O psiquiatra Arthur Guerra, um dos maiores especialistas do país em dependência química, traça o perfil do paciente mais difícil de tratar: tem mais de 40 anos, muito dinheiro e não admite que precisa de ajuda
Por Márcia Rocha para a Revista PODER de julho
Todos os dias, o psiquiatra paulistano Arthur Guerra pula da cama às 4h30 da manhã e encara uma pesada rotina de exercícios físicos das 5h às 9h30. Só para aos domingos. De seis anos para cá, Guerra, um maratonista de carteirinha (tem 11 corridas no currículo), resolveu aderir ao triatlo, esporte que reúne não só uma maratona completa, ou seja, correr 42 km, mas também pedalar 180 km e nadar outros 3,8 km – tudo em seguida. A explicação para tanto suor é que em agosto ele embarca para a Áustria. Vai disputar o campeonato mundial do Ironman 70.3. “Só de ir para lá já me sinto premiado”, diz o médico de 61 anos, que foi selecionado para representar o Brasil na prova.
Sua outra maratona, a de trabalho, que dificilmente dura menos de dez horas por dia, também não é para iniciantes. É professor titular na Faculdade de Medicina do ABC, onde se formou em 1978, e professor associado de Psiquiatra na Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP). Nessa última, criou e é chefe do programa do Grupo Interdisciplinar de Estudos de Álcool e Drogas (Grea). Também preside o Centro de Informações sobre Saúde e Álcool (Cisa) e o International Council on Alcohol and Addictions (Icaa). Além disso, atende em sua clínica, no bairro da Vila Olímpia, em São Paulo, pacientes endinheirados com transtornos psiquiátricos e histórico de abuso de álcool e drogas como maconha, cocaína, anfetamina, metanfetamina, opiáceos e até crack.
Fundada há mais de duas décadas, a Clínica Arthur Guerra conta com psiquiatras, cardiologistas, psicólogos, neuropsicólogos, personal trainers e nutricionistas e é uma das principais referências no país em sua área. Foi lá que ele recebeu PODER para uma conversa. A entrevista precisou ser interrompida mais de uma vez porque uma paciente precisava de internação imediata. O caso era grave – como todos os que ele costuma atender, aliás.
PODER: A dependência química pode ser considerada uma doença
Arthur Guerra: Sim. É a manifestação máxima da doença. Os leigos usam o termo “viciado”, mas essa não é uma expressão adequada porque embute certo julgamento moral. Para chegar ao grau de dependência, a pessoa já passou pelo uso social do álcool ou das drogas, pela utilização como “muleta” para tentar amenizar seus problemas. O dependente é aquele que traz prejuízos para si e também para as pessoas com quem convive. Ele se torna “escravo” da substância, deixa de ser funcional. No caso do álcool, por exemplo, precisa beber todos os dias para ficar “calibrado” – senão, a mão treme, por exemplo. O dependente não consegue parar de beber ou de usar drogas mesmo sabendo que isso pode levá-lo à morte.
PODER: Quem é mais vulnerável, o homem ou a mulher?
Arthur Guerra: Em relação ao álcool não há a menor dúvida de que a mulher é mais vulnerável, corre mais risco de se tornar dependente. As mulheres, em geral, têm menos enzimas no fígado para metabolizar o álcool. Por uma questão fisiológica – pesam menos e têm menos massa corpórea –, os efeitos são muito mais intensos e prejudiciais para elas. É preciso levar em conta também os ciclos hormonais – e o álcool não ajuda nem um pouco nisso. As mulheres se tornam mais vulneráveis ainda por volta dos 50 anos, principalmente no que diz respeito ao consumo de álcool. Nessa fase, a taxa de estrógeno diminui e elas vivem a chamada síndrome do ninho vazio, quando os filhos cresceram e já se tornaram independentes. Também pode acontecer de o marido não estar mais tão interessado nela e, algumas vezes, até de ter um caso com alguém mais jovem. Muitas mulheres têm extrema dificuldade de lidar com tudo isso e acabam recorrendo ao álcool.
PODER: A genética determina se uma pessoa vai se tornar dependente ou não?
Arthur Guerra: A genética influencia, sim. Há famílias em que as pessoas produzem mais enzimas que metabolizam o álcool. Com isso, a quantidade para provocar embriaguez vai ser cada vez maior, o que aumenta o risco de dependência. Mas a hereditariedade em si não é um fator determinante.
