PODER comemora 10 anos e traz o criminalista mais célebre do país: Antônio Carlos de Almeida Castro, o Kakay

Criminalista mais célebre de Brasil, Antônio Carlos de Almeida Castro, o Kakay, pode se apresentar como advogado, consultor de reputação, palestrante, mestre de cerimônias, rapsodo, enólogo, cantor de karaokê. Mas é defendendo uma prerrogativa básica da democracia, a presunção de inocência, e atacando os excessos da Lava Jato que ele quer agora se notabilizar

por fábio dutra e paulo vieira
fotos maurício nahas

Não há monotonia no escritório do crimina­lista Antônio Carlos de Almeida Castro, na Asa Norte, em Brasília. Kakay, como é co­nhecido até por quem não o conhece (como ele mesmo diz), tem cerca de 200 clientes, dentre eles as figuras mais eminentes da política brasileira. É difícil sa­ber qual é o caso mais notável da semana, quem sabe do dia, já que o plantel de medalhões do Executivo e do Le­gislativo encalacrados em processos diversos que se con­sultam com esse cruzeirense “azul” de Patos de Minas se renova como água da fonte.

Assim como não há monotonia, não há ideologia quan­do o assunto é advocacia. Kakay representa membros de todo o arco político, com a possível exceção do cara do Aerotrem e dos deputados do Psol. E de Jair Bolsonaro, única figura que ele diz, por questão de princípios, jamais atender. “Já advoguei para três presidentes da República e uns 60 governadores: só do Amazonas foram quatro”, disse o advogado na redação de PODER, que ele visitou especialmente para esta reportagem. Nestes dias, tem se batido pela libertação de Paulo Maluf, 86 anos, cuja pri­são por um delito de anteontem, segundo ele, não faz sen­tido. “Há 25 anos eu era antimalufista, mas qual a razão dessa pena agora?” Também tem se manifestado contra o “fascismo” dos mandados coletivos de busca e apreen­são utilizados pelo Exército na intervenção no Rio, “um erro histórico”. É difícil acompanhá-lo no dia a dia. Kakay é “breaking news”, e uma reportagem que o tem como objeto (como esta, aliás) pode em semanas ou meses se tornar tão datada quanto o maiô da Magda Cotrofe.

Kakay atende poderosos, não apenas políticos, como sabe qualquer pessoa que tenha assistido alguns minutos de TV ou navegado rapidamente em sites brasileiros nos últimos anos. Junto com outras bancas conseguiu em fe­vereiro a libertação do controlador do grupo JBS-Friboi, Wesley Batista – ainda falta o irmão – mas, para ficar em exemplos emblemáticos do passado, atuou por Carolina Dieckmann no processo do vazamento de fotos íntimas, por Roberto Carlos no caso das biografias, representou Duda Mendonça no mensalão e Daniel Dantas no caso Kroll. Agora transigiu um de seus próprios preceitos, o de jamais atuar fora da esfera criminal: decidiu entrar na briga de Eugênio Staub, da Gradiente, pelos direi­tos do nome iPhone, marca que o empresário brasileiro registrou antes dos caras de Cupertino. Kakay nega que esteja nessa pela celebridade do caso. Diz querer ajudar um amigo e contemplar sua própria história. “O primeiro presente bom que ganhei de um cliente foi um 3 em 1 da Gradiente, tinha de defendê-los”, diz.

