Por Paulo Vieira para revista PODER
A pandemia do coronavírus teve o condão de fazer a elite brasileira abrir o bolso. O empresariado nacional, que jamais criou aqui uma tradição de filantropia, grande como há em outros países, especialmente nos Estados Unidos, doou para instituições envolvidas com o combate à Covid-19 e para os setores afetados economicamente pela doença mais de R$ 5,9 bilhões até julho de 2020, segundo o site Monitor das Doações, da Associação Brasileira de Captadores de Recursos (ABCR). O Monitor só totaliza doações tornadas públicas de empresas, famílias proprietárias de grandes negócios e particulares bem aquinhoados. O valor é inédito no Brasil, mas segue sendo “peanuts” perto do que fazem os ricos lá de fora. Em 2019, o político e empresário Michael Bloomberg e o empresário do setor hoteleiro Barron Hilton (morto em setembro passado), os dois principais beneméritos da lista Philanthropy 50 de 2019, registraram doações que somadas totalizaram 5,7 bilhões. De dólares.
No Brasil, doa mais quem tem (bem) menos. Uma pesquisa levada a cabo em 2017 pelo Instituto para o Desenvolvimento do Investimento Social (Idis) mostrou que famílias com renda anual de até R$ 10 mil doavam em média 1,2% de sua receita (R$ 100, em média); já as famílias com renda dez vezes superior doavam três vezes menos. O Idis é referência nesse tipo de estudo, tendo produzido em 2016 a pesquisa Doação Brasil, cujos números são amplamente utilizados por atores do setor. O trabalho constatou que pessoas físicas brasileiras doaram, em 2015, R$ 13,7 bilhões – cerca de 0,2% do PIB. Parte considerável disso inclui doações atomizadas para instituições religiosas, uma vez que cerca de 50% dos que se disseram católicos, espíritas e evangélicos fizeram algum tipo de doação.
Mário Aquino Alves, professor da Fundação Getulio Vargas (FGV) de São Paulo, que estuda temas conexos à filantropia, coordenou um estudo, junto com a ONG de direitos humanos Conectas, sobre doação e legado com gente de renda mensal acima de R$ 30 mil. Com base nas respostas obtidas, Aquino afirma que “as pessoas até querem ajudar, mas em geral não sabem como”. Para o acadêmico, o cenário agora é muito diferente de 25 anos atrás, quando filantropia praticamente se circunscrevia ao “Antônio Ermírio como presidente de honra da Beneficência Portuguesa”. Hoje o tema, segundo ele, “incide diretamente sobre políticas públicas, como faz, por exemplo, o grupo Todos pela Educação”, de grande atuação institucional e suportado por fundações criadas por empresas como Bradesco, Itaú, Vivo, Natura, Vale, MRV. Aquino vê ainda um movimento positivo na troca de guarda geracional. “Vejo essa nova geração empresarial muito mais conectada com esses temas.”
Um único brasileiro, Elie Horn, fundador da construtora Cyrela, faz parte da The Giving Pledge, associação de mais de 200 bilionários criada por Bill Gates e Warren Buffett que tem por compromisso doar parte substantiva de sua fortuna ainda em vida. Horn vem procurando convencer seus pares a engrossar esse time de beneméritos. Uma de suas ações deste ano foi publicar uma espécie de manifesto na revista Veja pouco antes da crise da Covid-19 eclodir. Utilizando-se da informação do valor totalizado pela pesquisa Doação Brasil, ele afirmou que os brasileiros doam oito vezes menos que os americanos e menos da metade dos britânicos. Sua meta agora é fazer o montante de doações dobrar, além de trazer mais gente para o The Giving Pledge. Em entrevista pelo aplicativo Zoom a PODER, ele perguntou ao repórter se ele fazia “ginástica todos os dias” e instou-o a também praticar o bem diariamente. Para Horn, que segue firmemente preceitos do judaísmo e acha que “doaria menos caso não fosse religioso”, crenças religiosas não pautam as reuniões em que tenta convencer seus colegas a doar. “Deus não entra nessas conversas.”
