As memórias do Leme, boêmio bairro carioca cheio de história

As memórias do Leme, boêmio bairro carioca cheio de história ||Créditos: Getty Images

 

Sinônimo de glamour nos anos de 1950, o Leme, no Rio de Janeiro, foi a morada de algumas das mais ricas famílias cariocas e, durante a noite, um reduto boêmio que entrou para o folclore da cidade. Ainda hoje cobiçado – e divertido –, o bairro onde se passa Babilônia, a polêmica novela das 9, tem história que não acaba mais

Por Renato Fernandes para a revista Joyce Pascowitch de maio

Em 1954, uma casa entra para o rol das melhores da noite do Rio, lembrada por sua sofisticação até hoje: Sacha’s – Seven to Seven. “A grande boate do bairro era o clube Vogue, que pegou fogo em 1955, e, um ano antes, Carlos Machado, conhecido como “rei da noite”, havia convidado o pianista Sacha Rubin para abrir a deles”, diz, com exclusividade, o escritor Ruy Castro, que lançará este ano um livro sobre a noite carioca dos anos 1950 e 1960. “Sacha levou toda a freguesia para lá. Tinha até barbeiro, foi a continuação natural do perfil chic do Vogue ”, completa o jornalista Joaquim Ferreira dos Santos.

Sacha Rubin tinha um repertório musical imenso e era tido como encantador: homenageava com música as mais belas habituées assim que chegavam. Lourdes Catão era uma delas: “Sim, tínhamos nossas músicas, o que me deixava muito lisonjeada”, conta. “Ele tocava ‘My Ideal’, quando ela entrava”, confirma Ruy Castro. Tereza Souza Campos e Rosita Thomaz Lopes também tinham suas vinhetas. E o sucesso da pista era internacional: Marlene Dietrich, Porfirio Rubirosa e Ali Khan são algumas das estrelas que sacudiram o esqueleto por lá. “Jacinto de Thormes era o colunista dos ‘de bem’, e Ibrahim Sued o dos novos ricos naqueles anos”, nos conta, de Portugal, Beth Jardel, viúva de Jardel Filho, com quem viveu no bairro. “Realmente saíamos muito. A boate da moda era o Sacha’s, um nightclub com uma comida ótima e um cantor de sucesso, o Murilinho”, lembra Carmen Mayrink Veiga, no livro Feliz 1958 – O Ano que Não Devia Terminar, de Joaquim Ferreira dos Santos. Invariavelmente na lista das dez mais elegantes, ela prossegue: “Naquela época, o básico para se ter no armário não podia ficar abaixo dos 12 tailleurs de inverno, outros 12 de verão e, pelo menos, oito roupas de baile. Dior, sempre.”

No Sacha’s, muito cheek to cheek, flertes… e segredos também. Boatos sobre alguns casais do high society nunca faltaram. O maître Luiz – “um bonitão” –, segundo Patricia Bidsnig, moradora do bairro e mulher de Bento Luiz Sampaio Neto – sabia todas as lendas e verdades de lá e, reza uma delas, teria tido um caso com uma famosa senhora casada. “Ele foi ganhando poder, de tantos segredos que acumulou ao longo dos anos, mas não teve um bom final, perdeu tudo no jogo”, conta Ruy Castro.

Outra musa da casa era a famosa Miss Brasil 1954, Martha Rocha, que causava o maior frisson quando entrava. O picadinho de lá é até citado em sua biografia. “Mas o do Vogue é que sempre foi insuperável, no Sacha’s copiaram mesmo”, diz Ruy Castro.

Murilinho de Almeida, o cantor da casa, tinha fama de cupido e até levava algum por isso – nada confirmado. O fato mesmo é que certa noite entra lá uma loira com um decote para lá de generoso, acompanhada de um político, e cisma que Murilinho é gay. Ela pede então para o garçom chamá-lo à mesa, convidando-o para um champanhe. “Estamos aqui na dúvida se você é viado…”, começou, no que ele interrompeu: “Interessante, logo que entrou não tive a menor dúvida que você tinha cara de puta”, e levantou – deixando o casal com cara de bocó, como se dizia na época.