Muitas dessas facetas de sua atuação são sobejamente conhecidas, assim como o fato de não assessorar clientes que optam pela colaboração premiada, mesmo depois da avalanche delatória da Lava Jato. Delatores podem até ser atendidos em outras questões específicas – caso dos Batista, que só têm Kakay como advogado nos pedidos de liberdade –, mas se o representado optar pela colabora­ção, que ele acha aliás importante e válido instrumento no combate ao crime organizado, que procure outro ad­vogado. Tudo no script. A grande novidade é que Kakay agora quer falar para as massas – massas de jovens ad­vogados, estudantes de Direito, ouvintes de rádios e te­lespectadores de TV de emissoras do interior. Como se fosse um político em campanha, o mineiro viaja o Brasil a abrir e fechar cerimônias, dar a benção de paraninfo e a participar de palestras e debates. Na pauta, os excessos cometidos em nome da Lava Jato e a “afronta ao princípio constitucional da presunção da inocência”, algo que ficou patente, na sua opinião, com o entendimento do Supre­mo Tribunal Federal de que não é preciso esperar mais o processo transitar em julgado para começar a punir – em português castiço: mandar para o xilindró. “Quando vi a gravidade das coisas que estavam acontecendo na Lava Jato fiz a opção de começar a aceitar os convites para fa­lar em universidades, seções da OAB. Até em simpósio de psiquiatria estive. Outro dia no Mato Grosso me ouviram 4 mil pessoas. E em Curitiba, 2 mil.” Quando não pode viajar, Kakay grava um vídeo com sua exposição e o envia para os anfitriões. Este ano ele decidiu participar até no júri simulado no Salão Nobre da cheia de si Faculdade de Direito do Largo São Francisco, que marca o início do ano letivo e a recepção aos calouros – mais um dissabor para a conta dos advogados estrelados da pauliceia, sempre cas­murros com a notoriedade de Kakay.

Curioso é que do outro lado do ringue nessas horas es­tão os que empunham o material de higiene que serviu e serve para “passar o país a limpo”, na expressão famosa: promotores do Ministério Público, agentes da Polícia Federal, juízes de primeira instância que atuam em ca­sos da Lava Jato e ministros do Supremo “ofuscados pelo excesso de mídia”. Seria mesmo surpreendente que um advogado garantista não fizesse a crítica das prisões pro­visórias pedidas a granel e atendidas a toque de caixa ou mesmo dos inúmeros vícios dos procedimentos inves­tigatórios, mas Kakay não parece querer aliviar para os atores envolvidos. “O Ministério Público, que tem popu­laridade na mídia, consegue dividir o Brasil ao dizer que críticos dos excessos da Lava Jato são contra o combate à corrupção. É simplista demais, uma deslealdade intelec­tual.” Uma piada sua a respeito virou hino, ou quase isso, entre os criminalistas. Quando a Lava Jato estava no auge, alguns membros do Judiciário e do Ministério Público tentaram emplacar no Congresso um pacote chamado “dez medidas contra a corrupção”, que cerceava vários instrumentos de defesa e aumentava a força da acusação no processo penal, tendo a atriz Maria Fernanda Cândido como garota-propaganda nos pedidos de subscrição dos abaixo-assinados para pressionar o Legislativo. Faceiro e debochado, Kakay mandou: “Isso é desleal! O que a Maria Fernanda pedir eu assino”.

São curiosas essas inversões e reversões de expecta­tivas que a Lava Jato e a tal cruzada anticorrupção gera­ram no Brasil. Promotores salvacionistas e um juízo de primeira instância com alcance “universal”, na blague de Kakay, viram super-heróis perante a opinião pública por combater as grandes chagas nacionais – impunidade e corrupção –, mas para isso afrontam pilares do Direito com suas prisões provisórias que se perpetuam sem mais aquela e hermenêuticas criativas. “As pessoas quando falam da operação italiana Mãos Limpas [que inspirou a Lava Jato], citam só até metade do livro, lá foram 30 e tantos suicídios, no fim comprovou-se que muita gente usou a delação premiada de forma falsa”, diz. Na mesma linha, vê com horror o crescimento do encarceramen­to em massa, especialmente as indiscriminadas prisões processuais, sucessos de audiência, mas que muitas ve­zes não resultam em condenação. “Já falei na tribuna que quando era estudante achava que quando velho defende­ria o abolicionismo penal, ou seja, a prisão apenas como última opção. Mas fico agora defendendo a presunção de inocência e combatendo a prisão indiscriminada de pessoas que ou são inocentes ou poderiam ser punidas de outra forma”, indigna-se.

