Em 2015, o professor Renato Janine Ribeiro assumiu o Ministério da Educação apoiado por seus pares e com a missão de viabilizar o lema do governo Dilma Rousseff: “Brasil, Pátria Educadora”. Seis meses depois e impossibilitado de colocar em prática a sentença, deixou o cargo ceifado pelo jogo político. O cargo, porém não a tarefa que lhe foi passada
POR FÁBIO DUTRA E DADO ABREU FOTOS ROBERTO SETTON
O senhor, que conhece a astrologia e fala muito bem sobre o assunto… – balbucia o repórter, logo interrompido.
– Não entendo nada, viu? Não sei nem identificar aqueles símbolos lá.
– Mas sabe pelo menos o seu signo? – insiste o entrevistador.
– Sagitário, com ascendente em Áries e a lua em Leão, o que indica um perfil muito de fogo.
O diálogo algo anedótico ocorre em meio a uma longa conversa, bem densa, em que o professor Renato Janine Ribeiro – da Universidade de São Paulo, ex-ministro da Educação no governo Dilma Rousseff, estudioso da ética e maior especialista brasileiro em Thomas Hobbes (aquele do “o homem é o lobo do homem” que aprendemos na escola quando passamos a descobrir que as relações civilizadas não são exatamente naturais, mas fruto de um contrato social), entre outros não poucos títulos e predicados intelectuais dignos de nota – traça um panorama da política e da sociedade brasileiras. Por ora, contudo, fiquemos um pouquinho mais no reino das constelações: o Brasil, afinal, está vivendo um Mercúrio retrógrado ou algum outro acidente ferroviário em seu mapa? O professor ri, refuta os termos astrológicos para pensar nessa questão, mas conclui em tom grave que “o Brasil está num risco muito grande de autodestruição”. Seja pelo abandono sistemático de uma série de conquistas para as políticas públicas – como a uniformização dos dados estatísticos que as norteiam e o abandono de investimentos em empresas de pesquisa como a Embrapa e a Embrapii, que correm o risco de desaparecer –, seja pelo descaso do governo com alguns parceiros comerciais e alguns acordos internacionais de que somos signatários (mormente os ambientais) por questões ideológicas. Por um lado, “imagine se alguém plantaria café sem saber o que a ciência descobriu sobre o assunto” – alegoria que serve para o descaso do governo com a sociologia e os dados que produz para embasar decisões do Executivo –, e, por outro, “daqui a pouco não vamos poder vender mogno para o Canadá, por exemplo, porque não teremos os certificados de que a procedência é o plantio e não o desmatamento”. E reitera: “Podemos chegar ao cúmulo de abrir mão de US$ 13 bilhões em exportações para o Irã porque o presidente prefere o Trump na briga entre os dois países estrangeiros”. O tapa é forte, mas a luva é de pelica.
Aos 69 anos, Renato Janine Ribeiro não levanta a voz. É generoso com os interlocutores e ouve atentamente as perguntas, quaisquer que sejam, às quais responde com ilustrações simples de entender, tal qual as metáforas sobre futebol e economia doméstica que políticos bons de gogó fazem largo uso em palanque quando o tema é espinhoso e a audiência, leiga. Vê com crítica e certo distanciamento de observador mesmo o governo ao qual serviu por seis meses em 2015. Tarefa, aliás, pra lá de inglória: chegou ao ministério após a queda do antecessor Cid Gomes – que caiu após chamar publicamente o então presidente da Câmara, Eduardo Cunha, de “achacador” –, numa pasta que começava a ter recursos cortados e num período em que o impeachment já era uma possibilidade no horizonte. Quando saiu da cadeira para dar lugar a Aloizio Mercadante, o bloco do “Fora, Dilma!” já batia suas panelas mais forte do que o volume dos gritos de “Não vai ter golpe!” de quem tentava sustentar a mandatária no gabinete. Sobre o tempo dessa grande tentativa de adequar todos os anseios, seus e de tantos, de evolução real da educação pública em um país ainda por erigir seus melhores dias num orçamento cada vez menor, Janine Ribeiro lançou, em 2018, A Pátria Educadora em Colapso (ed. Três Estrelas), seu relato do convívio próximo com a fauna brasiliense e toda sorte de interesses, legítimos ou não, que pressionam o Poder Executivo. Vinho português e bacalhau devidamente alocados na mesa numa agradável sexta-feira de inverno que deixou bastante iluminada a varanda do La Tambouille, em São Paulo, e ele está pronto para explicar pacientemente a geleia geral brasileira, ponto a ponto, a quem quer que esteja ávido por aprender com quem confirmou em Brasília a máxima de que “na prática, a teoria é outra”, mas não se abateu ou se deixou ser envilecido por isso.
