Glamurama volta no tempo e resgata entrevista de Hector Babenco, morto nessa quarta-feira, ao amigo e arquiteto Isay Weinfeld para a Revista J.P em outubro de 2007.
Hector Babenco ostenta no currículo joias do quilate de “Pixote”, “O Beijo da Mulher Aranha” (que rendeu o Oscar para William Hurt), “Ironweed” (com Jack Nicholson e Meryl Streep) e “Carandiru”. Mas só agora, aos 60 anos, afirma estar tranqüilo às vésperas da estréia de um novo filme. Diz que percebeu, no brilho dos olhos dos poucos espectadores que já assistiram a “O Passado”, seu nono longa-metragem, que fez um bom filme. Estrelado pelo mexicano Gael García Bernal e baseado no romance do argentino Alan Pauls, o filme trata da montanha-russa de emoções que vive um homem envolvido em diferentes relacionamentos com quatro mulheres. Não é uma autobiografia de Babenco, mas não deixa de ser curioso lembrar que o cineasta foi casado quatro vezes (com Fiorella, mãe de Janca, Raquel Arnaud, mãe de Myra, Xuxa Lopes e Cristiana). Este brasileiro nascido na Argentina “e não, como diz a imprensa, um argentino que mora no Brasil”, aceitou ser entrevistado para a Revista J. P por um de seus melhores amigos, o arquiteto Isay Weinfeld, também autor do projeto da casa onde mora. Foi uma conversa franca e emocionante, ao longo da qual falou de vários assuntos íntimos, como o violento câncer que sofreu, as paixões, a relação com as filhas e o seu cinema. Como quem não quer nada, começando com uma pergunta sobre o neto Pedro, Isay extraiu revelações surpreendentes de Babenco, culminando numa confissão do cineasta sobre as suas quatro mulheres: “Eu não seria quem eu sou se não fosse por elas”.
Por Mauricio Stycer
Fotos de Daniel Aratangy
Revista J.P – edição: 13 / outubro de 2007
Isay Weinfeld: Do que você brinca com seu neto?
Hector Babenco: Eu chego na escola para buscar o Pedro e pergunto para ele e para os amigos dele se eles viram ele. Faço isso três, quatro vezes até que ele fique histérico de tanta surpresa reprimida. Aí ele dá um grito, que nem um gol do Corinthians: “Sou eu, vô!!!”. Também brinco de levá-lo para comer pastel na cidade. Já conhecemos uns cinco botecos que fazem pastel. O preferido dele é um pastel enorme que tem na esquina da rua José Maria Lisboa com a avenida Nove Julho, no meio daquele trânsito infernal.
Isay Weinfeld: Chamava Pastel Trevo. Não é mais…
Hector Babenco: A gente vai lá e come uns pastéis gigantescos. Às vezes levo-o na Livraria da Vila, deixo-o escolher alguma coisa. Às vezes, levo-o numa galeria de arte. Porque ele é muito energético e os pais dele são muito esportistas, muito surfistas. Ele tem todo o body language do surfista. Tento tirá-lo um pouco desse universo Gatorade e levá-lo para um viés mais maluco, digamos assim. E estou começando, agora, a contar algumas histórias do meu passado. Para que ele saiba melhor quem sou eu. Mostro fotografias antigas, tentando dar a ele uma construção familiar que ele, provavelmente, não tem em casa.
Isay Weinfeld: Vou te indicar um lugar maravilhoso para comer pastel. Chama-se Botequim do Hugo. Fica na rua Pedroso Alvarenga.
Hector Babenco: Já o levei ao Ponto Chic, para comer o bauru. Disse que o bauru foi inventado lá. A gente já foi na Mercearia São Roque. Já mostrei os cartazes dos meus filmes, para ele saber o que eu faço… Ah… e eu também tomo banho com ele. A gente chega aqui em casa, enche a banheira, entramos os dois e brincamos de guerra, ele me afoga… Brincamos uma boa meia hora, depois a gente se joga na cama e brincamos de briga. Eu sou o monstro peludo. A gente se enfia embaixo dos lençóis, fazemos caverna, fogo, escutamos os tigres que se aproximam, as pessoas que nos procuram tremendamente e não nos acham porque estamos perdidos.
Isay Weinfeld: Não tinha outro personagem para você fazer que não o monstro peludo?