Assim como na Itália, suicídios também começaram a surgir por aqui, como a do ex-reitor da UFSC Luiz Carlos Cancellier, em outubro passado. O caso não tem relação com a Lava Jato, mas o estardalhaço da ação po­licial que levou a tão dramático desfecho pode dizer algo sobre o novo modus operandi dos agentes da lei. Cha­mado a falar em Santa Catarina durante as homenagens fúnebres, Kakay imaginou que a morte de Cancellier pudesse representar um ponto de inflexão na cruzada salvacionista. Já não pensa assim.

O DÂNDI E O CARDEAL
Envolvido até a medula com tão graves questões, é qua­se paradoxal constatar que Kakay segue a desfrutar como poucos da vida à larga. Viaja constantemente com os ami­gos – Paris, onde mantém imóvel, é default –, bebe vinhos como um existencialista (diz ser autodidata no tema), comprou um restaurante famoso, o Piantella, em Brasí­lia, por frequentá-lo demais – “ficou mais barato”, sem­pre diz –, revela ser capaz de cantar por quatro horas se­guidas, vive numa mansão em Brasília que é confundida com um clube, veste-se sem o decoro sensaborão de seus pares nas solenidades a que tem de comparecer. “As pes­soas se levam muito a sério, você tem de ter humor. Uma vez a revista Carta Capital, em guerra com o Daniel Dantas, meu cliente à época, quis me complicar ao exibir a foto de umas anotações em que aparecia uma mensagem dizendo que era preciso reservar hotel standard para mim. Eu liguei lá e avisei que não fico em quarto standard”, ri.

Mesmo que Kakay afirme que em essência seja essa pes­soa que não se leva a sério – foi o que disse à reportagem quando pedimos, à la Marília Gabriela, que se definisse -, há também a persona “cardeal” a aparecer aqui e acolá. Eis o homem chamado por poderosos a dar seu vaticínio nas horas incertas, como o que deu ao então presidente da Câmara Eduardo Cunha, que começava a ver a casa cair sob seus pés, numa cerimônia de casamento em que se encontraram por acaso em Brasília pouco antes da cas­sação do deputado em plenário. Disse a Cunha que sem­pre dizia a seus clientes para observar como o todo-po­deroso do PMDB agia. Para fazer exatamente o contrário. Cunha riu e o chamou a um canto onde falaram por duas horas. Kakay não entrega o conteúdo da conversa, mas mantém o que disse: “É preciso deixar o confronto para o advogado e se preservar, o que ele não gosta”.

Kakay também é um arguto conselheiro em assuntos de opinião pública. Sua capacidade de minorar danos de reputação de seus clientes, às vezes até de eliminá-los, faz de seu escritório um virtual concorrente de agências de comunicação especializadas nesse tipo de trabalho. Ele até as indica, mas só se forem capazes de “tirar o cliente da mídia”. Coleciona fontes nos mais diversos veículos e é capaz de esvaziar reportagens danosas a seus interesses ao entregar segredos para a concorrência. “Respeito os jornalistas pra caralho, mesmo quando me ligam com as perguntas mais desengonçadas. Vejo que estou ganhando quando um ‘foca’ [novato, no jargão jornalístico] me liga, ou seja, a redação perdeu interesse no assunto”, diz. Re­centemente por perceber que ficava tempo demais com a imprensa ao telefone – e com isso se privava de ter uma “visão mais ampla” de seus casos –, decidiu tornar o escri­tório proativo, e passou a emitir notas e boletins para os repórteres de sua agenda. Por WhatsApp, bien sûr.

VOX POPULI
Muito do sucesso da atividade dos criminalistas tem a ver com o uso de que fazem da “vox populi”, mas Kakay aponta que é fundamental ter uma base técnica por trás. “O único amador que deu certo é o Aguiar. Se só pensar na opinião pública, perde.” Quem só pensa nisso são os políticos, regra do jogo, mas isso atrapalha a defesa jurídica em um escândalo, ainda mais em es­tados onde há rixas demais e a dor de cabeça costuma vir da oposição. “Às vezes acham que tudo é político e que certas investigações são intrigas. Mesmo que seja assim, você precisa dizer para o cara que tem uma re­portagem indo ao ar no Jornal Nacional e ele vai passar alguns dias só se defendendo”, explica. Uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa.