PODER: O senhor acredita que o consumo aumentou entre homens e mulheres na faixa dos 40 anos que já estão bem colocados na vida e na carreira?
Arthur Guerra: Aumentou. Muitas vezes, essas pessoas são amorais, sofrem de certa ausência de valores – e isso vale tanto para jovens quanto para adultos. Elas não precisam trabalhar, não precisam se formar, têm dinheiro – ou seja, a condição financeira não é um fator limitante –, são liberais demais, ociosas. Aí, a droga entra para preencher o vazio, para acalmar essa angústia existencial que todos sentimos. Só que a maior parte das pessoas coloca as preocupações nos filhos, no trabalho, no esporte, tem alguma fé…
Geralmente, esses pacientes são os mais difíceis de tratar porque costumam ter uma postura arrogante. A negação da dependência faz parte do quadro clínico. Eu costumo pedir um teste toxicológico de urina que acusa o uso de qualquer substância nos últimos sete dias. Muitos desses pacientes se recusam a fazer o teste, dizendo que é humilhante. Aí, já sei que é porque usaram alguma coisa. Quando a pessoa está em um grau grave de dependência, a única chance de recuperação é a parada total, a abstinência.
PODER: O dependente na faixa dos 40 anos fica com sequelas?
Arthur Guerra: Quando o uso é muito precoce, intenso e a droga é pura, mais risco de sequelas. No caso da maconha, por exemplo, esse prejuízo se manifesta no rendimento psicológico, com uma diminuição da vontade, da memória, da concentração. As sinapses (comunicação entre um neurônio e outro) continuam a existir, só que se tornam mais lentas. Claro que isso não funciona em um mundo como o de hoje, que é muito competitivo, e a pessoa acaba sendo descartada.
PODER: Qual é o tempo médio de uso de álcool e de outras drogas para alguém se tornar dependente?
Arthur Guerra: No caso do álcool, em geral, a pessoa leva de oito a 12 anos para se tornar dependente; a maconha pode provocar dependência depois de cinco anos de uso contínuo; no caso da cocaína, esse prazo é de um ano. Quanto ao crack e à heroína, em alguns casos, três utilizações bastam para levar à dependência (ver quadro “Alto Risco”).
Mas a dependência não está relacionada somente à utilização da droga. Existem outros gatilhos: é preciso considerar, por exemplo, o grupo social. Há grupos que são regidos não só pelas roupas que as pessoas usam, mas também pela música que ouvem e pelas drogas que utilizam.
Às vezes, uma pessoa bebe ou usa determinada droga para ser aceita em um grupo; há casos em que o uso é para combater a ansiedade; os jovens experimentam por curiosidade – é o chamado “batismo”; certas profissões podem favorecer o uso de álcool e de drogas.
Alto risco
Veja quanto tempo, em média, uma pessoa leva para se tornar dependente de algumas drogas:
Álcool: 10 anos
Maconha: 5 anos
Cocaína: cerca de 1 ano
Crack e heroína: três vezes
PODER: Que droga funciona como porta de entrada para outras?
Arthur Guerra: O álcool é a principal. Dependendo da vulnerabilidade da pessoa – se ela está em um quadro depressivo, se tem alguma fobia, se é ansiosa –, há grandes chances de partir para outras substâncias. A maconha também pode funcionar como gatilho. Aqui no consultório, só atendo casos graves, extremos, e em todos foi a primeira droga utilizada.
Por outro lado, sou obrigado a admitir: existem pessoas que conseguem parar sozinhas. Tem aquele cara que fumava maconha na faculdade, na balada e aí se casa, tem filhos e para ou diminui drasticamente o uso porque percebe que aquilo não combina mais com a vida que tem. Mas com muita gente não é assim. Eu trato as pessoas que tentam parar e não conseguem.
PODER: Qual é a relação entre poder, dinheiro e uma carreira de sucesso com a dependência química?
Arthur Guerra: Eu vejo muito uma coisa chamada “paga de patrão”. O chefe chega e fala “hoje, a balada é por minha conta” e traz a droga para distribuir entre as pessoas que trabalham com ele. Como naquele filme O Lobo de Wall Street (de Martin Scorsese), que, entre outras coisas, mostra profissionais do mercado financeiro movidos a álcool e cocaína para render mais.
PODER: Por que as pessoas costumam misturar álcool e drogas?
