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LUTA DE CLASSES

Como a entrada de mais alunos bolsistas, negros e movimentos sociais está mudando a cara da FGV, uma das faculdades de administração mais conceituadas, tradicionais e elitizadas do país

Por Chico Felitti  | Ilustrações: Bruna Bertolacini

Dois alunos do curso de administração de empresas da Fundação Getulio Vargas (FGV) paulistana estão jogando videogame no sofá da sala de descanso da faculdade numa tarde fria de sexta. Quando derrota o outro no futebol virtual, o perdedor grita: “Ah, seu viado!”. O que gritou imediatamente leva a mão à boca e olha ao redor. Ninguém viu. Os jogadores são observados apenas por cartazes multicoloridos colados nas paredes, em que se lê: “FGV é gay”, “FGV é lésbica” e “FGV é trans”. Conhecida como celeiro de CEOs, a escola de administração passa nos últimos semestres por uma pequena revolução social. Coletivos de feministas, de alunos LGBT+ e do movimento negro floresceram ali dentro.

Uma política de aumento de bolsas de estudo permite que, hoje, 20% dos alunos sejam bolsistas e tenham desconto na mensalidade, que atualmente está na casa dos R$ 4 mil. A mudança do perfil dos alunos da instituição é proposital. “Historicamente, a FGV era uma escola de elite paulistana, até pelos valores cobrados”, diz o diretor Luiz Artur Ledur Brito. “Mas todos saem ganhando se o grupo de alunos for mais diverso.”
A diversidade ainda passa por um processo de adaptação lá dentro. “É bem complicado ser bolsista. Eu não me sentia parte daquele universo, as pessoas estavam todas falando dos países em que iam passar as férias. Não era a minha realidade”, diz Bruna Ferreira Lucena, 20 anos, representante do grupo dos bolsistas e ex-aluna de escola pública. No semestre passado, Bruna e alguns colegas criaram a tradição de fazer um churrasco de boas-vindas para os “bichos” bolsistas. A primeira edição foi na casa de um aluno em Guaianases, bairro da zona leste paulistana a cerca de 30 km da faculdade, trajeto que, durante a semana, leva quase duas horas para ser percorrido. A segunda confraternização deve acontecer em um local mais próximo.

AINDA NO COMEÇO

Além de entrosamento, o grupo serve para que seus membros lutem por mais verbas. O último processo seletivo foi o primeiro em que a demanda por bolsas não restituíveis foi maior que a oferta. Cinco alunos aprovados para cursar a graduação desistiram antes da matrícula ao saber que não teriam direito a bolsas integrais, que já haviam se esgotado. Além das cerca de 50 bolsas integrais, a FGV conta com um fundo de aplicações que concede empréstimo subsidiado para o aluno que não pode pagar as mensalidades durante o curso, valor que deve ser devolvido até quatro anos depois da formatura. O grupo de alunos de baixa renda conquistou outras vitórias, como aumentar de R$ 10 para R$ 25 a verba mensal que recebem para imprimir textos. “Tem gente que fica fazendo piadinha, que mostra algum tipo de preconceito”, diz Bruna. Ela narra o caso de um amigo que trabalhava e conseguiu comprar um iPhone 6. Foi parado por um colega e ouviu dele que, com aquele celular na mão, não tinha cara de bolsista. Brito, o diretor da FGV, diz que o processo de diversificação ainda engatinha. “Para mim, o resultado é modesto. Estou decepcionado porque no sistema educacional caminha lentamente, e eu queria que fosse mais rápido.”
Há gente vindo de mais longe que a periferia para estudar ali. É que a GV passou a destinar quase metade das vagas para alunos que preferem usar sua nota do Enem, aplicado em todas as cidades do Brasil, no lugar do vestibular, o que garante o acesso a gente de fora das metrópoles. A novidade começa a ser colocada em prática no ano que vem com a graduação noturna, que vai durar cinco em vez dos costumeiros quatro anos em período integral, o que permite que os alunos trabalhem durante o curso. Outra tradição de décadas que chegou ao fim nos cursos de administração foram as bolsas-mérito. Até este ano, os primeiros colocados no vestibular ganhavam desconto: o primeiro colocado ganhava uma bolsa de 100%, valor que ia diminuindo até chegar ao décimo melhor classificado. “Dava-se bolsa para quem não precisava. A gente achava que era um desperdício de recursos, e aumentamos outras bolsas”, diz o diretor.

