No mês em que completa 83 anos, Boni, icônico executivo da Globo por 30 anos fala sobre televisão, jornalismo e séries

Principal executivo da Rede Globo por três décadas, José Bonifácio de Oliveira Sobrinho é a personificação do bon-vivant. Aproveita hoje os dias pacatos no comando da TV Vanguarda para curtir a boa mesa e a vida à larga. Nesta entrevista, convidou PODER a adentrar seu “clube”, num restaurante do Leblon, serviu vinhos de sua própria adega e falou sobre televisão, gastronomia, jornalismo, eleições e ‘La Casa de Papel’

Por Dado Abreu fotos Juliana Rezende

Não faz muito tempo, José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, o Boni, caminhava sozinho pela rua Rainha Guilhermina, no Leblon, quando foi abordado por uma senhora furiosa. “Canalha! Você me colocou ontem no Jornal Nacional dizendo que sou fraudadora do INSS”, gritava a mulher com uma revista enrolada, que usava para atacar o incrédulo sujeito de cabelos brancos. “Mas, minha senhora, eu estou há 20 anos fora da TV Globo, não sei do que você está falando”, tentou argumentar Boni, sem antes levar mais alguns golpes e ser chamado de mentiroso. “Canalha! Mentiroso! Foi você sim.”

O relato que hoje arranca gargalhadas do velho Boni mostra o quanto sua imagem ainda está ligada à TV Globo. Por 30 anos, ele ocupou cargos de chefia na emissora carioca e foi responsável pela maior revolução de mídia no Brasil. Suas inovações passam pela grade de programação do jeito que nos acostumamos a conhecer, pela criação do Projac e da Central Globo de Produção e por seu maior legado, o “padrão Globo de qualidade”, que Boni insiste ser um “rótulo criado pela imprensa”. “Sempre fui intolerante e nunca aceitei nada menos do que o máximo. Daí veio essa expressão, que não nasceu lá dentro, como muitos pensam.”

Prestes a completar 83 anos, há três assuntos que ele versa com maestria: mídia, gastronomia e… medicina (?!). “Sou do tipo que prescreve remédio pra doutor”, brinca, ao receber PODER no Nido Ristorante, um italiano charmoso do Leblon chamado por Boni de “clube”, em referência a uma característica perdida pela boemia carioca. “No passado os bares e restaurantes tinham a capacidade de unir as pessoas. O primeiro foi o Antonio’s, aqui no Leblon, frequentado pelo pessoal da bossa nova, Vinicius de Moraes, Tom Jobim, Chico Buarque e outros menos votados como eu. Com o tempo isso foi se perdendo, mas alguns poucos lugares ainda carregam esse perfil.”

No Nido, Boni é uma espécie de sócio informal. Dá palpite sobre a decoração e a cor das paredes, sugere troca no cardápio, tem mesa cativa e também o privilégio de trazer de sua casa os vinhos de sua melhor safra – para PODER serviu um Château Pape Clément Blanc e um Gevrey-Chambertin 1er Cru Lavaux St-Jacques. O maître Ary, amigo dos tempos do do cliente famoso aos proprietários do estabelecimento. “É tudo em meu benefício”, diverte-se Boni.

PLIM-PLIM POR PLIM-PLIM

José Bonifácio de Oliveira Sobrinho tem todo jeitão, mas não é carioca. Nasceu em Osasco, na Grande São Paulo, em 1935, filho do dentista Orlando de Oliveira e da jornalista, psicóloga e escritora Kina de Oliveira. Ainda criança se apaixonou pelas notícias ouvindo as informações da Segunda Guerra num possante rádio de ondas médias e curtas no qual vivia grudado. “Na sala de casa tinha um quadro com o mapa-múndi onde meu tio Reynaldo tomava as lições. Ele me dava uma caixa de alfinetes de bolinhas e pedia para eu atualizar o status dos Aliados baseado no que eu tinha lido e ouvido. Era o jeito deles saberem se eu estava aprendendo”, lembra, advertindo que a fama de briguento que o acompanhou pela carreira deve-se a essa infância vivida em tempos bélicos.

