No final de 2016, o ex-bilionário Charles F. Feeney assinou o último cheque de sete dígitos de sua vida. Também conhecido como Chuck Feeney, o pioneiro das lojas duty-free e investidor em diversos outros setores, doou US$ 7 milhões (R$ 35,6 milhões) para a Cornell University, de Nova York, na qual havia se formado em administração hoteleira exatas seis décadas antes. O dinheiro foi destinado a programas de financiamento estudantil. Ao fazer a doação, Feeney zerou completamente o saldo bancário da Atlantic Philanthropies, organização que gerenciava suas iniciativas filantrópicas. Dessa forma, ele cumpriu, de maneira bastante antecipada, a promessa feita anos antes de que doaria toda sua fortuna para a caridade antes de morrer, um feito sem precedentes no mundo da filantropia.
As cifras em questão evidenciam muito bem isso. Feeney acumulou em vida um patrimônio pessoal multibilionário, e destinou quase a totalidade para a caridade, sempre evitando chamar muita atenção. Ele morreu na última segunda-feira (09), aos 92 anos de idade, conforme anunciado em um comunicado da Atlantic Philanthropies. A causa da morte não foi divulgada. Já o local foi o modesto apartamento de dois quartos no qual Feeney morava em San Francisco, Califórnia.
De acordo com a revista americana Forbes, ninguém com uma riqueza dessa magnitude jamais abriu mão de bilhões como Feeney fez. Em 2010, Bill Gates e Warren Buffett fundaram o Giving Pledge, compromisso que Feeney também assinou, prometendo doar a maior parte de suas riquezas para a caridade, embora não necessariamente em vida. Até junho de 2022, o pacto contava com 236 signatários de 28 países diferentes. São, na maioria, bilionários, e o valor combinado de suas promessas estava estimado em US$ 600 bilhões (R$ 3,05 trilhões). Feeney, ao morrer quase que sem nenhum tostão no bolso, também foi o primeiro membro desse grupo seleto a honrar também seu compromisso firmado com Gates e companhia.
A título do que costumava chamar de “provisões decentes, mas não extravagantes”, Feeney reservou, ainda por volta de 2010, US$ 2 milhões (R$ 10,2 milhões) dos US$ 8 bilhões (R$ 40,6 bilhões) que tinha quando entrou em auto processo de downsizing financeiro para seus cinco filhos, todos já adultos. Separou a mesma quantia para si mesmo, certo de que seria o necessário para viver com o mínimo de conforto dali em diante. Juntando as duas quantias, o total de US$ 4 milhões (R$ 20,4 bilhões) é uma fração de meros 0,05% dos bilhões que ele tinha acumulado até então. Indo na contramão de bilionários cujos nomes são amplamente divulgados e festejados em jantares de gala, Feeney sempre preferiu fazer o bem discretamente.
Cerca de mil edificações nos cinco continentes, entre hospitais e escolas e afins, foram erguidas graças a doações de US$ 2,7 bilhões (R$ 13,72 bilhões) feitas por Feeney. Sempre por meio de cheques administrativos, o que permite ocultar a origem do dinheiro nesses casos, sequer os beneficiários eram informados de onde vieram. No máximo, ouviam que os recursos eram presentes de um “cliente” generoso, que prezava pelo anonimato. Ele tomou ainda o cuidado de registrar suas entidades filantrópicas em Bermuda, para evitar obrigações de divulgação impostas pelas leis americanas. A estratégia custava caro, dado que o impedia de obter deduções fiscais nos Estados Unidos por conta dos cheques que assinava aos montes, destinados a causas de todos os tipos.
Feeney teve uma vida repleta de contrastes notáveis, e quase que literalmente foi do luxo ao lixo. Nascido e criado em Nova Jersey, por pais católicos da classe trabalhadora que enfrentaram dificuldades durante a Grande Depressão, ele serviu na Força Aérea antes de cursar faculdade na Cornell. Sua investida no segmento do varejo de fronteiras se deu quando os paramilitares americanos que voltavam da Europa, em meados dos anos 1950, criaram o costume de parar nas lojas de aeroportos internacionais e portos para checar as novidades.
