A vida e a obra de Lina Bo Bardi, muito além do Masp. Pode entrar!

Lina em um dos objetos mais famosos criados por ela, a poltrona Bardi’s Bowl, criada em 1951||Créditos: Divulgação Lina Bo e P.M. Bardi

 

Lina Bo Bardi deixou sua marca na arquitetura, no design e no ativismo político. Mas sua grande revolução foi  colocar o homem no centro de sua obra e privilegiar o simples – sempre

Por Paulo Vieira para a revista PODER

Se a importância de um arquiteto fosse medida pela quantidade de projetos, a brasileira nascida em Roma Achillina Bo (1914-1992), a Lina Bo Bardi, mal seria lembrada hoje em dia. Da mesma forma, seu centenário de nascimento, celebrado ano passado, não iria se desdobrar em várias exposições pelo Brasil e pelo mundo – atualmente, há mostras no MoMA nova-iorquino e no Instituto Lina Bo e P.M. Bardi, em São Paulo. Mas em Lina, menos é mais. A arquiteta deixou poucos, mas impactantes projetos, como o do Masp, o do Sesc Pompeia, o do Teatro Oficina e o da Casa de Vidro, todos eles em São Paulo. Sua atuação, contudo, transcendeu a prancheta. Ela colocou suas digitais no design industrial, no mercado editorial, na cenografia e no ativismo político. A partir dos muitos escritos que deixou não seria exagero dizer que o principal ofício de Lina foi ter pensado o Brasil, algo coerente com a agenda de um país que se industrializava. Para ela, “a arte (como a arquitetura e o desenho industrial) é sempre uma operação política. Todas as revoltas e vanguardas têm por base a estética”, escreveu.

Lina começou a carreira em Milão, com o arquiteto e editor Giò Ponti, da revista Lo Stile, que, nos anos 1940, se propunha a educar os italianos na decoração moderna. Mas ao se mudar para o Brasil, em 1946, com o marido, o jornalista e marchand Pietro Maria Bardi, incumbido pelo magnata da imprensa Assis Chateaubriand de criar o Museu de Arte de São Paulo, o Masp, Lina se envolveu pela cultura brasileira, relação que se aprofundou em Salvador, onde, no fim dos anos 1950, dirigiu o que viria a ser o Museu de Arte Moderna da Bahia. “Aí eu vi a liberdade. A não importância da beleza, da proporção, dessas coisas (…)”, disse. De volta a São Paulo iria professar sua fé em uma ideologia de cor popular.

A liberdade também está no primeiro projeto de Lina no Brasil, o de sua própria residência, a Casa de Vidro, de 1951, onde o desafio era se aproximar da natureza “por todos os meios”. Na época, o imóvel pontificava, solitário, no topo de uma montanha do Morumbi, (chamado então de Jardim Morumby), lugar “cheio de bichos selvagens, belíssimas cobras e muitas cigarras”, escreveu. Para projetar a Casa de Vidro, ela aboliu efeitos decorativos. Sua premissa era fazer algo que “participasse dos perigos” (chuva e vento) sem as “proteções usuais”, como o brise-soleil (painel com feixes paralelos instalado nas janelas para filtrar a luz do sol), por exemplo. O vidro que acabou incorporado ao nome da casa substitui três paredes e envolve toda a área frontal onde estão as salas de estar e de jantar e a biblioteca, além do quarto da arquiteta – Bardi também tinha o seu. A casa se apoia em pilotis e, na parte posterior, onde ficam a área de serviço e as dependências dos funcionários, diretamente sobre o terreno em desnível. Na entrada, uma charmosa e delicada escada de metal (que balança) em duas diagonais. Há outras soluções inovadoras ali, como o piso em pastilhas de vidro, material usado normalmente para mosaicos ornamentais, e a longa e estreita cozinha, vital na função de circulação – é a única conexão da área social com a área de “produção” da casa. Chama a atenção na cozinha o longuíssimo balcão de aço inox, material utilizado em hospitais. Há ainda fogões industriais – Lina gostava de cozinhar – e um triturador instalado sob uma das pias.

Modelos da maison Dior no Masp, em 1951, com Pietro Maria Bardi (esq.) e Lina na outra ponta; abaixo, a arquiteta com um ilustre corador da sua Casa de Vidro (à dir.)||Créditos: Divulgação Lina Bo e P.M. Bardi/Reprodução

DE VOLTA ÀS ORIGENS

Os achados estéticos de Lina para a Casa de Vidro podem não ter a força de seus projetos seguintes, mas eles já se inscreviam em um programa estético bem definido. “Acho que Lina passou a vida tentando fazer com que a arquitetura voltasse a seu propósito mais nobre e fundamental, o de proporcionar abrigo ao homem. Abrigo no mais amplo sentido: da cadeira à cidade”, diz o arquiteto Marcelo Carvalho Ferraz, que trabalhou com Lina e dirigiu o Instituto Lina Bo e P.M. Bardi, responsável pela preservação da memória e obra do casal. “E isso, em boa medida, está perdido hoje, com tanto modismo e mediocridade”, completa Ferraz.