A ligação com a Rede Globo começou em 1967, a convite do falecido Walter Clark. A dupla foi responsável por criar, dois anos depois, uma rede nacional, tendo o Jornal Nacional como âncora da empreitada. A ideia não entusiasmava os dirigentes da época, que preconizavam um cardápio com atrações locais. A grade atual de programação, com três novelas além do telejornal noturno, também foi elaborada após madrugadas de bebedeira entre os amigos. “A gente costumava chamar a televisão de ‘nossa namorada’. Era assim que nos referíamos quando chegávamos em casa pela manhã e nossas mulheres nos colocavam na parede querendo saber com quem estávamos. Dizíamos que era com ela, a nossa namorada.”

Anos depois, a amizade em cores foi abalada quando Clark, após um desentendimento com Roberto Mari-nho, todo-poderoso da TV Globo, acabou demitido. “O Walter queria que eu tivesse saído com ele, mas aquela era nossa última chance de fazer uma rede nacional como havíamos planejado. Tínhamos esse combinado”, conta, lembrando as passagens insatisfatórias de ambos por quase todas as emissoras concorrentes.

Boni entrou na Globo aos 32 anos, como diretor de programação e produção, passou depois à superinten-dência da área, respondendo também por engenharia e comunicação, até ser nomeado vice-presidente de toda parte operacional da empresa. É dele a famosa vinheta do plim-plim, a música de abertura do futebol, o modelo “tipo exportação” das telenovelas e outras dezenas de criações bem-sucedidas como os programas Globo Repórter, Fantástico e a melhor fase do humor televisivo brasileiro com Viva o Gordo e TV Pirata. Em 1997, deixou a emissora, mas não a desligou de vez de sua programação porque, desde 2003, é sócio e presidente da TV Vanguarda, afiliada da Rede Globo com 46 canais no Vale do Paraíba, no Estado de São Paulo, onde o empresário octogenário bate o cartão toda quarta-feira e atua como “palpiteiro-mor com direito à palavra final”.

“Jornalismo é o que me encanta. Não tenho mais paciência para o conteúdo enlatado de entretenimento, que caiu na mesmice, do mesmo jeito que eu o deixei, e não tem mais espaço na grade de uma televisão moderna”, opina, sem antes tecer duras críticas também ao conteúdo noticioso apresentado por boa parte das emissoras. “O jornalismo precisa ser revisto, não na sua qualidade, mas na sua estratégia. É muita embromação. Quando cai uma garoa em São Paulo eles resolvem entrevistar São Pedro. Não dá.”

Com o jornalismo em pauta, a cobertura das últimas eleições presidenciais é colocada à mesa. Qual a avaliação de um dos notáveis da comunicação brasileira sobre a corrida com obstáculos de fake news que terminou com a vitória de Jair Bolsonaro? Pausa no papo. “Vamos pedir uma entradinha?”, propõe Boni, emendando num encorpado gole de vinho.

Simpático, é nessa hora que o entrevistado brilha. Diverte-se como um cozinheiro criando pratos, aponta o cardápio em fatias e sugere “mudar um pouquinho” o menu – as vantagens de um clube – ao garçom. “Aqui não é como nos Estados Unidos onde tem aquela coisa chata de ‘no substitute’ (‘sem substituição’)”, brinca. A escolha fica para o trio de pastas que Boni altera e mexe como massa que não pode empelotar. “Tira o cacio e pepe e coloca o à matriciana. Pode ser? Não, espera. Faz o seguinte, traz um ravióli di zucca, aquele outro de funghi e tartufo com mascarpone e, se o dono concordar, um espaguete al pomodoro.” Do outro lado do salão, Nardino, o proprietário, consente e sorri. O chef veneziano Rudy Bovo, na cozinha, também há de concordar.

“Onde estávamos?”, pergunta. Eleições. Para Boni, de forma geral as emissoras de TV se comportaram imparcialmente em suas coberturas, como prevê a cartilha. Ressalva feita para explicar a aversão por grande parte do público, seja de direita, centro ou esquerda, à Globo, numa pecha que acompanha a emissora carioca desde os tempos da ditadura. “Vi uma preocupação importante de neutralidade por parte da Globo. Apenas não gostei das entrevistas do Jornal Nacional”, assume. “Pareciam um tribunal de inquisição em que os candidatos se apresentavam diante de um fórum sem juiz e sem defesa. E nós sabemos que quem julga está sujeito ao julgamento”, recorda o homem que há quase 50 anos, com Armando Nogueira, outro célebre da imprensa nacional, desenhou o JN.

