Amigo de Lula e FHC, de quem também foi ministro, Paulo Sérgio Pinheiro, hoje observador da ONU sobre violações de direitos humanos na Síria, alerta que a Constituição brasileira foi violada e que é preciso reestabelecer a normalidade para não ficarmos mal aos olhos do mundo
Por Fabio Dutra Fotos Paulo Freitas
Já diria a avó deste repórter: a gente faz planos e Deus ri. Pois o jovem Paulo Sérgio Pinheiro, intelectual desde o berço, extremamente culto de pai, mãe e parteira, elegante e bem formado conforme os melhores ditames da etiqueta ocidental, queria ser diplomata. Formou-se em Direito pela Pontifícia Universidade Cató-lica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) e dedicou-se a entrar no Itamaraty, sonho de toda família carioca nos tempos da Guanabara. Bateu na trave. A barreira? A língua francesa com a qual se comunicava – e se comunica – com destreza desde antes da alfabetização. Segue a vida e o garoto que passou toda a pós-graduação, pasmem, na França, onde ficou amigo de Fernando Henrique Cardoso e de outros expatriados da elite brasileira, retornou ao Hemisfério Sul para puxar aquele papo chato – “precisamos falar sobre direitos humanos” – e assim acabou na Organização das Nações Unidas (ONU), responsável, entre outras coisas, por analisar os desrespeitos à dignidade humana ocorridos na comentada guerra da Síria. “Só não vá me escrever que sou diplomata, que meus amigos do Itamaraty vão brigar comigo”, explica um dos mais bem cotados diplomatas sem formação da história do Brasil.
Entre a França e a ONU passaram-se qualquer coisa como 50 anos, bem vividíssimos, e Pinheiro casou-se, separou-se, casou-se de novo com a senhora Ana – sua companheira até hoje, a quem ele se refere o tempo todo, com um misto de admiração e de medo, mormente na hora de aceitar a sobremesa além da cota permitida pelo cardiologista. Teve três filhos, quatro netos, brincou de jornalista ao editar o caderno in ternacional da IstoÉ dos tempos de Mino Carta sob a égide de Roberto Pompeu de Toledo, foi ministro da Secretaria de Direitos Humanos no governo Fernando Henrique Cardoso, um dos sete membros da Comissão Nacional da Verdade, que investigou os crimes da ditadura, e criou uma visão íntegra de Brasil, dessas de quem vê o jogo de xadrez de fora do tabuleiro. Tudo isso sem perder a ternura. O garoto, diplomata – sustentamos nós –, consegue ver as questões nacionais com muito embasamento e alheio às paixões do momento sem esquecer das próprias, e consegue se referir com o mesmo respeito e carinho aos presidentes Fernando Henrique e Luiz Inácio Lula da Silva (a quem promete visitar tão logo a juíza federal Carolina Lebbos passe a autorizar as visitas de notáveis comme il fault – a execução da pena de Nelson Mandela, na África do Sul, é o exemplo que ele sempre usa pra explicar o porquê de isso ser natural). Num momento que precisa de tanta explicação e de tanta experiência, PODER decide almoçar com alguém cuja trajetória é incontestável – e cuja leitura da conjuntura se faz necessária.
Atualmente, Paulo Sérgio Pinheiro é observador da ONU sobre violações de direitos humanos na guerra da Síria (presidente da comissão de inquérito sobre a Síria, para ser mais preciso), cargo diplomático na essência, e divide os dias entre São Paulo e Genebra. Por conta da posição que ocupa e do histórico da ONU de neutralidade política, recua um pouco toda vez que chamado a opinar sobre desrespeitos a direitos humanos perpetrados desde a derrubada de Dilma Rousseff e a instalação do novo governo. Os chamamentos podem vir tanto do gabinete autoempossado quanto de autoridades e grupos civis armados, para-militares, que se aproveitam da instabilidade institucional para arbitrariamente atacar agrupamentos dos quais discordam materialmente. Apesar disso, não se furta a criticar o novo governo em geral e mira em ações oficiais em desacordo com os tratados internacionais firmados pelo Brasil. Como é o caso da revisão das definições de trabalho escravo, ação iniciada por FHC, e que pela flexibilização proposta passará a livrar a cara de muita gente que pela descrição antiga se enquadraria como escravocrata. “Estamos falando de trabalho escravo no século 21 e uma democracia moderna conivente com isso é absurdo. Chegaram ao cúmulo de tentar não publicar a lista suja (nomes de pessoas condenadas por reduzir trabalhadores à condição análoga à escravidão), até porque tem deputado com o nome lá…”, indigna-se Pinheiro.
