O sonho não acabou – virou plano de meganegócio para os empreendedores do Rock in Rio, que nasceu como um delírio e hoje, revezando-se principalmente entre Rio e Lisboa, tornou-se referência mundial, com ingressos esgotados em 15 dias. Agora com Rodolfo Medina à frente da empresa que conduz o evento, o Rock in Rio multiplicou-se também em festival de games e academia corporativa e seduziu a gigante global do entretenimento Live Nation, que aportou recursos ali.
Por Paulo Vieira Fotos Roberto Setton
Depressão econômica, desemprego, justiça seletiva, concentração de renda, xenofobia, desdém com o aquecimento global, inépcia. Vivemos no Brasil e no mundo uma época particularmente obtusa, que o historiador Eric Hobsbawm, caso ainda vivo, poderia, quem sabe, chamar de Era da Desinteligência – ou Era da Estupidez.
Um pesadelo, enfim
Há, contudo, quem jamais veja o pesadelo, ou, avistando-o, siga a preferir o sonho. E, mais do que apenas preferi-lo, vá pras cabeças na tentativa de realizá-lo.
Caso da família do publicitário carioca Roberto Medina, o criador do Rock in Rio, evento complicado hoje e impensável em 1985, naquela primeira edição, quando o máximo que o Brasil conhecia em termos de megafestival de música era Iacanga. Hoje o Rock in Rio, executado por Rodolfo Medina, à frente desse e de outros negócios da família (veja box na pág. 13), e pelo CEO Luis Justo (ex-Osklen), bate recordes de velocidade de vendagem de ingressos – em 2019, 15 dias –, agrega cada vez mais opções de entretenimento ao evento e multiplica-se em outros formatos, como um festival de games e uma academia corporativa que procura ensinar os macetes de um negócio como esse. Ou seja: ensinar a sonhar muito grande. Enorme, no caso.
Na verdade, ninguém aprende a sonhar, mas pode vir a ser persuadido que o desejo – bom ou ruim – não precisa ser pequeno. E o exemplo de Roberto Medina era bom demais para que seus sucessores o desperdiçassem. Antes do Rock in Rio, o publicitário já havia convencido David Niven e Frank Sinatra a tomarem uísque Passport – apenas engarrafado no Brasil, o que já não ajudava muito – numa campanha televisiva que mitou. No caso do Old Blue Eyes, fazê-lo depois cantar no Maracanã para mais de 170 mil pessoas sob um dilúvio – que por milagre passou na hora do show – foi tarefa até mais fácil para Medina: a gravação do comercial da bebida aconteceu no dia em que a mãe do cantor morreu num acidente aéreo. Medina ainda sobreviveria a 16 dias de cativeiro em 1990, rumoroso sequestro que talvez tenha vitaminado ainda mais seu potencial onírico. Significativamente, sua biografia, publicada em 2006, chama-se ‘Vendedor de Sonhos’.
Pois é com o nível de ambição desse personagem, capaz de “ouvir 70 nãos até receber um sim”, que seu filho Rodolfo e Justo têm de se entender. Nenhuma edição do Rock in Rio pode repetir a anterior, o que significa criar uma nova experiência memorável a cada 365 dias. Após fazer incursões por Lisboa, Madri e Las Vegas, o evento estabeleceu uma frequência anual revezando-se entre o Rio e a capital portuguesa.
As tais experiências memoráveis significam para os organizadores um nível de preocupação exasperante com o detalhe. Limpeza de banheiros, diminuição de filas, criação de novas atrações, aumento do número de produtos licenciados, tudo tem de superar a vivência anterior. “Além de ser um sonhador e um realizador de sonhos, [Roberto Medina] tem muito cuidado com o detalhe, com a experiência, isso impacta toda a gestão do Rock in Rio, a gente está o tempo todo sendo cobrado”, disse Justo a PODER na sucursal paulistana da Artplan, a agência de publicidade do grupo. Em 2019, de volta ao Parque Olímpico do Rio, que hospeda o evento pela segunda vez (para alegria dos entes governamentais, locadores daquela linda e dispendiosa coleção de elefantes brancos esportivos), o festival ganha mais algumas atrações (veja box da pág. 14). A ida para o Parque Olímpico, em 2017, já havia significado dobrar o espaço tradicional da Cidade do Rock, e este ano são 60 mil metros quadrados além da área daquela edição. Mais espaço, mas não necessariamente mais gente, pois a limitação de 100 mil pessoas para cada uma das sete noites do evento impede que o festival bata recordes de afluxo de público – muvuca, como se sabe, não costuma ser amiga da boa experiência. O impacto direto e indireto na economia carioca é relevante, gerando uma receita, nos cálculos da organização, de R$ 1,4 bilhão. Governo e município oferecem certas contrapartidas, como manter o metrô aberto de madrugada, algo que, aliás, jamais aconteceria em São Paulo, onde as estrelas de festivais de grande porte como o Lollapalooza têm de encerrar os trabalhos no horário do trem do Adoniran.