Arthur Guerra: Com a falsa crença de que uma substância neutraliza o efeito da outra. Entre os jovens, maconha não é considerada droga – é como se fosse o vinho que os adultos tomam. Eles consomem também muito ecstasy, LSD e MD, que é o ecstasy mais potencializado. É muito comum o jovem fazer um “esquenta” e tomar uma bebida alcoólica para chegar “calibrado” na festa. Acontece que o álcool tem efeito depressor e deixa a pessoa com um ritmo mais lento. Então, esses jovens usam alguma outra coisa para dar um up, tomam um energético, por exemplo. Eles costumam misturar vodca e energético com a falsa ideia de que um anula o efeito do outro, já que o energético excita e a vodca relaxa. Isso não é verdade e a pessoa sai sempre no prejuízo.
Da mesma maneira, tem gente que bebe e depois cheira cocaína. Se a pessoa estiver grogue e cheirar cocaína, vai ficar mais excitada, mas seus reflexos vão continuar alterados por causa do álcool. Outro erro comum é acreditar que o que faz mal é misturar mais de um tipo de bebida. Para o fígado, não importa, tudo é álcool.
PODER: O que acontece no cérebro quando alguém bebe?
Arthur Guerra: O álcool age como um capacete, um spray, e atua não só em uma região, mas no cérebro inteiro – e no corpo todo também. A primeira ação é excitatória, a pessoa fica mais falante, desinibida. Depois, o ritmo diminui.
PODER: Qual é a proporção de homens e mulheres entre seus pacientes?
Arthur Guerra: Atendo pacientes a partir de 13 anos e, nesse grupo, há 70% de meninos e 30% de meninas. Muitas vezes, eles vêm aqui porque a mãe encontrou a droga ou porque o rendimento escolar e esportivo começou a cair de forma vertiginosa. Geralmente, o jovem começa com o álcool, que está na geladeira da casa dele, porque viu o irmão mais velho e o primo beberem. Aí, vem aquela questão cultural de que “quem bebe é mais macho”. Quanto mais cedo o jovem começar a beber, maior é o risco de ele passar para outras substâncias: maconha, skank, que é, digamos, a maconha mais pura, mais limpa, mais forte. Depois, vem o haxixe.
Entre os adolescentes de 16, 17 anos, a proporção é de 80% de rapazes e 20% de moças. Nessa idade, eles acreditam que têm o “corpo fechado”. Então, acreditam que não vão se tornar dependentes, que podem fazer sexo sem proteção, dirigir sem cinto de segurança, essas coisas. É uma situação de onipotência, de uma primariedade e de uma infantilidade enormes. Em geral, as moças dessa idade chegam na clínica com quadros graves por três razões principais: a primeira por causa do uso exagerado de álcool, o que a gente chama de blecaute ou amnésia alcoólica; a segunda é o “boa-noite, Cinderela”, mistura de álcool e tranquilizantes; e a terceira é pelo uso de anfetaminas. Associada ao álcool, a anfetamina provoca um quadro psicótico forte.
Depois vêm os pacientes na faixa de 21 a 24 anos, o grupo dos universitários, o que mais usa álcool e drogas – e isso não só aqui no Brasil, mas no mundo também. Muitos estudam fora e moram sozinhos, situação que os deixa mais vulneráveis, já que não estão sob a supervisão dos pais. Tem o calcanhar de Aquiles que se chama festa open-bar, em que as pessoas vão beber e muito. Não são raros os casos de morte com uma brincadeira chamada maratoma ou maratomba, competição em que vence quem consegue beber mais. A pessoa vai entrar em coma alcoólico e coma alcoólico é a antessala da morte. Por isso, quem organiza essas festas também contrata uma ambulância.
O próximo grupo de pacientes é composto por pessoas que estão na faixa dos 25 aos 32 anos. Aqui, a proporção é de 60% de homens e 40% de mulheres. É bastante comum nesse grupo uma transição rápida do álcool para a cocaína sem passagem pela maconha. Na fase adulta, dos 30 aos 40, 42 anos, a proporção entre mulheres e homens é igual. Nessa etapa da vida, as pessoas estão casadas, têm filhos e percebem que, para ganhar dinheiro, precisam de um emprego e que as drogas não são mais aliadas. Mas há aqueles que bebem e cheiram cocaína. Nesse grupo de pacientes, bem menos gente fuma maconha.
PODER: E o canabidiol, o princípio ativo da maconha, traz algum benefício para a saúde?