Hector Babenco: Não tenho outro personagem. O que seria? As crianças gostam do medo, gostam da ideia de ser aterrorizadas porque os limites entre o que é verdadeiro e o que é falso se desestabelecem. É o momento em que ele diz “para!”, aí eu paro e viro bonzinho de novo. Mas explico para ele que fico bonzinho só por um momento porque imediatamente o mau me vem muito forte, não consigo me conter e a brincadeira recomeça.
Isay Weinfeld: Fiz essa pergunta porque acho que você tem uma relação única com o seu neto, uma relação que você nunca teve com ninguém à sua volta.
Hector Babenco: Para mim é mágico imaginar que daquela filha que eu vi crescer tenha saído algo que tem a ver comigo. Fico perplexo… Um ciclo de vida que não se extingue… Como sei que sou finito, já tive provas que a vida pode me dar muitas surpresas, quero que ele leve uma marca muito forte desse ser masculino que foi o avô – uma imagem muito diferente da que as minhas filhas têm de mim. Não tenho ideia do que elas acham de mim. Minha filha me chama de “mala sem alça” até hoje. Cada vez que coloco um drama pessoal meu, ela fala: “Pai, para com essa novela das 8”.
Isay Weinfeld: Qual delas?
Hector Babenco: A Myra. Ela é muito prática, objetiva. A Janca é uma silent partner, não se interessa por nada que eu conto para ela, mas sempre vai ao banheiro ver os remédios que estou tomando. E pergunta, como se estivesse pedindo uma pizza romana ou à moda da casa: “Pai, e esse remédio novo, o que é?”. Ela quer saber tudo, mas não se manifesta, não verbaliza. O meu neto eu quero que leve uma marca forte porque eu não tive isso dos meus avôs. E o (Arnaldo) Jabor, que junto com você é o meu melhor amigo, me conta que a pessoa mais importante que teve na vida dele foi o avô. Levava-o no Maracanã, em rodas de chorinho… O avô dele tocava trombone num grupo… O avô é uma figura muito importante.
Isay Weinfeld: Quem te conhece no dia a dia sabe que você é um cara muito engraçado. Cadê o humor nos seus filmes?
Hector Babenco: Eu ainda não consegui me liberar a esse ponto. Talvez agora, graças ao psicotrópico que estou tomando, consiga ficar mais leve (risos) e colocar o humor, que eu sei que tenho, numa narrativa. Para isso, eu também preciso de um parceiro, de um companheiro de viagem. Não consigo construir uma narrativa sozinho.
Isay Weinfeld: Por quê?
Hector Babenco: Porque sei inventar, mas não sei registrar. Sou um excelente improvisador de diálogos, um excelente contador de histórias, sei inventar personagens, mas não sei colocá-los no papel. Eu preciso trabalhar com alguém que seja o meu oposto. Alguém que, ao mesmo tempo em que registra o que falo, me coloca os limites do óbvio, alguém que segure a minha franga. Preciso de uma dancing wall, alguém que faça a parede, para que eu bata a bola e a bola volte para mim. Todos os filmes que eu fiz, mesmo os que eu não assino o roteiro, eu sou co-roteirista. Digo isso sem o menor melindre. O problema é que não consigo sair desse tormento que é o fato de eu ser a puta e o cafetão ao mesmo tempo, o diretor e o produtor dos meus filmes. Isso é altamente punitivo para o meu lado criativo. Não me queixo de um filme que não deu certo. Me queixo do trabalho que ele me deu e das outras coisas que ele me privou de fazer.
Isay Weinfeld: Há um lado muito bom nesse modelo brasileiro de produção que é o fato de você não se tornar um especialista, saber manejar um pouco de cada coisa. O que é muito difícil em outros lugares.
Hector Babenco: Eu meto o bedelho em absolutamente todas as áreas. Em “O Passado”, o vestuário inteiro é meu, as locações foram quase todas descobertas minhas. Num modelo estupidamente profissional eu entraria em rota de colisão total com todos os meus colaboradores.
Isay Weinfeld: Não consigo ver um trabalho autoral de outra forma que não seja essa.