LADY GAGA
Sonho grande, quixotesco ou inverossímil, a verdade é que, com putada sua receita média anual, o festival Rock in Rio geraria menos de R$ 500 milhões para os organizadores numa estimativa de mercado, algo que não faria grandes empresários de outros setores espumarem na gravata para tirar o negócio das mãos da família Medina. Mas com o segmento de entretenimento puro-sangue a conversa é diferente e, com efeito, a Live Nation, companhia global com faturamento de US$ 10,8 bi em 2018 e detentora da ubíqua Ticketmaster (que comercializou entradas para 400 mil eventos no ano passado), comprou uma participação no Rock in Rio há cerca de um ano. Segundo Justo, mesmo com a estatura da Live Nation – conhecida nas internas por “Death Star” por asfixiar e engolir a concorrência –, nada mudou desde então na gestão dos vários negócios da casa, assim como nenhum sonho ainda mais potente saiu do papel. Entre eles, o de uma Cidade do Rock permanente, num formato de parque temático à Disney – ou à Ferrari, já que sua existência é cogitada para algum emirado árabe. O arranque com a Live Nation pode ser menos espetacular, talvez um filme sobre o próprio festival, numa tabelinha com outra “vertical” da empresa, a divisão de TV e filmes, responsável pelo remake best-seller de ‘Nasce uma Estrela’, com Lady Gaga e Bradley Cooper, ambos indicados ao Oscar. Ironicamente, Gaga era a principal atração da edição de 2017, mas problemas de saúde a fizeram cancelar na última hora a vinda ao Rio, e o time de Rodolfo e Justo teve de se virar nos 30 para convencer os fãs que Maroon 5 era um substituto à altura.
MUNDO MELHOR
Roberto Medina gosta de contar a história do momento em que quase abortou o sonho que o fez famoso em 1985. Com dívidas e atraso nas obras, diz que em dado instante decidiu que iria interromper a construção da Cidade do Rock mesmo já tendo vencido a desconfiança – e os “70 nãos” – das bandas que lhe diziam que “jamais” tocariam no Brasil. Mas um evento comezinho, o encontro naquele fim de mundo de Jacarepaguá com três rapazes “de um Passat” que o tinham na conta de ídolo justamente pela promessa do Rock in Rio, o fez desistir da desistência. É razoável especular o quanto essa coleção de eventos laterais um tanto improváveis e as muitas histórias de superação de seu criador acabaram por dar um toque algo etéreo, para não dizer místico, ao festival. De alguma forma ele está no slogan “Por um mundo melhor” e também em eventos como os três minutos de silêncio observados no Brasil inteiro em 2001, Rock in Rio incluído, claro, e em Portugal depois. Medina vê na Cidade do Rock um espaço privilegiado para propagar e produzir mensagens. Muito mais do que festival de música – ou de games, em sua nova faceta –, o Rock in Rio é, como na definição expressa no site oficial, “um veículo de comunicação de emoção e causas”. A preocupação socioambiental é uma constante, com o festival, desde 2001, destinando parte de sua receita para o plantio de árvores na Amazônia, para a educação de 3.200 jovens de comunidades carentes do Rio e para a instalação de 760 painéis solares em escolas de Portugal, entre outros projetos. Perseguir ano a ano a redução da pegada de carbono do festival é, assim, um objetivo natural, mas estimular que os muitos espectadores que vêm de fora do Rio troquem o avião, o grande vilão mundial na emissão de dióxido de carbono, por outros meios de deslocamento, aí já é pedir demais.