Arthur Guerra: Traz benefícios, sim, mas em algumas situações específicas: quadros depressivos, melhora o glaucoma (aumento da pressão intraocular que pode levar à cegueira) e as dores crônicas, além de estimular o apetite de pacientes anoréxicos. Sobre o uso do canabidiol em crises convulsivas, há médicos que não acreditam que seu efeito seja melhor que o de outros medicamentos. Mas a importação foi autorizada – a pauta entrou via Conselho Regional de Medicina e agora foi para o governo federal. O canabidiol pode ser importado – desde que haja prescrição médica. A importação do canabidiol como medicamento está liberada, mas a importação e o uso recreativo da maconha continuam proibidos.
Legalizar é a solução?
Ano passado, o Uruguai se tornou o primeiro país do mundo a regulamentar o cultivo, a comercialização e a distribuição da maconha, criando um mercado totalmente legal sob controle do governo. Dezenas de outras nações discutem a questão, como os Estados Unidos, onde o uso medicinal da droga já é permitido em 23 estados mais o Distrito Federal, sendo que Colorado, Alasca e Washington já legalizaram o uso recreativo da droga. Já na Holanda, desde os anos 1970 existem os chamados coffee shops, cafés onde se pode comprar e consumir maconha e suas variações, como o haxixe, o que transformou o país em destino turístico para usuários. “Não há a menor dúvida de que o fato das drogas serem ilegais as associa a crimes, a prisões cada vez mais cheias de jovens que atuavam como mulas (responsáveis por transportar a droga até o consumidor final ou ao local de venda). Mas será que esses jovens vão deixar de ser presos se as drogas forem legalizadas? Essa é uma grande dúvida”, analisa o dr. Arthur Guerra. Ele ainda acredita que o Uruguai “vai ser observado com lentes de aumento nos próximos anos, sendo uma espécie de comunidade-teste”. No Brasil, o debate segue a passos muito lentos.
PODER: O senhor acha que o imediatismo e a velocidade típicos da atualidade contribuem para o aumento do consumo de drogas?
Arthur Guerra: De certa maneira, sim, porque hoje a comunicação é muito mais rápida e eficiente. O Google tem o lado bom e o lado ruim. Existe, por exemplo, uma coisa chamada dark web (rede negra, em tradução livre, que exibe conteúdo criptografado e não indexado intencionalmente por meio de IPs disfarçados). Nessa, digamos, rede paralela se faz comércio de drogas, órgãos humanos, armas etc.
PODER: Como é o tratamento da dependência química?
Arthur Guerra: Muitas vezes, é preciso internar o paciente para afastá-lo do álcool e das drogas. O apoio da família é fundamental porque a pessoa precisa refazer seu círculo de amigos. A prática regular de atividade física também é essencial – tenho sete personal trainers na minha equipe. A gente faz uma troca: a dopamina (neurotransmissor liberado durante o consumo de certas drogas) pelas endorfinas, hormônios produzidos pelo próprio corpo que trazem sensação de bem-estar e são liberados durante a prática de exercícios físicos. A pessoa se sente satisfeita porque conseguiu bater a meta, conseguiu fazer uma prova de 10 quilômetros, começa a ter amigos que fazem a mesma coisa, se sente mais valorizada, perde peso.
PODER: Dependência tem cura?
Arthur Guerra: Melhor dizer que ela tem controle. Vamos supor que alguém esteja há 30 anos sem usar nenhum tipo de droga. Se utilizar novamente, volta tudo de novo, porque há uma herança química, genética.
PODER: Como o senhor costuma lidar com seus pacientes?
Arthur Guerra: Quando necessário, sou duro, bravo, radical. Mas também sou muito próximo, mergulho no caso – os pacientes dividem suas angústias e contam comigo. E tenho uma equipe muito boa, que me ajuda muito. Mas, quando saio da clínica e chego em casa, não toco mais no assunto. Alguns pacientes acham que o médico não precisa impor limites e insistem em falar comigo fora do horário do consultório. Por isso, a clínica conta com uma equipe de plantão que funciona 24 horas, sete dias por semana. Eles só me acionam quando não conseguem resolver o caso.
PODER: Alguma vez o senhor sentiu que falhou como médico?
Arthur Guerra: Várias vezes. Já tive pacientes que se suicidaram. Há também aquele paciente que se suicida lentamente, que vai morrendo aos poucos, vai perdendo os elos, vai definhando. Quando a pessoa não quer, ela não para de beber nem de usar drogas.