Da esquerda para a direita, Waleska em capa de disco, Martha Rocha, e bela do Sacha’s, a cantora Marlene ||Créditos: Arquivo Pessoal

Um vício chamado Fred’s

“No Leme destacava-se o Arpège, reduto especial dos pianistas, o Drink e a boate Fred’s. Esta última ficava localizada na avenida Atlântica, no segundo andar de um posto de gasolina, no endereço onde, anos mais tarde, seria construído o Hotel Meridien”, informa o livro Rio Cultura da Noite, uma História da Noite Carioca, de Leo Feijó e Marcus Wagner.

“O Fred’s não ficava acima de um posto de gasolina e, sim, num prédio atrás dele”, corrige Ruy Castro. A dama da canção, Ellen de Lima, fez algumas temporadas por lá. Seu bolero “Vício” era sempre pedido certo da clientela: “Cantei lá, e no Drink também, quando Cauby Peixoto e sua família compraram de Djalma Ferreira, seu fundador. Eu ia acompanhada da minha mãe, cantava e ia embora – e bebia apenas um copo de leite”, diz a diva, com exclusividade. Ela era famosa não só por sua voz, mas também por sempre estar impecavelmente vestida.

Marina Montini, moradora do bairro, também começou no Fred’s. Assim como a bela Ilka Soares, que tentou uma carreira de cantora na boate. Foi no Leme que ela viveu durante alguns anos com o então marido Anselmo Duarte e os dois filhos pequenos, Anselmo e Lydia. Não se assuste com a profusão de nomes célebres: o Leme é mesmo estrelado. Viveram lá, em diferentes épocas, figuras como Candido Portinari, Clarice Lispector, Chacrinha, Nelson Rodrigues, Juscelino Kubitschek, Ivo Pitanguy e Beki Klabin – na cobertura, acima do Sacha’s –, apenas para lembrar alguns.

Waleska cantando no PUB, o casal Beth e Jardel Filho e Jardel no papel do personagem Renatão ||Créditos: Arquivo Pessoal

Anos 1960: o império da fossa

Loira, densa, estilo fatal, a cantora capixaba Waleska ganhou de Vinicius de Moraes o título de “rainha da fossa”: “Quando terminei de cantar, ele disse: ‘Waleska tem a canção certa para a dor exata’, e pegou, virei a rainha da fossa mesmo não sendo nada chegada à depressão”, relembra, de seu apartamento no bairro.

Seu charme e voz seduziram um dos maiores jornalistas e compositores da época, Sérgio Bittencourt, que ficou conhecido nacionalmente como jurado de Flávio Cavalcanti e, não raro, escrevia suas colunas nos bares da região. Waleska era proprietária do PUB (Pontifícia Universidade dos Boêmios), conhecido na época como território livre do Leme. Do pequeno bar saíram expoentes da nossa música, como Milton Nascimento, Gutemberg Guarabyra e Egberto Gismonti.

Dias de Sol

Arborizado, o Leme também é conhecido por ser um bairro “final”, exclusivo e por seus edifícios ícones do art déco, como o Manguaba, com seus painéis cerâmicos na portaria, o Hotel Acapulco, tido como protótipo de elegância e de sobriedade da época – ambos na rua Gustavo Sampaio –, e o Leme, na avenida Nossa Senhora de Copacabana.

Os cinemas do bairro eram outra coqueluche, o grande programa vespertino além da praia. As pedidas eram o Cine Leme, que comportava 500 pessoas e funcionou de 1947 a 1959, e o Cine Danúbio, menor, numa casa em cima do Bar Alpino.

Mariozinho de Oliveira

Playboy da “turma dos cafajestes”, Mariozinho marcou até mesmo os dias pacatos do Leme de então. Morava de frente para o mar e usava walkie-talkie para falar com “a criadagem” (existe a versão de que o que ele tinha era um longo fio do telefone fixo). Ele era o terror: aprontava e gostava de tirar onda da cara até mesmo dos amigos. Certa feita deu um jantar black tie para a princesa de Timbuktu, uma bela mulata que pouco falava, balbuciava apenas algumas poucas palavras em francês, e encantou o high society. No fim Mariozinho bateu palma: “Hora de retirar a mesa e lavar as louças”. Sem hesitar, ela se levantou da mesa: “Pois não, senhor Mariozinho”. Foi ele a inspiração para Dias Gomes criar Renatão, o cafajeste vivido por Jardel Filho na novela Assim na Terra Como no Céu, na década de 1970.