ALFABETIZAÇÃO
“O governo perdeu a chance de nomear Mozart Neves Ramos [educador e diretor do Instituto Ayrton Senna], uma pessoa de enorme consenso em favor da educação básica pública que se formou no Brasil desde o governo Itamar Franco. Um conservador, como o governo procura, mas profundamente comprometido. É o primeiro governo sem uma pauta de educação para além da negação do que se chama ideologia de gênero e escola sem partido. Atacam Paulo Freire e indicaram duas pessoas para o cargo que não têm plano para educação básica. Não quer educação politizada, está bom, mas alfabetiza as crianças tecnicamente, pelo menos. Em 2015, o MEC notou dois erros que precisam ser corrigidos e nada está sendo feito: o governo federal tentou ir direto aos municípios sem passar pelos estados, o que não funcionou num país com 5.570 cidades; e as universidades que substituíram os cursos normais na formação dos educadores focaram muito em desigualdade e ensinaram pouco as técnicas de alfabetização. É uma questão que eu daria no início, de forma motivacional, com alguém tipo Mario Sergio Cortella explicando a importância, e depois ensinaria as técnicas. É o que se faria em saúde – num curso sobre malária seria tocado no tema da relação da doença com a pobreza em uma aula e nos meses seguintes os alunos aprenderiam os tratamentos. O João Batista Oliveira, do Instituto Alfa e Beto, é conservador e alfabetiza muito bem. Seu trabalho poderia ser aproveitado, por exemplo.”
PRIVATIZAÇÕES
“No caso da Embraer, por exemplo, parece que ela foi privatizada “estando grávida”, vaca com bezerro dentro. Tinha algo que estava para avançar e que alteraria muito o valor, então acabou sendo mais barato do que deveria e o controle passou para o estrangeiro. [O pipeline de entregas de aeronaves de até 150 passageiros da Embraer é maior que o da Boeing e da Airbus, e a recente proibição do uso das aeronaves Boeing 737 Max na maioria dos países ocidentais instalou a crise na empresa que adquiriu a montadora brasileira de aviões]. No caso da educação – e por consequência desse raciocínio, da previdência e da saúde –, há uma preocupação latente que precisa ser dita: não podemos introduzir um elemento de insegurança para os vulneráveis da sociedade. O Future-se ou o regime de capitalização da previdência precisam levar em conta que eventualmente as bolsas de valores quebram. E se o menino está no quarto ano, ele precisa estudar, não pode faltar recurso porque o mercado oscilou; o mesmo com o idoso, que não pode ficar sem aposentadoria ou ter seus rendimentos variando com os índices das ações para sobreviver; ou com o doente, que não pode ficar sem remédio no hospital porque o mercado vai mal. Tem segmentos que você tem que ter garantia, não pode ter risco. A educação é um deles.”
LULA E PT
“Nomear a Dilma não foi o maior erro do Lula, como está convencionado dizer. O maior erro foi ele ter escolhido candidatos dos principais cargos em 2010, 2012 e 2014. O custo foi alto porque o PT se acostumou a um processo de autoinfantilização. Pensaram: existe um gênio e ele escolhe o melhor para nós e pronto. Passaram 41 anos e ele é o único nome para o partido. No ano passado, mesmo que estivesse visível que ele não seria autorizado a concorrer, ele se lançou. Isso custou, inclusive, caro porque o Sérgio Moro mandou prendê-lo por isso. Sem a candidatura é provável que ele estivesse solto.”
CIRO GOMES E FHC
“O Ciro e o Fernando Henrique fizeram uma coisa não republicana. Na França – justamente para onde o Ciro foi descansar após o primeiro turno das eleições e onde o FHC deu aulas – o apoio no segundo turno de todos os partidos democratas contra um candidato de extrema-direita é inegociável. Não há discussão, seja um candidato de esquerda ou de direita, não há espaço para impor condições, tem que apoiar, como fizeram com o Emmanuel Macron contra a Marine Le Pen. É incondicional. Se Ciro e FHC fizeram por razões pessoais, mostram que não têm maturidade republicana.”
GESTÃO PÚBLICA
“Quando diretor do Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior), morei na Academia de Tênis em Brasília (tradicional complexo que é um misto de clube e condomínio habitacional), do senhor José Farani, meu amigo, que acabou morrendo entristecido porque havia acusações criminais contra ele. A filha dele, Maria Nazareth, aliás, é a diplomata que está na ONU, em Genebra, e tem dito todo tipo de absurdo contra os direitos humanos. Pois na Academia sempre ocorriam conferências nacionais sobre temas diversos. A cada medida pública o governo definia o tema, organizava o evento e a sociedade mandava seus representantes. O Plano Nacional de Educação (PNE) foi elaborado assim.”
JAIR BOLSONARO
“Lembro de uma anedota sobre o Jânio Quadros em que ele vai ao psiquiatra para saber se havia perdido a razão. O profissional diz que ele pode ficar tranquilo, está com a saúde mental perfeita, e que loucos estavam os 6 milhões de eleitores dele. Creio que o problema do Bolsonaro não é exatamente ele, mas a quantidade de pessoas que apoiam algumas de suas pautas mais radicais e violentas.”