Hector Babenco: É por isso que estou morando no Brasil e não voltei para os Estados Unidos, onde tenho um nome enorme, ou fui para a Inglaterra ou a França. Teria dificuldades de me encaixar no sistema produtivo deles. Apesar de, no momento, estar trabalhando num projeto para ser filmado no Norte da Inglaterra, uma coprodução estrangeira, falado em inglês, “The Sea” (O Mar, lançado no Brasil pela Nova Fronteira), do escritor John Banville. Estou um pouco cansado do modelo brasileiro: “Ei, me dá um dinheiro aí!”. Estou com 60 anos. Não quero mais ter de enfrentar sabatinas em empresas estatais para defender o meu projeto e dizer quem eu sou e o que eu quero fazer. Acho que já tenho uma folha corrida com um razoável currículo de trabalho por esse país, que é o meu. Não sou um argentino que mora no Brasil, como a imprensa costuma dizer. Sou um brasileiro que nasceu na Argentina. É assim que me vejo.
Isay Weinfeld: Aos 60 anos, a crítica ainda te importa?
Hector Babenco: Nunca me importou. Como alguém que tem uma hora para escrever sobre algo que levei quatro anos para fazer pode fazer isso? Como vivemos num país onde importa muito mais a fotografia do que o texto, nunca me preocupei muito com a crítica. A crítica não leva nem afasta absolutamente ninguém do cinema. Faço filmes somente para descobrir por que os fiz. Se soubesse por que quero fazer um filme não o faria. Isso vai contra qualquer modelo de produção, em que a primeira coisa que o produtor te pergunta é: “Por que você quer fazer esse filme?”. Se eu soubesse, não o faria. É uma coisa muito instintiva, muito compulsiva, do momento existencial que estou vivendo: a entrega a um projeto. Quando tenho alguma dúvida, durante a realização do filme, a única pessoa a quem eu pergunto qual seria o caminho correto é a mim mesmo. Eu me vejo sentado na quinta fileira do cinema e digo: “Hector, o que você acha?”. O único espectador que tenho de prestar contas é a minha consciência, o meu gosto. Por isso, erro tanto.
Isay Weinfeld: Você acha que precisa estar infeliz para fazer um trabalho melhor?
Hector Babenco: Na cultura em que eu cresci, a Argentina, a melancolia era uma moeda forte e a alegria, o prazer, o humor e a diversão eram sentimentos menores. No Brasil, vi que esses sentimentos eram muito mais vitais, existencialmente falando, que a melancolia, a fossa, a depressão. Hoje, com 60 anos, devo reconhecer que ainda não consegui encontrar o caminho daquilo que me fascina, que é a alegria, e continuo muito preso ao sentimento muito enraizado em mim, que é o desencanto. Desencanto pela perda, pela injustiça social. Minha indignação ante o modelo de exclusão social do Brasil é algo que me motivou a fazer filmes, desde “Pixote”. Não sou movido por ambições políticas nem por necessidade de propaganda subliminar nos meus trabalhos. Sempre acreditei em projetos em que, por mais abjeta e cruel que fosse a realidade, podia tentar resgatar a individualidade e a humanidade dos personagens mais terríveis. Sempre estive mais próximo de Camus do que de João Ubaldo Ribeiro.
Isay Weinfeld: Esses demônios passageiros que te afligem antes de começar um trabalho vão embora quando você termina o filme?
Hector Babenco: Quando estreou “O Beijo da Mulher Aranha” saíram três artigos na primeira página do suplemento “Arts and Leisure” do “The New York Times” de domingo. O filme era esperado. Havia todos os sinais de que aquilo ia ser grande mesmo. E eu estava com herpes na boca, herpes genital, andando pelo Central Park, aos prantos, de tanto sofrimento. Eu sempre me desconectei muito do mundo real. Sempre tive uma relação totalmente inocente, que já perdi. Hoje sou muito mais puta. É inevitável não sonhar ou desejar reprimidamente a vontade de ser reconhecido no cinema mundial. É onde eu gostaria de estar presente: no álbum de figurinhas dos diretores do cinema mundial. Não sei se consegui, se conseguirei, não vem ao caso mais. O tempo dirá… Como diria meu psicanalista, quando eu fiquei muito doente: “É bom que a gente lembre tudo do seu padecer, porque só lembrando a gente pode esquecer”. Só esqueço um filme depois que entendi por que o fiz. No caso específico de “O Passado”, eu sou uma pessoa diferente do homem que iniciou o filme. Estou com uma sensação de fait accompli muito grande, como nunca antes senti. Estou com uma sensação totalmente diferente, estou com a sensação que fiz um trabalho legal.
