Em um mundo hiperconectado, momentos a sós ‘são um critério psicanalítico de saúde mental’ e de autoconhecimento

Solitude proporciona autoconhecimento // Getty Images

Com o mundo hiperconectado, dedicar um tempo para avaliar as próprias atitudes é muito recomendável. E tem mais: o autoconhecimento é hoje uma das competências mais bem avaliadas do mercado

Por Victor Santos para revista PODER

Em um dos tantos lamentos poéticos do mestre Cartola, o sambista clamava para que o deixassem só. Por um tempo. Escreveu em “Preciso Me Encontrar”: “Deixe-me ir / Preciso andar / Vou por aí a procurar / Rir pra não chorar”. E prosseguiu: “Quero assistir ao sol nascer / Ver as águas dos rios correr / Ouvir os pássaros cantar / Eu quero nascer / Quero viver”. Uma leitura superficial desses versos poderia passar a ideia de um sujeito fechado e antissocial, porém o compositor apenas reivindicava um tempo para reflexão, para se reinventar. Uma questão pessoal, como sugere o títul0 da canção.

O que Cartola buscava, no entanto, não era solidão. E aí reside uma percepção distorcida, um dos grandes problemas enfrentados pelo homem moderno, já que a conjuntura social apresenta uma pressão pela convivência em grupo e impõe um estranhamento àquele que está sem companhia – quando é exatamente isso muitas vezes o que se precisa. Estar sozinho nem sempre é bom, mas é a condição ideal para produzir autoconhecimento.

Embora a literatura acadêmica use bastante a palavra “solitude” para se referir ao momento de conversa individual, o termo é pouco usual na língua portuguesa. O psicanalista Christian Dunker explica que “solitude” tem acepções mais frequentes em outros idiomas, como no caso do inglês, em que a palavra é essa mesma, ou o “einsamkeit” do alemão. “Aponta para a ideia de que você pode escolher estar com seus pensamentos, com seu vazio, sua afecção, ou com a autoafetação das relações que, por ventura, você já teve ou tem”, diz. “São os estados meditativos, estados de inspeção, exame, avaliação, comparação consigo mesmo e que são um critério psicanalítico de saúde mental”, completa.

Tal inspeção permite uma vivência mais consciente com as emoções, os sentimentos e até pensamentos. Ainda de acordo com Dunker, o mergulho nesses momentos auxilia a produzir uma série de desligamentos, como é o caso dos afetos, da consciência e das memórias. Sem o cultivo de momentos de isolamento, alguns contratempos, como a insônia, são impulsionados. A ocupação é o estado que impede a “solitude” e uma vivência menos consciente. Além disso, esse diálogo com si mesmo traz dúvidas inerentes do viver, como o sentido da vida, se o passado valeu a pena ou não e se há perspectiva de futuro — o que pode ser uma pensata penosa para o ser humano.

“Quando você produz esse tipo de extensão do futuro e do passado, intensifica o presente, começa a experimentar um maior coeficiente de presença, de capacidade de estar consigo e com o outro”, explica.

Transpondo o tema para o mercado, o executivo Sergio Chaia, mentor de empresários e ex-CEO da Nextel e da Sodexo, diz cultivar diversos momentos em que dialoga consigo mesmo, seja num almoço desacompanhado, seja em caminhadas, meditando ou lendo. Chaia vê esses hábitos como essenciais e sua falta pode explicar o surgimento de um sentimento próximo ao da repulsa, quando não somos uma boa companhia para nós mesmos. E isso é péssimo para quem está em posições de liderança. “Pode-se dizer que a competência mais apreciada hoje, quando se contrata executivos para cargos de CEOs, é o autoconhecimento. A ideia não é ser liderado pelo pensamento, principalmente pelos ruins, mas ter consciência deles. Deixar os pensamentos ruins passarem, apegar-se àqueles que geram sentimentos bons e, por consequência, boas ações”, diz.

Engana-se quem interpreta a necessidade desse tempo a sós como algo próprio de pessoas introspectivas. Esse período ajuda em diversos campos psíquicos, melhora o lado profissional e até ajuda na vida social. Chaia é lapidar sobre os benefícios da prática: “Olhar nos faz naturalmente mais criativos, curiosos, generosos e compreensivos”.

A “solitude” pode ser exercida de maneiras distintas. Alberto Ribeiro é engenheiro civil, tem dois filhos e trabalha no setor de incorporações. Diz cultivar há muitos anos a prática da atividade física. Maratonista, já realizou 11 provas da distância, dez delas em Nova York. É notório o benefício para a saúde, mas também é um espaço privilegiado para a reflexão. O engenheiro conta que treina sempre pela manhã, o que o ajuda a organizar as tarefas do dia. “Os momentos de autorreflexão são importantíssimos. Dá para pensar em você, no que faz e no que precisa fazer. Existem coisas que são suas e nem sempre dá para dividir com os outros.”

E quais seriam as dicas para quem ainda não cultiva o seu eu interior? Ribeiro e Chaia comungam da ideia de que é necessário encontrar algo que faça sentido individual e também concordam que o prazer e a manutenção de uma rotina são de suma importância. Ou seja, aquele livro do Dostoiévski acumulando poeira há anos na prateleira, o desafio atlético dificílimo ou o método de meditação sofisticado podem não ser boas opções. Talvez seja melhor um livro mais acessível, um tipo cadenciado de exercício físico ou a vertente meditativa de menor complexidade. Até mesmo a companhia pode ajudar a iniciar essa jornada, desde que sirva como instrumento para atingir o objetivo de acessar os próprios pensamentos. Outra dica é fazer como canta outro compositor popular, Tom Zé, que em Só define a solidão como uma poeira leve. “Hoje a casa é sua.” Pode entrar solidão.

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