Nesta segunda-feira, Fernanda Montenegro completa 88 anos, em plena atividade, prestes a estrear mais uma novela, “O Outro Lado do Paraíso”. “Nunca pensei em chegar a essa idade. Quando eu era jovem, 88 parecia ser igual a ter mil anos de vida”. Em um papo delicioso com o Glamurama, a veterana, ícone maior entre os atores brasileiros, mostrou toda sua compreensão com os mais inexperientes ao dizer que não dá conselhos – “Deus me livre” – e que “o jovem ainda não passou pela prova de fogo, não tem bagagem, então não dá pra exigir uma conversa na mesma onda. Ou ele vai se humilhar ou se defender. É natural”. Isso e muito, muito mais aqui embaixo: vem ler!
“Não tenho perfil para cadeira de balanço”
Para começar com a pergunta mais óbvia: será que Fernanda pensa em aposentadoria? “A gente até pode achar que não aguenta, mas vai fazer o que? Essa rotina te exige acordar e cantar. Você acorda e canta. Não tenho perfil para cadeira de balanço. Essa vida de artista é tão intensa que a gente vicia no estresse. Faz parte. Não é como um bancário, que pede a Deus sua aposentadoria, ou pra que chegue o sábado e domingo pra poder ficar em casa. A não ser que ele tenha uma vocação louca para aquilo e termine dono do banco… Todo dia o ator tem que mostrar sua criação, sua criatividade. É diferente”.
“Isso é filosofia barata, mas real”
Por ser vista como uma referência, deve ser boa de conselhos… “Não sou de dar conselhos na minha vida. Se me pedem, dou. Mas não fico em cima das pessoas ensinando a viver. Deus me livre. Cada um tem seu caminho. Se houver uma conversa… Mas sou incapaz de ficar: ‘olha, não vá fazer isso, ou você saber o que vai acontecer…’ Deixa a pessoa viver a experiência que quer, sem conselhos”. Perguntamos se ela se arrepende de algo. “Acho que vivi a minha vida plenamente. Não me arrependo de nada. Tudo vai acumulando conhecimento. É frase feita, mas é verdade. Mesmo as coisas mais duras e desagradáveis e dolorosas com o passar do tempo você vê que ter dobrado aquela esquina, quando você pensava ‘puxa, perdi a minha vida’, depois percebe que se não tivesse dobrado não estava agora dobrando essa outra esquina que está te salvando. Isso é filosofia barata, mas real”.
“Tomo de um a dois banhos por dia, vou ao dentista e boto um creminho na pele”
Qual é a vaidade de Fernanda Montenegro? “Minha vaidade é cuidar da minha saúde sem me privar das coisas que quero comer. Mas já comi mais do que como hoje. A vida inteira jantei muito porque a gente fazia teatro e saía depois de três atos – peças enormes – morrendo de fome. Mas a idade te põe à prova. Fora isso, tomo de um a dois banhos por dia, vou ao dentista e boto um creminho na pele. Mas não faço plástica”.
“Chega uma hora que não tem papel”
Por quê? “Uma coisa bonita no ator de teatro – televisão é outra zona – é que você vai envelhecendo e tendo papeis para sua idade. O problema da TV é que o ator quanto mais se opera, mais ele fica deslocado do seu tempo de vida, da sua estrutura física, por mais ginástica que faça, compreende? Chega uma hora que não tem papel: não é jovem pra fazer personagem jovem, nem é meia-idade porque tirou todas as possíveis rugas e papos que poderia ter. E também nunca vai ter idade de chegar ao extremo número de anos… Não tem cara para idade nenhuma. A pessoa vai ficando indefinida”.
“Não dá pra exigir uma conversa na mesma onda. Ou ele vai se humilhar ou se defender”
Para toda regra, exceção. “Essa nova novela tem um monte de ator veterano [Nathalia Timberg, Lima Duarte, Marieta Severo, Juca de Oliveira, Laura Cardoso] em papeis ótimos, complexos, difíceis. E nós todos vamos tentar fazer o melhor da gente. O jovem ainda não passou pela prova de fogo, não tem bagagem, então não dá pra exigir uma conversa na mesma onda. Ou ele vai se humilhar ou se defender. É natural que depois de… Estou nessa vida há 70 anos. Aí já sobrevivi com a minha geração. Já trabalhei muito com Nathalia, Lima… Nunca pensei em chegar a essa idade. Quando eu era nova, 88 parecia ser igual a ter mil anos de vida”.
“Se quer ser ator de TV, não perca tempo no teatro”
“Os mais jovens vêm pra essa carreira pra brilhar. Mas quando comecei não tinha TV dessa forma. Hoje em dia está muito dividido. Você pode querer fazer teatro, cinema e TV, tudo junto, mas sou de uma época em que o grande sonho era o palco. Hoje querem ser famosos. Antigamente, quando eu ia dar palestra pra jovem, falava mais de teatro que de TV. Hoje em dia não. Hoje eu digo: se quer ser ator de TV, não perca tempo no teatro. O teatro é lento, vai exigir anos de entrega. TV, não. TV é eletrônica. Se você não acertar, repete. A hora que você fizer quase bom, se tá na hora de fechar o capítulo, para ali. Não tem nada a ver com o mundo artesanal do teatro”.
“Se uma atriz jovem contracenando comigo precisar, eu espero pingarem a lágrima”
“Pode ser bem sucedido mesmo sem talento. O processo eletrônico forja o que quiser em cima do ser humano pra resultar no caminho que aquela personagem e aquela novela exigem. Se não tem lágrima, para e pinga a gota no olho. Não precisa de dois meses de ensaio. E não digo como algo inferior porque não sou ninguém pra julgar. É um processo de avanço dentro de uma ambição tecnológica. Tenho paciência, sim: se uma atriz jovem contracenando comigo precisar, eu espero pingarem a lágrima para gravar. Tenho que entender. Mas no palco a plateia não espera. Certamente vai vaiar. E o teatro não vai morrer nunca. De alguma forma, vai sobreviver”.
“É a missão dela fazer o bem. É também uma condenação”
Pra não dizer que a gente não falou da Mercedes de “O Outro Lado do Paraíso”… Sobre comparações com seu papel em outra novela, “Riacho Doce”, ela disse: “Em ‘Riacho Doce’, a personagem era poderosa, ativista dentro do misticismo dela. A Mercedes, não. Ela é uma sombra, já está do outro lado. É frágil. As vozes deixam ela acordada. Tem que fazer o que as vozes mandam, que é socorrer o próximo. É a missão dela fazer o bem. É também uma condenação. Está aqui na Terra pra isso”. Como é a fé da Fernanda? “Não sou fanática, mas tenho meu lado místico. Só não ouço vozes nem tenho nenhum privilégio de mediunidade. Eu duvido, mas Santo Agostinho diz que se você duvida, já crê. Acho essa frase muito confortadora”. (por Michelle Licory)