Com tudo isso, surpreende mesmo constatar que Kakay, mesmo há tanto tempo na linha de tiro, jamais caiu. Já balançou, tem jornalistas desafetos (ainda que não admita), políticos que não o engolem (ainda que eles não admitam), mas segue ubíquo nos casos crimi­nais de repercussão nacional. Mesmo sendo fotografa­do em cima do piano do Piantella com uma taça de vi­nho a cantar a plenos pulmões ou frequentando eventos chiquérrimos do poder de colarzinho de folha de coco e camiseta tie-dye. Ele reivindica sua amizade com José Dirceu, ainda que isso não soe como música dodecafônica nos ouvidos (moucos?) de muitos de seus clientes. Tem Duda Mendonça como irmão, doa a quem doer. É parça de João Carlos Di Genio, do grupo Objetivo/Unip, ama­do e odiado dono de um dos maiores conglomerados de educação do país, que ele chama de “rei da noite”. “Ele, como eu, adora música, e não deixa um músico na mão. Di Genio me ensinou a transitar na boemia”, conta. No dia desta entrevista elogiava Omar Catito Peres, seu sócio no mítico Piantella, pelo relançamento da versão impressa do Jornal do Brasil e contava do bloco de Car­naval em homenagem a Roberto Carlos, ainda seu clien­te, que segue até a casa do rei na Urca, quando o cantor sai à varanda e distribui rosas aos foliões. Kakay por Kakay? Não exatamente um cara que não se leva a sério, mas que leva a sério não se levar a sério.

FÍGADO DE OURO
Saber como Kakay obteve tanto conhecimento dos re­gimentos das casas congressuais, uma de suas propaladas virtudes, ou quais artimanhas jurídicas ele mobiliza para defender clientes como Aécio Neves, Zezé Perrella, Rome­ro Jucá, Roseana Sarney e tantos outros metidos nos es­cândalos do momento não eram, na verdade, as principais questões que moviam os repórteres de PODER. Um ponto fundamental do roteiro da entrevista era entender como o advogado curava a ressaca. Caso Kakay fosse uma pessoa normal, um pressuposto da reportagem, era de se esperar que ele tivesse – pelo menos – problemas de concentração no “day after”. Mas Kakay não é uma pessoa normal. “Nes­se assunto a questão é puramente familiar, meu pai nunca teve ressaca. Minha mãe rezava para eu ter, assim talvez eu bebesse menos. Na juventude tomava aqueles porres até o amanhecer e, às 7h30, eu estava insuportavelmente de pé para fazer ginástica. É assim até hoje.” O mercado planetá­rio do vinho agradece.

O LEGADO, OU QUASE ISSO
Kakay não é presunçoso a ponto de achar que deixa um “legado” para o Direito brasileiro, mas diz que a ADC 43, que impetrou em nome do pequeno Partido Ecológico Nacional, que confronta o entendimento do STF de que já é possível encarcerar antes de a ação transitar em julgado, é sua gran­de contribuição para o Brasil nos últimos anos. Essa ação, que propõe que os processos se esgotem numa instância inter­mediária, o STJ, foi imediatamente replicada em outra ADC, a 44, impetrada pelo Conselho Federal da OAB. Além da amea­ça ao preceito da presunção da inocência que o novo enten­dimento impõe, Kakay chama atenção para as péssimas con­dições do superlotado sistema carcerário brasileiro, o que poderia transformar num inferno indizível a vida do punido em segunda instância. “Quando eu era estudante, eu achava que você ser garantista, você querer cumprir a Constituição era uma coisa reacionária, e hoje é revolucionário”, diz. “Já es­tá bom demais a gente conseguir cumprir as regras mínimas.” A situação do ex-presidente Lula, condenado em segunda instância em janeiro, torna a questão ainda mais politizada e complicada, e pode levar a novas interpretações sobre o te­ma por parte dos ministros do Supremo. Sobre a Corte má­xima, aliás, Kakay também tem uma boa frase:, que costuma usar em textos publicados nos jornalões: “O Supremo pode muito, mas não pode tudo”.

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