O número de alunos negros ali nunca foi tão grande, diz Graziela Santos, 22 anos, do coletivo 20 de Novembro. Quando ela entrou na faculdade, no segundo semestre de 2014, o grupo ainda não existia. “Até porque éramos uma meia dúzia”, conta. No começo do ano, durante um jogo de futebol feminino na quadra do prédio, no bairro paulistano da Bela Vista, um aluno de economia gritou: “Neguinha, aqui, não!”. No dia seguinte, dezenas de estudantes se sentaram na quadra e disseram que não assistiriam a nenhuma aula enquanto não houvesse uma resposta da escola. A FGV emitiu uma carta repudiando o preconceito. O aluno não foi identificado ou punido.
“A gente vai enfrentar vários outros casos, inclusive com professores e funcionários”, diz o diretor Brito, que aponta a conscientização como antídoto para esse tipo de entrevero. A faculdade, ele afirma, está fazendo workshops com todos os funcionários sobre diversidade. “Você tem professores e funcionários que foram criados em outro processo, e têm dificuldade em lidar com isso.” Segundo Thales Vieira, de 19 anos, do coletivo Delta de diversidade de gênero, as pessoas até adotam novo comportamento, o que não quer dizer que a mentalidade delas esteja mudando de fato. “Aos poucos é capaz que mude”, diz ele.

São mais de 250 membros na página do grupo LGBT+ no Facebook, que é secreta, ou seja, só pode ser vista por quem faz parte da comunidade. “Muitos LGBTs não se assumem, talvez pela própria carreira. Ainda estamos começando a conquistar nosso espaço em bancos e empresas”, conta Thales, que é aluno de administração pública. Há, por exemplo, um homem transexual na graduação que tem seu nome social respeitado em toda a papelada acadêmica, inclusive na carteirinha, mas que prefere não se identificar.

Uma das maiores vitórias da diversidade, entretanto, é o som do silêncio. O coletivo feminista Candaces ganhou voz quando, dois anos atrás, fez um vídeo de um dos hinos criados pela bateria da faculdade intercalado com depoimentos de alunas que foram vítimas de abuso. A música, cujo trecho mais inocente era “Feana eu não sou lá da USP, eu sou diferente, eu vou ser presidente, você, secretária, minha faxineira”, foi proibida. Hoje, o nome de qualquer artista aventado para se apresentar numa festa promovida pelo diretório acadêmico ou pela atlética tem de ser aprovado pelo grupo. O concurso Miss Bixete, que por décadas escolheu a novata mais garbosa, foi extinto. “A gente tem de cuidar para não ser um ambiente de policiamento, para não criar um preconceito do outro lado”, pondera o diretor. Há alunos que veem com preocupação os novos tempos. “Eu não sou milionária, meus pais se matam para pagar a faculdade, mas eu não posso falar nada. É como se só quem faz parte de uma causa tivesse voz”, diz uma aluna de administração de empresas que só concedeu entrevista sob anonimato – ela teme o que chama de “a patrulha das minorias”. Acima do pufe em que essa aluna está sentada, há outro cartaz, dessa vez em preto e branco. Ao lado do desenho de uma moça negra, segurando os cabelos volumosos com as duas as mãos, os dizeres: “Meu lugar é na GV, na quadra e até na sua sala. Meu lugar é onde eu quiser”. n

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