Isay Weinfeld: Isso é uma segurança…
Hector Babenco: Vejo no brilho dos olhos das pessoas que viram o filme. Nunca pergunto nada a ninguém. Não perguntei ao Gael (García Bernal) por que ele aceitou fazer o filme. Ele me disse um dia: “Quando tinha 14 anos meu pai me levou para ver um filme chamado ‘Pixote’”. Nunca mandei o roteiro para ele; lemos juntos, durante duas noites seguidas, no Hotel Alvear, em Buenos Aires. Ele voltou para o México e duas semanas depois chegou um e-mail: “Estou disponível de 15 de julho a 30 de outubro. É conveniente para você?”. E depois escreveu: “Paguem o melhor que puderem, mas não abusem de mim”. Esse é o homem. E disse que gostaria de escolher as atrizes junto comigo. Os produtores ficaram loucos. E escolhemos juntos as quatro mulheres, entre 12 candidatas. Foi uma relação muito orgânica. Dizem que sou um grande diretor de atores. Eu simplesmente deixo os atores me dizerem como querem fazer o papel. Depois eu balizo, eu recorto, eles nem percebem.
Isay Weinfeld: Você acha que a experiência, que está te dando essa segurança no momento, faz a diferença ou você é um artista preocupado em se reinventar?
Hector Babenco: A segurança não advém da experiência ou da idade, mas da minha satisfação com o trabalho cumprido. Detesto ficar acomodado. Estou constantemente querendo ser outra pessoa, na minha vida pessoal. E acredito que, por serem muito atrelados à minha vivência pessoal, apesar de eu não fazer filmes autobiográficos, os meus filmes estão sempre mudando, são novos. E é isso que me mantém vivo. Tenho um certo prazer pelo difícil. Você só consegue a uniqueness com sacrifício. Não tenho o talento de fazer um grande chorão. Jack Nicholson me contou que (Michelangelo) Antonioni, 20 anos depois de ter feito “Profissão: Repórter” (1975), sempre chorava que o filme não tinha ficado como ele queria e que sonhava fazer umas mudanças. Quando Jack Nicholson ganhou uma fortuna incalculável com Batman, ele ligou para o Antonioni e falou: “Manda o orçamento que eu banco”. E o Antonioni agregou 11 segundos do filme. Onze segundos!!! Não é uma loucura? Vinte anos chorando, inconformado que não era o que ele queria, e agregou 11 segundos… Eu tirei uma cena do filme e me arrependo. Estou sofrendo… Você não faz ideia. Fico na cama sem dormir, me levanto, acendo um charuto… É uma cena de um blowjob no Gael. É uma cena que funciona muito bem para quebrar uma certa rigidez narrativa. Eles estão dentro do carro, ela se levanta, arruma o cabelo, ele está deitado, ela pega um drops, abre e, em vez de comer, ela põe na boca dele. E diz: “São de menta”. Era uma cena linda.
Isay Weinfeld: Essa constante insatisfação, esse inconformismo…
Hector Babenco: Esse filme está muito atrelado a uma frase: “Obrigado, mulheres da minha vida, que sempre me amaram tanto e eu sempre achei tão pouco”. Desde a minha mãe, que sempre me amou tanto e eu sempre achei que ela não me amou o suficiente, até todas as companheiras que eu tive. É um filme sobre a permanência do amor depois que a ligação social se interrompe. Todas elas estão dentro de mim. Olha a fotografia (aponta para uma foto em que aparece, aos 19 anos, ao lado de Fiorella, sua primeira mulher). Foi tirada em Gibraltar, no lugar em que nos casamos. Pagamos cinco pesetas para cada bêbado no bar ser testemunha. A família dela tinha colocado a Interpol atrás da gente. E achamos que com certidão de casamento íamos acalmar a família dela. A Janca já estava na barriga dela.
Isay Weinfeld: O que está engasgado na sua garganta?
Hector Babenco: Eu não sei se eu preciso inventar algo para não conseguir estar feliz.
Isay Weinfeld: Isso é típico seu.
Hector Babenco: É uma marca registrada. Às vezes, aqui, de noite, penso: “Caralho, aquele menino pobre, judeu…” Meus pais nunca tiveram casa própria… A gente morou atrás da loja dos meus pais até os meus 15 anos. Sempre casas alugadas, tendo de sair porque não tinha dinheiro para pagar. E hoje, aqui neste castelo, que você maravilhosamente fez, com a minha cara… A história da minha vida está nessas paredes. A minha amizade com Mira Schendel, com Waltercio Caldas, com Sergio Camargo… Toda noite olho essa foto do Sergio Camargo, em que ele aparece de costas. Foi uma figura tão importante quanto meu pai, me ensinou tudo sobre estética, sobre disciplina, sobre o rigor, sobre não ceder à tentação do mercado.