Acima, Jardel Filho e abaixo, Juca Chaves em sua casa no Leme ||Créditos: Arquivo Pessoal

Década de 1970

Em 1973, o menestrel Juca Chaves vai morar no último andar do edifício Yemanjá, de frente para o mar. E foi na areia fofa da praia que o compositor, poeta e cantor conheceu sua musa, a então modelo Yara. O casal curtia o bairro e era lá que vivia quando Juca emplacou um de seus maiores sucesso, o LP Juca, Vivo ou Morto. Proibido para Maiores. Logo depois se mudou para outra cobertura, mas na Delfim Moreira, no Leblon. “Fiquei com saudade, adorava ir jantar no Shirley’s, adorava o Jerusaleme”, brincando com a alta concentração de judeus no bairro.

Quem também morou de frente para a praia, no Sayonara, foi a atriz Vera Gimenez, durante quase dez anos do auge de sua carreira. O prédio era um dos mais suntuosos da praia e Vera e Jece Valadão recebiam muito. Ela morou lá com e sem ele, já que o casal se separou três vezes. Ela lembra bem dessa época: “Nossa, como gastei dinheiro, tínhamos convidados quase toda semana. Em 1982, dei um jantar para 200 pessoas, sentadas”. Anna Maria Tornaghi, promoter e moradora do bairro, lembra que “a sala tinha 150 m². Eram oito empregados, uma loucura, não existe mais isso”. “Era um prédio de rico, gente que não gosta de aparecer em coluna social, ricos mesmo, sabe? Eu era a única que não era rica”, lembra, gargalhando. Hoje Vera vive em uma ampla cobertura em Botafogo.

Galã Imaginário – Eduardo Tornaghi

Da família Tornaghi, aliás, saíram duas figuras importantes da cena carioca: a promoter Anna Maria, até hoje na ativa, e seu irmão, o ex-galã da Rede Globo Eduardo Tornaghi. Em 1975, Eduardo estourou ao lado de Nivea Maria, em A Moreninha, gravada em Paquetá, e logo emendou um sucesso atrás do outro. Educado e sensível, ele percebeu que o preço do sucesso não lhe fez bem depois de uma ocasião em que destratou algumas fãs e o fez questionar tudo. Resultado: foi ensinar teatro na favela e em estados distantes, vendeu carro e apartamento. Só não se esqueceu das raízes do bairro. Até hoje ele declama poesias em um dos quiosques da praia – sem o mesmo porte de galã de antes, mas com mais brilho no olhar.

Ilka Soares, que viveu no Leme durante alguns anos com o então marido Anselmo Duarte ||Créditos: Arquivo Pessoal

Anos 1980

Nos anos de 1980, o Regine’s deu graça ao bairro – e também seu último suspiro de glamour. As festas pré-carnavalescas eram um sucesso e reuniam o jet set internacional. Foi lá que Marina Montini, no auge, conheceu dois de seus famosos casos: Robert De Niro e Omar Sharif. Mas nos últimos anos de vida era possível ver Marina, sempre produzida, maquiada e de turbante, bebendo no Leme Light… e sozinha. Por conta do alcoolismo, seus amigos de glamour se afastaram. Marina morreu de cirrose hepática. Em seu apartamento, lotado de telas, não havia mais nenhum Di Cavalcanti, mas ficaram seus retratos de Geraldo Lamego e Carlos Bastos, vendidos pelos herdeiros. Ela sempre dizia que o Leme coberto seria um circo e cercado, um hospício.

Também era possível encontrar as duas rainhas do rádio da década de 1950, as rivais Marlene e Emilinha, juntas em alguma esquina. “Elas não se frequentavam, mas quando se encontravam batiam um bom papo”, garante o historiador César Sepúlveda.

Hoje, a noite se resume a restaurantes. A Fiorentina trouxe um toque das recordações de antes. Mas exclusivo e versátil o bairro continua: é possível encontrar seus fiéis moradores pelas ruas, como Beth Goulart ou Zezé Motta e até mesmo Rogéria, de jogging preto e enormes óculos escuros, correndo pela orla. Elke Maravilha, que mora lá desde 1972, resume: “O Leme é uma cidade pequena dentro de uma cidade grande. Não é um bairro de passagem, tenho vizinhos. Cheguei, gostei e fiquei”.

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