Charles Medina conta como transformou Gabriel em lenda do surfe

 

Charlie e Gabriel Medina no Billabong Rio Pro||Crédito: Getty Images

Charles Serrano de Saldanha Rodrigues, conhecido internacionalmente como Charles Medina, conta como transformou Gabriel em uma lenda do surfe mundial

por Alexandre Makhlouf para revista PODER de março

Ano passado, em dezembro, o paulista Gabriel Medina se consagrou o mais novo campeão mundial de surfe e garantiu uma vaga no ASP World Tour, que reúne os 36 melhores surfistas do mundo. E isso dias antes de completar 21 anos. A mídia cobriu cada etapa e comemorou com ele. Ao lado de Gabriel em quase todas as fotos está Charles Serrano de Saldanha Rodrigues, o senhor Medina. A diferença de sobrenome existe porque Charles é padrasto de Gabriel. O paulistano de 43 anos conheceu a mãe do surfista, Simone Medina, quando foi morar em Maresias, litoral norte de São Paulo. Na época, ela já tinha Gabriel e Felipe, com 8 e 6 anos respectivamente. Foi Charles quem deu a primeira prancha de surfe para Gabriel, que tinha 9 anos. Quando percebeu o potencial do garoto, deixou o comando da loja de produtos de surfe da família nas mãos de Simone para se dedicar integralmente a treinar o jovem talento.

Direto da Austrália, onde está preparando o atleta para os próximos campeonatos, Charles conversou com PODER e contou como se tornou pai e treinador da maior lenda do surfe brasileiro e revelou que só precisa pegar no pé do filho no quesito garotas.

PODER: Qual era a sua idade quando foi morar em Maresias?
Charles Medina: Com 17 anos, entrei na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo do Mackenzie, mas com 19 já estava morando na praia. Surfava de dia e à noite trabalhava em uma pizzaria e vinha a São Paulo três vezes por semana para ir na faculdade. No ano seguinte, em 1992, abri uma loja de produtos de surfe em Maresias. Não ganhava muito, mas conseguia me manter e resolvi me mudar. Minha família não gostou da ideia, mas também não se opôs. Tenho orgulho de ser paulistano, mas São Paulo nunca me fez bem e meus pais perceberam isso.

PODER: Como foi se tornar pai de dois meninos “de uma hora para outra”?
Charles Medina: Sempre fui um cara família. É claro que a vida mudou, mas acho impossível não gostar de crianças, elas são muito verdadeiras. Depois, veio a Sophia , que hoje tem 9 anos.

PODER: A relação de vocês dois sempre foi fácil?
Charles Medina: Em pouco tempo, Gabriel já estava me chamando de pai. Isso me tocou muito e me fez ter mais certeza de que estávamos no caminho certo. O surfe acabou nos unindo ainda mais.

Da esq. para a dir.: Charles, Sophia, Gabriel, Simone e Felipe comemorando a vitória no mundial do Havaí||Crédito: AFP Photo

PODER: Quando percebeu que ele seria o que é atualmente?
Charles Medina: Quando ele tinha 9 anos, dei uma prancha para ele. Era um modelo de criança, mas uma tarde ele pediu a minha emprestada. Nesse dia, notei que ele distribuia o peso do corpo sobre as pernas de um jeito diferente. Ele ainda não sabia fazer manobras, mas fazia a prancha ganhar velocidade, o que até hoje é um de seus principais atributos. Na verdade, desde os 11, o Gabriel já falava que seria campeão mundial. Tínhamos um pacto de que eu o ajudaria até conseguirmos essa meta. Com 15, tinha acabado de trocar de patrocinador e se profissionalizado. Passamos na Rip Curl (marca de produtos de surfe) para ele assinar o contrato e me perguntaram qual era o objetivo dele. Disse que estávamos indo para a etapa do mundial profissional e que ele ia ganhar. O que aconteceu de fato dez dias depois. Surfando de igual para igual com grandes nomes do esporte, não tinha mais dúvidas de que ele conquistaria o mundial. Comparando com o tênis, por exemplo, o que ele fez é o mesmo que ganhar um campeonato à altura do Grand Slam.

