PODER analisa a nova percepção da masculinidade que enfrenta uma encruzilhada com o fim do protagonismo

A encruzilhada masculina || Créditos: Getty Images

Oprimido entre a projeção mítica do eterno herói e a perda de papel de protagonista no trabalho e em casa, o homem enfrenta a encruzilhada. Se a inversão de funções com as mulheres parece menos problema que solução para certos extratos, para outros o resultado é a reinsurgência do velho machismo. Ainda mais no Brasil, onde 52% das mulheres economicamente ativas sofrem assédio

Por Paulo Vieira para a Revista Poder 

Em sua única obra teatral, O Homem da Tarja Preta, de 2009, o psicanalista e escritor Contardo Calligaris coloca em cena um personagem solitário. Trata-se de um homem – ou melhor, “do” homem. Não o herói, o velho arcano masculino, o sujeito que considera a própria sobrevivência um tema menor, expondo-se assim sucessivamente ao risco. O personagem, que ao fim do monólogo se pergunta “que homem sou eu?”, está mais para o bilhão de homens que nasceram, nascem e seguem a nascer sob a sombra dessa figura arquetípica. “Ecce homo.” Eis o homem, e eis um homem dividido. Que não é, nem jamais será, um Aquiles enlouquecido a saquear Troia; e que tampouco é capaz de se livrar da projeção simbólica do herói a vergar-lhe as costas. Sua sina é fracassar na missão que lhe foi confiada desde sempre: emular os passos decididos do herói. Mas há um agravante nestas últimas décadas, já que o mundo não aceita mais tão bem a figura do Homem com H maiúsculo que até outro dia nos era familiar: o pai provedor da casa, o chefe, o líder inconteste. Homens dividindo as tarefas domésticas com as mulheres, ou assumindo papéis outrora femininos, algo hoje comum em certos extratos, ainda causam estranhamento no Brasil. Se no Japão e na Coreia do Sul a licença-paternidade se estende por até 52 semanas, no Brasil, que concede cinco dias (em casos especiais, 20), a conversa é mais embaixo, e qualquer avanço nesse campo parece virar uma indesejável “questão de gênero” – vide o menino veste azul/menina veste rosa da ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos em pleno 2019. “Homens com menos capital intelectual são tradicionalmente mais machistas. Se esse homem não consegue se afirmar dentro da sociedade, tem dificuldade para ter uma relação mais igualitária em casa”, diz a psicanalista Malvina Muszkat, especialista em mediação familiar e autora do livro O Homem Subjugado – O Dilema das Masculinidades no Mundo Contemporâneo (Ed. Summus), que em sua atividade clínica já atendeu muitas mulheres vítimas de violência. “Mas quando adquirem esse capital intelectual, tornam-se mais dispostos a compartilhar a vida doméstica”. Malvina também acredita que “os homens são induzidos a pensar que são fortes, que não podem falhar, inclusive em relação à sexualidade”. “As famílias têm dificuldades em criar seus filhos homens para serem ternos, delicados”, completa. Embora de maneira geral ainda sustente os pressupostos do que dramatizou em 2009, Contardo Calligaris atualizou bastante sua posição sobre a “jornada do homem” nestes anos. Hoje ele não tem dúvidas em afirmar que a sociedade ocidental, “desde o mito de Pandora até agora” é fundada na misoginia. “O personagem da minha peça ainda consegue se relacionar com o desejo. Mas não é assim com muitos homens, e não é preciso nem da psicanálise para constatar que não se relacionar com o desejo é um passo para a violência.”
ONE BILLION
É certamente difícil para um millennial, quanto mais para alguém da geração Z, não ver exagero na recriação do ambiente corporativo dos anos 1960 e 1970 em uma produção recente como, por exemplo, na série Mad Men. Não apenas pelo consumo irrestrito de álcool e cigarro, quase uma idiossincrasia cenográfica de tão ululante nos episódios, mas pela relação de dominação sexual explícita – às mulheres cabia apenas o papel de secretária e/ou amante. Ainda que fosse direito legal do homem em algumas sociedades matar caso tivesse sido traído pela esposa, o enredo de Mad Men soa datado demais. Parece muito mais verossímil que um chefe mafioso assassino aplaque seus dilemas de consciência no divã, como faz Tony Soprano na série Família Soprano. Sem embargo, o glamour servil das agências de publicidade da avenida Madison nova-iorquina de Mad Men é, à luz de alguns dados, bastante pertinente. O Ministério Público do Trabalho do Brasil estima que 52% das mulheres economicamente ativas do país já foram vítimas de assédio sexual; em linha com isso, uma em cada três mulheres no mundo, segundo a campanha mundial One Billion Rising, foi ou será vítima de violência durante sua vida. É claro que muitos progressos houve, já que os espaços de liderança nos negócios e na vida pública que a mulher galgou eram claramente impensáveis décadas atrás.
Mas a discrepância que existia e ainda existe seguem a justificar as ações afirmativas que visam diminuir o gap entre homens e mulheres em cargos de comando. Luiza Trajano, controladora do Magazine Luiza e ativista desse tema, estima que haja apenas 7% de mulheres nos conselhos de empresas com ações na bolsa, consideradas aí as herdeiras desses negócios. Ela já disse que, apenas por “meritocracia” seriam precisos 110 anos para equilibrar a balança. Não que essas ações estejam livres de distorções – e extorsões. A julgar por uma série de reportagens do jornal Folha de S.Paulo, que ensejou a abertura de inquéritos pela Polícia Federal, a cota mínima obrigatória de 30% de candidatas mulheres a cargos eletivos parece ter sido a ferramenta preferencial para distribuição fraudulenta de dinheiro público para dirigentes – homens – do PSL. Um deles pode estar no ministério de Bolsonaro. Com o atual presidente da República, aliás, que praguejou em seu discurso de posse contra os grilhões do “politicamente correto”, o papel da primeira-dama parece voltar a ser bastante secundário, na linha do “recatada e do lar” que caracterizou a mulher de Michel Temer, Marcela Temer.
Depois de fulgurar na cerimônia de posse do marido atuando como intérprete para surdos do que ali foi dito, Michelle Bolsonaro imergiu. Pode ser que o naufrágio econômico da gestão Dilma Rousseff, primeira presidente mulher do Brasil, tenha ajudado a rebaixar as expectativas em relação à presença feminina na política. Hoje, dentre os 27 governadores, há apenas uma mulher, Fátima Bezerra (PT), no Rio Grande do Norte. Trata-se de um downgrade em relação a 2006, quando foram eleitas Yeda Crusius (PSDB), no Rio Grande do Sul, Ana Júlia (PT), no Pará, e Wilma de Faria (PSB), no Rio Grande do Norte. Sabe-se que determinar o sexo dos anjos é uma questão proverbialmente insolúvel, mas intuir que é muito homem o Deus “acima de todos” do lema de campanha de Bolsonaro – e quem sabe o fundamento primeiro de uma futura teocracia à brasileira – é pertinente no atual estado de coisas. Que Ele, ou melhor, Elx, seja Elx quem for, nos tenha em boa conta.
“Os homens são induzidos a pensar que são fortes, que não podem falhar, inclusive em relação à sexualidade. As famílias têm dificuldades em criar seus filhos homens para serem ternos, delicados”
MALVINA MUSZKAT, PSICANALISTA

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