Isay Weinfeld: Com tudo que você passou, incluindo um problema sério de doença, você nunca pensou em desistir? O que te segurou? Foi o seu trabalho como artista? Foram as suas paixões?
Hector Babenco: Desistir é uma palavra que não existe no meu dicionário. Quando eu estava à beira do que os médicos chamam de “próximo da morte”, eu duas vezes ensaiei ir embora. E eu abri os olhos rapidamente. Eu não queria ir embora. Eu tinha de pensar em algo maravilhoso, que justificasse me manter vivo, e eu pensava sempre na sensação de estar embaixo de uma cachoeira e receber aquela água no meu corpo. Um dia entrou um médico no meu quarto, um médico bem velho, com quase 90 anos. Disse que tinha fundado aquele hospital e estava aposentado. Era órfão de guerra, tinha crescido num orfanato em Londres, depois emigrado para os Estados Unidos e se estabelecido em Seattle. Ele me disse: “Nós aqui só trabalhamos com ciência. Mas eu sei, com a minha experiência de médico, que aqueles que têm um sonho a realizar têm mais chances de sobreviver”. Lembro que um dia, escrevendo os diálogos de “Coração Iluminado” no hospital, minha mãe entrou para me trazer um chá. “Silêncio! Você não vê que estou escrevendo?” Fui muito rude com ela. E anos depois, eu já sobrevivente, ela me disse: “Naquele dia, que você foi tão grosseiro, eu soube que você ia viver”. Alguns anos atrás, quando fui fazer um check-up em Seattle, uma enfermeira me disse que um dia, em que me apliquei uma dose excessiva de morfina, eu toquei a bunda dela. “O senhor foi muito educado. Eram três da manhã. O senhor estava sentado na cama, já tinha tomado a dose extra de morfina, e cantava uma música do Cole Porter: ‘I’m heaven, I’m heaven’. ” Esse sou eu. Uma coleção de polaroides.
Isay Weinfeld: O que te importa na vida?
Hector Babenco: O meu neto. E continuar trabalhando. Eu quero ter saúde. Fui punido aos 38 anos com uma doença letal, crônica, sem cura, e graças à colaboração do Drauzio (Varella), um médico exemplar, consegui fazer dois filmes (“Ironweed” e “Brincando nos Campos do Senhor”) com câncer, sem que ninguém soubesse. Às vezes eu dizia que ia ao Brasil para um fim de semana longo com a minha família e me internava no Memorial Hospital para fazer exames e tratamento. Eu padeci muito. O mundo não tem a obrigação de me dar tudo que eu quero, pelo fato de eu ter sofrido muito, mas eu tento. A doença me castrou de alguma forma e me deixou com muita raiva. Muita raiva.
Isay Weinfeld: Uma última pergunta: como vai você?
Hector Babenco: Estou excelente. Me separei da Cristiana, uma decisão sábia, mas neuroticamente executada. Ela foi muito importante, uma pessoa que me trouxe de volta à vida, uma mulher que me despertou a vontade de ser homem, de novo, mas, como tudo na vida, passageiro. Aprendi a viver com as perdas. Ela não quis mudar e não aceitou a minha loucura. Era acima do suportável para ela. E isso foi esfriando a nossa relação. Até que um dia eu decidi que não estava dando certo porque eu não me sentia mais amado. E ela disse que não me amava mais porque eu tinha sido insuportável ao longo dos últimos tempos. Agora estou disponível. Coloca na revista o meu e-mail, uma fotografia boa, por favor.
Isay Weinfeld: Você acredita numa relação amorosa duradoura?
Hector Babenco: Não posso falar da cadeira do catedrático, não posso falar dos outros, posso falar de mim. Neste momento da minha vida, não sinto necessidade de ter uma mulher ao meu lado o tempo inteiro fazendo serviços que uma secretária e uma boa cozinheira possam fazer. Quero ao meu lado uma mulher que tenha inteligência, energia, esperteza, agilidade e a liberdade de entender quem sou eu. Eu estou disposto a compreendê-la, mas se ela não está disposta a me compreender é melhor que termine a relação. Tive grandes mulheres e devo muito a todas elas. Eu não seria quem eu sou se não fosse por elas.