PODER: Por que você adotou o sobrenome Medina?
Charles Medina: Desde pequeno o Gabriel falava que eu era seu pai e eu o chamava de filho. Então, começaram a me chamar de senhor Medina. Eu nunca achei ruim. Tenho orgulho de poder ser pai dele.

PODER: E como foi a decisão de largar tudo para se tornar treinador?
Charles Medina: Foi logo no começo da carreira do Gabriel, sempre com a ajuda da minha mulher, Simone, que ficou cuidando da loja enquanto eu o acompanhava. Ela acreditou na nossa “loucura”. Como naquela época existiam poucos treinadores especializados e pouco estudo sobre surfe, achei que seria o mais indicado para treinar o Gabriel. Pesquisei o que estava sendo feito lá fora, juntei com alguma experiência que tinha adquirido ajudando alguns meninos de Maresias e acho que o fato de ter sido triatleta também foi um ponto a favor. E, claro, aprendi na prática também, acompanhando o Gabriel em todos os campeonatos.

PODER: Por que você diz que o Gabriel tem um “QI esportivo” elevado?
Charles Medina: Desde pequeno, quando eu falava para ele fazer um movimento, ele fazia de primeira. Ele conseguia melhorar o estilo só de me ouvir. Hoje, mais velho, vemos essa inteligência no decorrer das baterias, quando ele muda a tática e engana os adversários. Ele tem inteligência de raciocínio e de linguagem corporal. 

Pai e filho se preparando para uma bateria||Crédito: Getty Images

PODER: Existe diferença entre o Charles pai e o Charles treinador?
Charles Medina: A meu ver, todo treinador tem um pouco de pai. Acho até que foi mais fácil treiná-lo justamente por causa disso. Na verdade, tento achar um meio termo entre esses dois papéis.

PODER: Se ele não fosse surfista, o que você acha que Gabriel seria?
Charles Medina: Quando criança, nos treinos de natação, ele fazia os 100 metros em menos de um minuto. Diziam que ele teria tempo para a equipe brasileira juvenil. Se o foco dos treinos tivesse sido aí, tenho certeza que hoje ele já seria medalhista olímpico.

PODER: Como é a rotina de treinos para os campeonatos?
Charles Medina: Até os 18 anos, eu fazia tudo: tomava todos os cuidados pessoalmente, sabia que um atleta em crescimento está mais sujeito a lesões. No começo, fizemos natação, ioga e treinamento funcional. Depois, ficamos só com o último. Fazíamos no quintal de casa usando bolas, elásticos e corda. Assim, o Gabriel pôde moldar os músculos especialmente para o surfe. Quando íamos para o mar, ficava na praia filmando e tentava corrigir e aperfeiçoar seu estilo sugerindo os movimentos certos para cada manobra. Quando ele completou 18, adotamos um treino de pré-temporada de dez dias com um preparador físico, que faz o mesmo trabalho funcional que fazíamos, mas com mais intensidade, e a assistência de um médico esportivo. Depois disso, viajamos para o Havaí e diminuímos a intensidade, treinando mais tecnicamente dentro da água, ou seja, mais surfe e menos carga. Aí, seguimos para a Austrália, onde fica a nossa base, e, de lá, vamos para os campeonatos. Durante as viagens, eu mesmo faço a manutenção dos treinos. No Brasil, fazemos um reforço com o nosso preparador físico.

PODER: Já houve algum estresse entre vocês?
Charles Medina: Um pouco. Quando rola algum problema, converso com ele. Durante o treino e os campeonatos, não dou moleza, mas ele sempre foi muito disciplinado e obediente. Nossos principais acordos e atritos têm a ver com os dias em que ele pode sair quando não está de férias, que são muito poucos. Tenho de pegar muito no pé dele quando se trata de saídas e mulheres. Mas nunca pensamos em desistir. Essa palavra simplesmente não existe no nosso vocabulário.

Tatuagem que Charles fez depois do título||Crédito: Reprodução
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