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Ilustração Bruna Bertolacini

 

Ilustração Bruna Bertolacini
Ilustração Bruna Bertolacini

Assassinatos de grande repercussão como o do publicitário Luiz Carlos Rugai e do executivo Marcos Matsunaga mostram como os advogados de defesa têm de lidar não só com os acusadores, mas também com a opinião pública

Por Paulo Vieira para a Revista J.P de maio || Ilustração Bruna Bertolacini

Na noite do domingo 28 de março de 2004, um duplo assassinato escandalizou a tradicional sociedade paulistana. O publicitário Luiz Carlos Rugai e sua companheira, Alessandra Troitino, foram mortos a tiros na mansão onde moravam, numa rua tranquila do bairro do Pacaembu, em São Paulo. A autoria do crime recaiu sobre o filho mais velho de Luiz, Gil Rugai, então com 20 anos, com quem o pai supostamente discutira dias antes de ter sua vida abreviada.

Casos em que filhos matam ou mandam matar os pais não são prevalentes – se considerados os muitos homicídios cometidos no Brasil – e talvez por isso ganhem enorme repercussão. Foi assim com os Richthofen, com os Bouchabki e também com os Rugai. Se os filhos são os culpados, bem, essa é outra história. O julgamento de Gil, que sempre jurou inocência, só foi acontecer oito anos e 11 meses após a noite fatal. Foram cinco dias intensos, com toda a balbúrdia televisiva que um caso desse tipo desperta, até o juiz Adilson Paukoski Simoni obter a decisão dos sete integrantes do júri popular. O resultado foi 4 a 3 pela condenação do réu. Se mais um dos jurados, apenas um, fosse convencido pela defesa, Gil Rugai estaria hoje em liberdade, não na prisão de Tremembé, onde cumpre a sentença de 33 anos e nove meses por duplo homicídio qualificado.

Nem todos os chamados crimes dolosos contra a vida, como o homicídio, que são obrigatoriamente levados a júri popular, desencadeiam reações histéricas da mídia e vêm a ser lembrados tempos depois. É preciso que tenham um “plus a mais”, como o caso Rugai. Não havia apenas o suposto assassinato de um pai pelo filho com motivo torpe – grana – a engendrá-lo, mas também toda uma riqueza na composição do personagem principal. Gil era sujeito dado a “esquisitices”, e isso foi enfatizado pela promotoria, no julgamento. Tão jovem, gostava de um vestuário anacrônico – gravata, suspensórios e até um “sobretudo caramelo”. Os dois últimos itens, aliás, fizeram parte da peça acusatória, sendo citados, dessa forma, por testemunha ocular, um vigia da rua. Outra bizarrice: Gil ia à missa. O principal qualificativo que lhe foi imputado nas reportagens era de “ex-seminarista”. Assim como José Carlos Bumlai é o “amigo do ex-presidente Lula” ou eventualmente “pecuarista”, Gil Rugai é o ex-seminarista.

Lidar com a opinião pública em casos assim passa a ser um importante componente no trabalho dos criminalistas, os advogados de defesa. Afinal, os membros do tribunal de júri, escolhidos entre pessoas comuns, não são impermeáveis aos humores do dia a dia. Acreditar que eles iriam se ater a páginas e páginas de um processo escrito da maneira menos amigável que existe está no campo do pensamento mágico. Talvez fosse excessivo proibi-los de ver o programa do Datena, mas os criminalistas sabem que não basta encontrar furos na acusação – é preciso convencer os jurados de que a promotoria está na iminência de cometer uma verdadeira noite de são Bartolomeu.

“Nós entramos naquele júri perdendo de 7 a 0”, disse o jovem criminalista Marcelo Feller, que representou Gil Rugai com o colega Thiago Anastácio. Em entrevista em seu escritório a J.P, Feller afirmou que precisou “desconstruir os alicerces” da acusação. Para isso, empreendeu um demorado trabalho investigativo, que caberia muito mais à polícia. Feller achou diversos problemas na peça acusatória. A lista é longa, mas a má condição de visibilidade do vigia, que identificou os suspensórios e o sobretudo caramelo de Gil e cuja guarita estranhamente pegaria fogo durante a investigação policial, já seria um bom teaser para qualquer romance policial. Nem precisaria, aliás, nosso hipotético autor escrever que a testemunha daria quatro versões diferentes dos fatos. O sumiço da porta arrombada da casa, prova importante usada pela acusação, que encontrou ali uma “pegada”, dificilmente passaria pelo crivo do editor, por total inverossimilhança. Mas foi o que aconteceu na vida real. No julgamento, um perito de renome contratado pela defesa, Ricardo Molina, professor da Unicamp, chamou a perícia criminal de “ridícula”.

PICADINHO

Se não decidissem o destino da vida das pessoas, os eventuais erros de um julgamento poderiam ser desculpáveis, até anedóticos. Em 2012, em outro homicídio rumoroso ocorrido na capital paulista, o assassinato do executivo do grupo Yoki Marcos Matsunaga por sua mulher, Elize, o trabalho dos advogados de defesa Luciano Santoro e Roselle Soglio foi no sentido da redução de danos. O fato de Elize ter talhado e colocado o corpo da vítima em mochilas após o crime – alusões à técnica do famoso Chico Picadinho pipocaram na imprensa –, contudo, não ajudavam muito. Mas Elize era réu confessa, o que implicava diminuição de pena. Restava à defesa então eliminar os “qualificadores” pedidos pela promotoria que, incorporados à sentença, aumentariam a pena e poderiam anular a suposta vantagem da confissão. Outra atenuante a ser tentada era a hipótese de que Elize agia movida por violenta emoção.

De novo coube ao juiz Simoni, o mesmo do caso Rugai, proferir a sentença, de 19 anos e 11 meses de detenção. Dois de três qualificadores não vingaram, entre eles o uso de meio cruel, que seria o esquartejamento com a vítima ainda agonizante. Os advogados não conseguiram, contudo, derrubar o agravante da impossibilidade de defesa da vítima. Segundo Santoro, seria impossível que Elize, com o intuito de surpreender e matar o marido quando ele saísse do elevador com a pizza que não chegaria a saborear, pudesse se manter incógnita, a hipótese da promotoria. “Havia um espelho na entrada do apartamento, Elize seria vista”, disse o advogado a J.P, tentando sem muito sucesso desenhar os cômodos do imóvel de cobertura do casal onde o crime se deu. No julgamento, numa representação dramática em que personificava Matsunaga segurando a pizza, o advogado Luiz Flávio D’Urso, o ex-presidente da OAB de São Paulo que atuou como assistente de acusação, parece ter persuadido os jurados.

No romance A Fogueira das Vaidades, um clássico do novo jornalismo, escola literária que usa recursos ficcionais para relatar histórias que poderiam ser muito verdadeiras, o escritor americano Tom Wolfe conta como um amargurado promotor público de ascendência irlandesa tenta obsessivamente incriminar um financista milionário na Nova York dos anos 1980. O caso, um atropelamento seguido de fuga que não deixa vítimas fatais, vai ganhando repercussão – e por consequência a atenção do promotor – à medida que um jornalista consegue imprimir cores raciais ao evento. A arte, como se vê, imita a vida, mas muitas vezes é a vida que, completando o ciclo, imita a arte. Nessas horas é bom ter em mente as palavras de ninguém menos que o advogado Luiz Flávio D’Urso, que, em desagravo aos colegas criminalistas, já disse que “os julgamentos de crimes com grande repercussão popular, quando o clamor público não admite ao acusado nem mesmo argumentos em sua defesa, se tornam combustível para erros judiciários”.

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