A narrativa abusada de Anaïs Nin na revista J.P de abril. Leia aqui

Retrato de Anaïs Nin||Créditos: Getty Images

 

Por Maria Clara Drummond para a revista Joyce Pascowitch de abril

“Tornar-me numa obra de arte importa-me mais do que criar uma obra de arte”, escreveu Anaïs Nin. De fato, a escritora francesa de ascendência cubana é mais conhecida por seus diários, em que retrata de forma confessional sua vida libertina, cosmopolita e glamourosa, que por sua ficção erótica, realizada sob a encomenda de um colecionador de livros. “O sexo dela era como uma gigantesca flor de estufa, maior do que qualquer um que o Barão já houvesse visto, e o pelo em volta era abundante, encaracolado, negro acetinado. Eram aqueles lábios que ela pintava como se fossem uma boca, muito requintadamente, de modo que ficaram como uma camélia vermelho-sangue aberta à força, mostrando o botão interior, o cerne mais pálido e de pétalas mais delicadas da flor.” Este trecho do conto “O Aventureiro Húngaro”, por exemplo, faz parte da obra “Delta de Vênus”, criada sob a orientação expressa de ser apenas descrição anatômica de sexo, sem nenhuma poesia ou filosofia em suas páginas.

Por mais que isso a perturbasse, Anaïs se acostumou então a entregar todo o talento literário e conhecimento psicanalítico a seus diários, ao relatar aventuras e acontecimentos cotidianos sem reservas, desde os 11 anos. Durante seis décadas, foram mais de 35 mil páginas escritas. Com medo de que alguém pudesse descobrir todos os seus fabulosos segredos, ela costumava guardá-los em cofres de banco. As primeiras publicações de fragmentos de seus diários datam dos anos 1960, quando a escritora resolveu tornar públicos trechos que traçavam um importante panorama de Paris entreguerras e de Nova York pós-Segunda Guerra Mundial. Receosa de processos ou de magoar pessoas envolvidas, Anaïs autocensurou as partes mais comprometedoras dos textos, omitindo nomes e fatos polêmicos, como a relação incestuosa com seu pai e a bigamia. Mesmo assim, tornou-se exemplo da liberação feminina em voga na época.

||Créditos: Ilustração Sandra Java

LIVRO ABERTO

Em 1923, aos 20 anos, Anaïs se casou com Hugo Guiler, um bem-sucedido banqueiro que circulava com desenvoltura na cena cultural. Embora gastasse seu dinheiro com perfumes e roupas, com o intuito de enlouquecer seus amantes em potencial, a escritora também usava a mesada que recebia de Guiler no papel de mecenas de seus amigos escritores. D. H. Lawrence, André Breton, Paul Éluard, John Steinbeck, Edmund Wilson, Jean Cocteau e Gore Vidal são alguns dos intelectuais que frequentavam a casa do casal – e não raro engatavam um sex affair com Anaïs. Apesar de homossexual assumido, Vidal foi apaixonado pela escritora e, mesmo 20 anos mais novo, chegou a pedi-la em casamento. Mais tarde, romperiam quando ele descreveu o relacionamento entre os dois em um livro.

No entanto, a grande figura de sua vida, e pessoa com quem teria a maior troca literária e sexual, foi o amigo e amante Henry Miller, que conheceu em 1930. Foi ele quem chamou a atenção para a qualidade literária de seus diários e chegou a escrever sobre a importância deles num artigo para a revista inglesa “The Criterion”, em 1937. Na época, Miller era casado com June, que foi sua grande paixão e protagonista de vários de seus livros, como “Trópico de Câncer” e “Trópico de Capricórnio”. Sedutora ao extremo, ela encarnava a perfeita femme fatale da época. Logo, Anaïs Nin também se interessou por June, chegando a gastar todo seu dinheiro para presenteá-la com joias e roupas. Todavia, ao contrário do que mostra o filme “Henry & June”, de 1990, as duas não chegaram a ter relações sexuais. June e Henry Miller se divorciaram em 1934, muito por conta do papel marcante que Anaïs desempenhou no casamento.

Foi num elevador, a caminho de uma festa, que a escritora então conheceu seu segundo marido: o jovem ator Rupert Pole, 16 anos mais novo. Em 1955, apesar de ainda casada com Hugo Guiler, os dois firmaram matrimônio. Anaïs lidava com a vida bígama com maestria, dividindo seu tempo entre os dois maridos, em Nova York e Los Angeles – e diferentes cartões de visita, com os dois sobrenomes.

Nos anos 1980, após sua morte, em 1977, Pole editou alguns diários e os publicou, sem cortes, na forma dos livros “Henry & June”, “Incesto” e “Fogo”. “Quando os leitores leram essas últimas versões e perceberam que os diários anteriores tinham sido autocensurados, ficaram chocados e se sentiram traídos”, diz Paula Taitelbaum, da editora L&PM, que publica a obra de Anaïs no Brasil. Já Letícia Gicovate, idealizadora da revista erótica “Nin”, batizada em homenagem à escritora, resume bem a importância desses escritos hoje: “É tão atual e eterno quanto a sexualidade humana, e vai durar o tempo que o desejo feminino durar. A obra de Anaïs Nin é moderna. Desperta, assusta e acende em qualquer tempo”. Como ela mesma escreveu, “a linguagem do sexo ainda estava para ser inventada. A linguagem dos sentidos ainda estava para ser explorada”. E foi isso que Anaïs fez.

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