Quando o assunto é o Congresso, aliás, não tem arrego. O foco das críticas é, principalmente, a “saraivada de projetos regressistas” para aguar alegados avanços como o já comentado combate ao trabalho escravo, a Lei Maria da Penha, o desarmamento e outros. Pinheiro faz troça: “Esse Parlamento cleptocrata aprova tudo desde que remeta ao passado: ‘Se é retrocesso eu estou aí’ é o lema”. Nesse sentido, de iniciativas arcaicas que partem ou recebem apoio incondicional do Legislativo, ele ainda cita a reforma trabalhista abjeta – “conseguiram extinguir o limite das oito horas diárias e 18 anos como idade mínima padrão, que eram pautas das greves de 1907 e 1917 no Brasil e também no resto do mundo. Foram jornadas globais!” – e, principalmente, a PEC 55, que congela investimentos sociais por 20 anos independentemente do desempenho da economia. “Meu colega, relator da ONU para a pobreza extrema, Philip Alston, publicou documento em que alerta sobre o risco de isso prejudicar irremediavelmente as gerações vindouras”, denuncia.
A carga contra o presidente em exercício Michel Temer não para: Pinheiro não se conforma com a dis-solução da Secretaria de Direitos Humanos, que tinha status de ministério e para todos os efeitos práticos se tratava de um. “Demoramos 30 anos para fazer o ministério, não é algo que se faça do dia para a noite, passou bem, ficando robusto e mais consolidado a cada dia, por três governos desde o FHC, quando eu até fui ministro, e eles fecharam. É um retrocesso”, lamenta, antes de completar, crítico e quase resignado: “Essas pessoas não têm a menor ideia do que é a comunidade internacional e da importância do Brasil, eles são provincianos. Esses ataques maculam nossa imagem, o que é bastante prejudicial. É como a [cela] solitária chic do Lula e a proibição de visitas tão ilustres quanto a do intelectual e religioso Leonardo Boff, um senhor de idade, e de um prêmio Nobel, o argentino Adolfo Pérez Esquivel, defensor dos direitos humanos na América Latina, totalmente desnecessário e malvisto pela comunidade internacional”.
O otimismo ao discorrer sobre o futuro, porém, e a doçura na fala enquanto tece críticas tão duras formam um paradoxo extremamente agradável – algo louvável e bastante bem-vindo durante a refeição. A luz do outono paulistano sobre a figueira que batiza o mais famoso restaurante da rede Rubaiyat e a figura meio dândi de Pinheiro – paletó com lenço no bolso, camisa e calça de cores distintas, bengala – a saborear vagarosamente seu bacalhau completam a inusitada e amistosa imagem que ficará na memória. Passamos a falar da Síria e ele nos conta da dificuldade que encontra para coletar documentos e receber denúncias, dado que o presidente Bashar al-Assad não permite a entrada de observadores internacionais. À vista disso, acaba por frequentar os campos de refugiados na Europa para entrevistar expatriados e, com a ajuda de ONGs e outras associações independentes consegue, via Skype, falar com um ou outro cidadão sírio em meio aos escombros. Apesar de dizer que está velho com seus 74 anos e atribuir às dificuldades físicas correspondentes as razões de não ministrar mais aulas, quanto mais nos cursos noturnos que USP e Unicamp oferecem, o di-plomata que não quer ser chamado de diplomata é bastante ativo e entusiasmado com a ponte aérea São Paulo-Genebra – qualquer lugar do globo (os comissionados da ONU para esses assuntos nunca avisam para onde vão e quando vão). “Eu tenho a sorte de ter direito a bilhetes de classe executiva como prerrogativa da função, por isso consigo”, diz, modesto, o jovem de quase oito décadas.
O cardiologista francês (ele se consulta em Paris, bien sûr) permitiu uma sobremesa por semana e Pinheiro embarca de cabeça num crepe de doce de leite argentino que ele diz adorar e degustar toda vez que vai à Argentina. Ficamos desconfiados que ele acabou por estourar a cota semanal, mas não nos cabe acusar sem provas. O sol aperta e ele empunha os óculos escuros redondos e os mete na cara, reforçando a recomendação ao fotógrafo para não registrá-lo com aquele acessório: “Fico parecendo um mafioso!”, gargalha. Ainda dá tempo de perguntar sobre as eleições de outubro, jogo rápido: “Esse Jair Bolsonaro me lembra o plebiscito da monarquia em 1993, quando 13% da população votou naqueles fascistas da família Orleans e Bragança: acho que é isso que ele tem de votos”, avalia, cético quanto a um voo mais longo do capitão reformado do Exército brasileiro. Mas teremos eleições livres? “Acho que está claro que agem para tirar o Lula da disputa e temos o risco de esse Congresso, que topa qualquer parada, passar o semi-presidencialismo ou parlamentarismo, mas prefiro acreditar que isso não vá acontecer”, analisa. E qual será o cenário então, professor? “Acho que o campo democrático, que falhou em defender a Dilma quando ela precisava ser defendida até por quem não concordava com o seu governo para impedir que esses que aí estão chegassem ao poder pelo golpe, precisa fazer uma frente única – não falarei ampla para não dar azar [em referência ao movimento que levava esse nome capitaneado por Carlos Lacerda, Juscelino Kubitschek e João Goulart em 1966]. E acho que vai ocorrer”, palpita, otimista como um garoto.