Daí surgiu o Duty Free Shoppers Group (DFS), que logo virou um negócio global que gerava lucros estrondosos. Os dividendos que ele recebia investidos na diversificação de seu portfólio que, curiosamente, aumentava no mesmo ritmo de quando começou a diminuir, décadas mais pra frente. No começo dos anos 1980, Feeney já era multimilionário. Aos 50 anos, tinha casas luxuosas em Nova York, Londres, Paris, e ainda uma vila na Riviera Francesa.
Contudo, a vida opulenta repleta de jantares, iates luxuosos, e cuja realidade destoava demais daquela de sua família e amigos de Nova Jersey, começou a incomodá-lo. Feeney foi radical: abandonou grupos sociais da elite, passou a voar somente em classe econômica, a comprar suas roupas nos lugares mais baratos e deixou de frequentar restaurantes sofisticados. Vendeu até as limusines que tinha na garagem, e optou por usar o metrô ou táxis. Foi nessa época de reencontro pessoal que lhe surgiu a ideia de doar tudo que tinha anonimamente.
Em 1982, Feeney fundou em Bermuda a organização que viria a se tornar a Atlantic Philanthropies. Dois anos depois, ele transferiu para a fundação sua fatia de 38,75% na empresa que cofundou, a Duty Free Shoppers. Como não houve venda, o valor da empresa era especulativo, mas algumas estimativas sugerem que poderia ter ultrapassado os US$ 500 milhões (R$ 2,54 bilhões).
Mas sua identidade tão bem guardada veio à tona em 1997, depois que ele vendeu sua parte na DFS para o LVMH. Nos documentos oficiais que detalham a transação, a participação de 38,75% de Feeney foi avaliada em US$ 1,6 bilhão (R$ 8,13 bilhões). Porém, o ativo pertencia à Atlantic Philanthropies, que àquela altura tinha distribuído mais de US$ 1 bilhão (R$ 5,08 bilhões) em doações anônimas feitas ao longo de 15 anos.
Feeney se casou com a francesa Danielle Morali-Daninos em 1959, em Paris. Eles tiveram cinco filhos, mas o casamento acabou em divórcio nos anos 1990. Não houve disputa alguma, e ele cedeu todas as suas sete residências para a ex-mulher. Tempos depois, Feeney se casou com sua assistente de longa data, Helga Flaiz, companheira dele até o fim. Além dos filhos e da viúva, Feeney deixou 16 netos.
Em suas últimas décadas de vida, Feeney não tinha nem casa própria e nem carro, e usava um relógio de pulso de US$ 10 (R$ 50,80). O apartamento de San Francisco, agora habitado somente por Flaiz, era alugado. Em 2020, praticamente zerado e exatamente como desejava, ele fechou a Atlantic Philanthropies, mais feliz por ter ‘quebrado’ do que quando se tornou bilionário.
Quando aderiu ao Giving Pledge, sendo um dos primeiros bilionários convidados por Gates e Buffett para se juntar a eles, Feeney declarou: “Se é pra doar tudo, que comece doando desde já. Com certeza deve ser muito mais divertido que depois de morto”.
Feeney deixa para trás um legado cujo valor transcende as cifras doadas. Ele desafiou as noções convencionais de riqueza e sucesso. Morrendo quase sem posses em um modesto apartamento alugado, ele encontrou satisfação em uma forma de capital social raramente explorada por seus pares ultrarricos. A dupla vitória de Feeney – primeiro acumulando riqueza e depois ‘empobrecendo’ de forma deliberada – oferece um paradoxo intrigante e lança um olhar crítico sobre as métricas tradicionais de sucesso.