LUCRO HISTÓRICO
De volta aos números do Monitor das Doações, o setor que mais se destacou na ajuda ao combate da pandemia foi o financeiro, responsável por cerca de um terço de todas as doações. O banco Itaú, que destinou R$ 1 bilhão a um fundo gerido por médicos e administradores hospitalares, o Todos pela Saúde, e que atua fortemente na aquisição de respiradores e equipamentos de proteção individual, é até aqui o maior doador – já soma R$ 1,25 bilhão. Mesmo assim, dado o lucro aferido pela instituição em 2019, R$ 26,6 bilhões, um crescimento de 6,4% em relação a 2018 a despeito da grave crise econômica, houve críticas. A deputada federal Sâmia Bomfim (Psol-SP) observou que o valor bilionário doado ao Todos pela Saúde – movimento idealizado pelo próprio banco Itaú – significava, em suas contas, apenas 3,5% do lucro do banco em 2019.
As críticas não surpreendem, especialmente aquelas desferidas contra doadores envolvidos em escândalos, que poderiam estar em busca de melhor reputação ou até mesmo do que se chama de “greenwashing”, um banho de imagem de fachada. Como a mineradora Vale, que doou até aqui meio bilhão de reais e que tem como passivo os desastres ambientais em Minas Gerais; ou a JBS, envolvida até não mais poder com esquemas de corrupção política, que doou R$ 400 milhões. Para Márcia Woods, presidente da Associação Brasileira de Captadores de Recursos (ABCR) e responsável pelo Monitor das Doações, tragédias como as de Mariana e Brumadinho têm o condão de fazer empresas como a Vale adotar novas políticas e procedimentos, fortalecer o compliance e dar maior atenção aos stakeholders, o que inclui ações efetivas em favor das comunidades afetadas. “Essas ações também ajudam a mitigar os danos à reputação.” Greenwashing, em sua visão, passa por “não cumprir acordos e declarações públicas”. Para Márcia, as doações para o combate à Covid-19 são “muito mais expressivas do que o usual”, aumentaram o “tíquete médio” da filantropia brasileira e podem deixar um grande “legado de engajamento”.
De qualquer forma, os milionários brasileiros ainda precisam comer muito feijão para ficar bem na fita e ombrear com os Carnegie, os Roosevelt e, mais contemporaneamente, os Bloomberg e os Gates. “A elite brasileira não é como a americana na construção de legados”, diz Aquino, da FGV, que usa como exemplo uma história clássica e, como tal, anedótica. “Como contou Fernando Morais na biografia de Assis Chateaubriand, ela precisou sofrer extorsão para que o Masp, o melhor museu da América Latina, fosse criado.”
SEGURO-EMPREGO
No fim de março, na mesma semana em que foi comparada a uma “gripezinha” em rede nacional por Jair Bolsonaro, a Covid-19 aperreou bastante alguns empresários. Não pelo poder de contágio da doença, mas pelos prejuízos econômicos causados pelas interdições de circulação e restrições de comércio. No Instagram, Junior Durski, da rede Madero, criticou o “lockdown insano” que poderia matar “até 500 mil pessoas” por conta de um certo “dano econômico”. Ele disse também que não pretendia demitir, mas menos de duas semanas depois desfez a jura, emitindo o bilhete azul para 600 funcionários. Em direção oposta, Daniel Castanho, do gru- po Ânima (das universidades São Judas, entre outras escolas) criou o “Não Demita”, movimento que contou com o endosso de 4 mil empresas que, juntas, preserva- ram 2 milhões de empregos, nos cálculos de Daniel. O compromisso de segurar esses postos findou em junho, mas o empresário vê os dias à frente com otimismo. A hora agora é de “criar um grande ecossistema” em que aquele que era visto como “inimigo” possa ser encarado como “competidor”, como disse Daniel por telefone a PODER. O novo passo também prevê ajuda com mentorias e desenvolvimento de competências. Para ele, “todo mundo percebeu que precisa ser útil, que precisa fazer algo pela sociedade”.