Embora seja assumidamente adicto em conteúdo jornalístico, o olhar atemporal do executivo de televisão mais famoso do Brasil contraria aqueles que preveem o fim da TV aberta em tempo de popularização dos serviços de streaming como Netflix e Amazon Prime. “Os grandes produtores de conteúdo e notícia sobreviverão a qualquer meio de comunicação que possa aparecer. Os exibidores, sim, terão de mudar e já estão mudando”, comenta Boni, apontando as novelas da Globo como uma vantagem competitiva. “É um produto único no mundo, que vai seguir como a espinha dorsal da televisão por um bom tempo.” O vaticínio tem embasamento. Uma história que Boni gosta de lembrar ocorreu na época de Mulheres de Areia, de Ivani Ribeiro, produzida pela Globo em 1993. Na Rússia, a novela foi tão popular que o presidente Boris Yeltsin programou o último capítulo para o dia das eleições, a fim de desestimular que os eleitores viajassem, forçando-os a ficar em Moscou para votar.

Boni ainda lembra com carinho esse e outros causos novelísticos. Tamanho apreço pelas tramas o impede, inclusive, de apontar as novelas de que mais gosta. “Com muito sacrifício, acabei selecionando 25 para o meu livro (‘O Livro do Boni’, Ed. Casa da Palavra)”. Ainda assim, ele tem deixado aos poucos os folhetins de lado. Zapeou. Prefere se debruçar em maratonas de séries deitado no sofá de seu apartamento em São Conrado, no Rio, como qualquer mundano telespectador. “Adorei ‘Mad Men’, ‘House’ e essa outra que fez enorme sucesso”, revela enquanto faz força para lembrar de ‘La Casa de Papel’. “A última que eu vi e gostei foi ‘Billions’. Você viu? Muito boa.” Fica a dica.

Enquanto degusta o prato principal, paleta de cordeiro – “três para cada um, por favor” – com batatas coradas, Boni revela quem são os profissionais da TV aberta que têm chamado a sua atenção. “Fizemos recentemente o filme do Chacrinha (a cinebiografia Chacrinha: o Velho Guerreiro) e eu fiquei muito impressionado com o Eduardo Sterblitch, achei ele fora de série. Também gosto muito do Marcelo Adnet, embora falte para ele texto e direção.” Para além do humor, seu escolhido é Tiago Leifert, cria da sua TV Vanguarda, “que não é exagerado e tem humildade fundamental para um apresentador”.

“Eu ainda assisto bastante televisão. As pessoas acham que eu deixei a Globo porque estava cansado desse mundo. Não é verdade. Foi a Globo que cansou de mim. Entendo, normal. Hoje me sinto mais feliz sem ter que discutir com ninguém o que quero fazer. E sem contar que sobrou mais tempo para poder viajar, comer, beber bons vinhos, fazer amigos e colecionar essas histórias”, celebra, antes de fechar o papo com um provérbio espanhol. “Más sabe el diablo por viejo que por diablo.” Preciso.

Ary, a sobremesa, por favor. Peça ao chef para tirar a canela do strudel de maça.

PITADA DE BONI

Com a mesma paixão com que conversa sobre televisão, Boni fala sobre gastronomia. De restaurantes renomados a botecos bacanas, sabe de tudo. Dá água na boca. Autor de dois guias gastronômicos em parceria com o amigo Ricardo Amaral (Guia dos Guias e O Rio É uma Festa!), o gourmet prepara agora uma terceira publicação, esta com 100 das suas receitas simplificadas, a ser lançado no ano que vem. Inclui aí sua concorrida paella. “O melhor lugar para se comer é na Espanha. Em Madri tem o DiverXO, do chef David Muñoz, que eu considero o melhor restaurante do mundo”, conta. “Tóquio também é especial porque tem uma infinidade de lugares sensacionais, inclusive ótimos restaurantes franceses.

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