O DNA em publicidade dos Medina – a Artplan, aliás, segue a navegar com capital 100% nacional no mercado brasileiro, onde todos os grandes players estrangeiros já fizeram suas aquisições – faz com que o Rock in Rio dê grande atenção às marcas patrocinadoras. Em 2019, o festival cresceu 20% em publicidade. Mais crítica é, contudo, a bilheteria, responsável por cerca de 65% do faturamento do evento. Dar tanta atenção ao “parceiro”, como preferem Rodolfo Medina e Justo, poderia tornar suave a tarefa de trazer dinheiro novo, mas Rodolfo protesta. “Dá um trabalho duro”. E pondera: “Entregar mais do que a marca espera facilita renovar o patrocínio. E é mais fácil renovar com o Itaú do que explicar para o concorrente por que o Itaú não renovou. Isso tem de estar na nossa cabeça: a gente tem de entregar mais”, diz.
A Natura, que em 2019 completa 50 anos, é uma das marcas que recebem essa tal entrega no Rock in Rio deste ano. O espaço que ela patrocina e ajudou a conceber, Nave, tem capacidade para que até 2.400 pessoas por sessão vivam uma “experiência imersiva” e se sintam estimuladas a refletir sobre a vida num planeta acossado por práticas predatórias. Para Andrea Alvares, VP de marketing, inovação e sustentabilidade da Natura, “Nave é um chamado poderoso para o engajamento das pessoas na transformação do mundo, tornando-o um lugar mais bonito, empático e sustentável.” Para ela, a inédita parceria com o Rock in Rio faz sentido por ter o festival “impacto direto e indireto em milhões de pessoas”. Mesmo sem admitir qualquer pulsão planfletária – “o Rock in Rio é um evento apartidário, alinhado apenas com nossas crenças”, diz Justo –, pode ser que os espectadores saiam de lá bastante preocupados com as pautas ambientais regressivas que emanam de Brasília. O diabo é que logo depois vem o show do Foo Fighters, do Bon Jovi, do Drake. E como faz pra lembrar do engajamento depois disso?
ROCK E MARATONA
A Rock World, empresa que monta o Rock in Rio e o evento Game XP, é a joia do Grupo Artplan, holding dos Medina, mas há mais negócios no balaio: a agência Artplan, que se diferencia da concorrência por, entre outras coisas, ter capital 100% nacional; a Pullse, agência focada em marcas do varejo; a Dream Factory, organizadora de eventos como a maratona do Rio e a versão carioca do famoso Montreux Jazz Festival; a Easy Live, plataforma de conversão de saldos de milhagem em ingressos de espetáculos; e a Musicalize, que comercializa indulgências em shows de música. O dia a dia do presidente do Grupo Artplan, Rodolfo Medina, que se divide entre Rio e São Paulo, é digno de maratonista – trata-se de uma metáfora. Rodolfo não corre e ficou surpreso em saber pelo repórter da PODER que os maratonistas, caso queiram largar no horário na prova que sua própria empresa põe de pé, não têm a opção de pegar metrô, que no Rio inicia a operação aos domingos só às 7 da manhã. E a largada é nos cafundós do Recreio, pra lá do Parque Olímpico.
A EXPERIÊNCIA
Seis palcos com programações diferentes, da música eletrônica ao funk e o pagode ouvidos nas comunidades do Rio; reconstruções cenográficas inspiradas nos parques temáticos da Flórida, como a da Rota 66 (customizado aqui para 1985, na primeira edição do Rock in Rio); performance dos argentinos do Fuerza Bruta, que voam sobre o público e fazem acrobacias à maneira do catalão La Fura dels Baus; espaço gourmet climatizado inspirado no Mercado da Ribeira, de Lisboa; roda-gigante, montanha-russa, tirolesa e um brinquedo que despenca de uma altura de 40 metros em 10 segundos, todos acessíveis por hora marcada. As atrações de entretenimento do Rock in Rio vão muito além da música para tentar oferecer ao público a tal “experiência” de que tanto fala Luis Justo. A estreia da Natura como patrocinador do Rock in Rio é outro feature poderoso, a Nave, concebido por Marcello Dantas, que idealizou museus como o da Língua Portuguesa e do Homem Americano, entre vários outros, e exposições de impacto como a do chinês Ai Weiwei.