Professor titular da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo e atual secretário de Cultura do município de São Paulo, o arquiteto Nabil Bonduki aponta semelhanças entre a Casa de Vidro e a Residência Carmem Portinho, projetada e construída na mesma época, no Rio de Janeiro, por outro arquiteto brasileiro canônico, Affonso Eduardo Reidy. “A casa de Reidy, de fachada envidraçada, também se apoia em terreno de forte declive, com a frente elevada em pilotis e com árvores entrando no imóvel”, compara. “É um estilo de construção que se integra ao meio físico, como o da Casa de Vidro, mas é difícil saber quem influenciou quem.” Sobre qual seria o legado de Lina, Bonduki disse: “Um dos mais importantes foi mostrar a importância da interlocução entre a arte popular e a cultura mais ‘letrada’ da cidade. E ter incorporado isso à arquitetura”.

Entusiasta da obra da brasileira, Rowan Moore, crítico do jornal britânico “The Observer”, coloca Lina na posição de “heroína” em seu livro “Why We Build”, da editora HarperCollins, ainda  sem tradução para o português. Para ele, sua obra atingiu uma “rara combinação de paixão e generosidade”. Bastou, para isso, colocar o homem no “centro do projeto”. Algo que é, como disse Marcelo Ferraz, o propósito fundamental da arquitetura, mas que parece ter se perdido em algum momento da modernidade. Coerente com esse princípio, Lina também não se descuidava de quem colocava a mão na massa. Ferraz, que passou nove anos ininterruptos com ela durante a construção do Sesc Pompeia, afirma que o contato com engenheiros, mestres de obra e os cerca de 400 operários “era direto, sem mediadores ou burocracias”. Nas palestras que dá sobre Lina, Ferraz conta um episódio curioso, em que os operários do Sesc pediram a intervenção da arquiteta para tirar a soja do cardápio servido na obra, alimento que na época era associado à perda da potência sexual. Sob ameaças de rebelião, Lina propôs a realização de um culto ecumênico para que todos ficassem livres da “maldição”. Deu certo. “Lina era a pessoa mais respeitada, a que trazia confiança a todos. Ela se sentia pessoalmente envolvida com o desenrolar da obra e com as pessoas que ali estavam.” Precavida, ela também tomou outra atitude: decidiu banir a soja da comida de seus operários.

||Créditos: Divulgação/iStock

SALA DE ESTAR

Dos diversos objetos de design que criou, um dos mais famosos pode ser visto na Casa de Vidro. É a poltrona Bardi’s Bowl,  criada em 1951 (na foto de abertura, Lina aparece sentada nela). Lina pensou no conforto , mas o móvel deixa as pernas suspensas. Hoje, a Bardi’s Bowl é comercializada pela empresa italiana Arper, que produziu 500 exemplares coloridos, todos com número de série. A Bardi’s Bowl é puro luxo se comparada a móveis mais rústicos, como a Cadeira de Beira de Estrada, de 1967, que se apoia em quatro paus que formam um “A” atravessado. A arquiteta também desenvolveu com seus colaboradores Marcelo Ferraz, Marcelo Suzuki e Francisco Fanucchi cadeiras de madeira como a Girafa  e a Frei Egídio, de linhas simples, hoje comercializadas pela Marcenaria Baraúna, de São Paulo.

EM CARTAZ

Lina Bo Bardi é um dos principais nomes brasileiros da exposição “Latin America in Construction: Architecture 1955–1980”, que fica até 19 de julho no MoMA, de Nova York. A mostra retoma outra exposição icônica do museu, realizada há 60 anos. Os projetos da Casa de Vidro, do Masp, do Sesc e do Solar do Unhão, em Salvador, estão lá. Nova York também pôde ver obras de Lina em outras duas exposições diferentes este semestre; em razão do centenário de seu nascimento, a artista e sua obra também foram o tema de mostras em Roma e Munique. Em São Paulo, segue na Casa de Vidro até 19 de julho a mostra “Lina em Casa: Percursos”. Trata-se de uma ótima oportunidade de conhecer a residência por dentro, já que o imóvel é interditado ao público quando não há exposições.

ARQUITETURA POBRE

Foi na Bahia, onde viveu de 1958 a 1964, que Lina radicalizou sua visão da arquitetura. Ela passou a buscar em seus projetos a simplificação máxima, aproveitando ideias que via na arte e nos costumes populares. A essa visão deu o nome de “ arquitetura pobre” – “não no sentido de indigência, mas no sentido artesanal, que exprime comunicação e dignidade máximas por meio dos menores e humildes meios”, escreveu. É icônica a escada do Solar do Unhão, de Salvador, que utiliza degraus de madeira encaixados à maneira das rodas dos carros de boi. A arquitetura pobre chegou ao Masp na forma das placas de vidro sobre blocos de concreto que suportavam as obras de arte do museu, retirando-as das molduras elitistas (essa maneira de expor os quadros, aliás, será reabilitada pelo Masp este ano, depois de décadas); e ao Sesc Pompeia, centro de convivência derivado de uma antiga fábrica de tambores em que seu trabalho, em sua modesta definição, foi “colocar apenas algumas coisinhas: um pouco de água, uma lareira”. “Ninguém transformou nada, encontramos uma fábrica com uma estrutura belíssima, arquitetonicamente importante, original…”, disse.

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