serem tratadas nas internações e consultas por seus nomes sociais, por exemplo, foi uma conquista advinda dessas jornadas, como revelou ao Jornal do Campus, da USP. Na escala ontológica da medicina de Esper, é só depois que vem a cura, quando ela for possível. Em 2004 por pouco ela não foi, quando coube ao médico tratar um grande amigo, o oncologista Drauzio Varella. Mesmo habituado a viajar pela Amazônia, Drauzio relaxou na vacina e voltou de uma de suas incursões ao rio Negro com o vírus da febre amarela (veja boxe ao lado). Depois, em pelo menos uma ocasião em que apareceram juntos, numa das não raras entrevistas que o infectologista concede ao site de divulgação médica de Drauzio, este disse dever sua vida a Esper. Os dois haviam se conhecido uma década antes, quando Drauzio, nas palavras de Esper, “me abriu as portas do Carandiru”. Foi lá, no complexo penitenciário de triste memória de São Paulo, que o infectologista colheu material para sua tese de mestrado, sobre os fatores de risco para a infecção da Aids. Muito mais do que ganhar um título acadêmico, Esper forjou dramática e definitivamente sua carreira ali. Afinal, como diz, “quando a gente vê pessoas sofrendo, a grande maioria da nossa especialidade compra a briga”. Em 2009, no trabalho que lhe valeu a livre-docência, a Aids é novamente central, agora já na busca de estratégias para o desenvolvimento de vacinas anti-HIV.
De volta a 2020, tendo agora de satisfazer uma opinião pública ávida pelo saber dos infectologistas, o médico passa os dias a criar tempo para dar conta de seus compromissos. “Todos os dias eu me encontro com alguém que contraiu a Covid-19”, diz. Sua mulher, também médica, trabalha no Instituto de Infectologia Emílio Ribas, outro endereço de referência no combate ao mal. “Ela não parou de fazer endoscopias desde que a pandemia chegou”, diz. O único filho do casal, Georges, segue o caminho dos pais e cursa medicina na Fundação do ABC.
O coronavírus virou o mundo de ponta-cabeça, mas não fez Esper mudar a descrição que um dia escolheu para seu WhatsApp. A frase “lá vem o oropouche” pode soar enigmática para os não iniciados. Trata-se de mais uma doença viral, que provoca febre e dores, sintomas que lembram os da dengue. E, qual a dengue, é igualmente transmitida por um mosquito, e em seus casos mais graves pode evoluir para uma meningite. O vírus já apareceu em aves no Rio Grande do Sul e em macacos em Minas e Goiás. Mas o oropouche, não veio – ao menos não com a força imaginada. Antes dele, uma pandemia inesperada iria pedir cartas (e receber o zap). Talvez um dia as coisas voltem ao normal – mesmo que seja o tão propalado novo normal. Nele, comenta o médico, há espaço para mais epidemias. “Nosso histórico delas é rico. O Brasil vai viver várias outras.”
A CURVA ACHATADA
Esper pediu uma “tarde inteira” para dizer qual a grande lição a ser tirada desta pandemia. Mas sem obviamente dispor de agenda tão generosa, logo arriscou algumas respostas. Ele espera ver como lição final que todos olhem “com mais carinho para o sistema público de saúde” e que haja “investimento em pesquisa e inovação” no setor. Esper faz coro com quem saúda o Sistema Único de Saúde brasileiro e vê nele um ator fundamental na resposta eficaz – ou não tão caótica – à pandemia. A flexibilização que vem se colocando em marcha neste mês em partes de São Paulo, estado para o qual colaborou num comitê de especialistas, parece-lhe correta. No caso da capital, diz que “o fechamento da cidade veio antes da disseminação de casos para a periferia, e isso favoreceu o município”. “Se você pegar os casos e as mortes por Covid-19, e também as causadas por outros quadros respiratórios agudos e até as mortes gerais, a ascensão em São Paulo foi muito mais branda comparada às de Nova York, Milão, Londres e Paris. Houve um achatamento muito significativo da curva, e isso reduziu a carga em cima do serviço de saúde, deu tempo para que nos preparássemos. Em São Paulo não houve notícia de gente morrendo em portas de prontos-socorros ou mesmo em casa, por saber que não seria atendida nos hospitais.”
O MÉDICO E O OUTRO MÉDICO
A descrição está em O Médico Doente, um de seus livros. Acostumado a vida toda a tratar seus pacientes, Drauzio Varella era agora ele nessa posição, derrubado por uma crise severa de febre amarela. Um paciente relutante, como é de se imaginar, e cioso dos riscos que corria. Mesmo padecendo de dores insuportáveis nas costas – um dos sintomas da doença –, só foi convencido a ser hospitalizado quando sua mulher, a atriz Regina Braga, trouxe Esper Kallás à casa para convencer o marido da gravidade do quadro. Durante a internação, Dráuzio colaborou com seus colegas, não sem certo enfaro. O índice mais preocupante que apresentou nos primeiros dias foi a proliferação de transaminases, “enzimas que as células hepáticas destruídas liberam na circulação”, como escreveu com sua elogiável didática, que chegaram a 4 mil. “Nos casos mais raros em que chegam a 3 mil, os médicos ficam preocupados”, registrou. Nessa hora, numa curiosa inversão dramática, é o médico derreado que se compadece do médico são. “Senti pena dele. Não é cômoda a posição do médico mais jovem a conduzir o caso do companheiro de clínica, mais velho e mais conhecido, amigo pessoal, portador de uma doença possivelmente grave que àquela altura já devia ser objeto de atenção e de comentários de muitos colegas. Embora outros profissionais mais experientes também participassem do caso, a responsabilidade maior estava com o infectologista.” Esper tinha então 38 anos.