POR FÁBIO DUTRA FOTOS PAULO FREITAS para Revista PODER de junho
–Alô, Trajano?! Estou ligando para combinarmos onde iremos nos encontrar, tenho aqui uma sugestão, mas pode ser aí pela Mooca se o senhor preferir.
– Eu ainda moro na Vila Madalena, essa história de que me mudei e estou completamente falido é cascata do livro. E não é a única! – gargalha do outro lado da linha.
José Trajano é assim, um personagem divertido que remete a uma época menos sisuda, um remanescente inteirão daquela boêmia gozadora que Ruy Castro tão bem documentou em seus livros, como Ela É Carioca, por exemplo. Com vasta trajetória pela imprensa nacional, tendo trabalhado em revistas históricas como a Repórter, de pequena, mas notável duração, na imprensa alternativa e engajada, como a publicação EX (cujas páginas foram orgulhosamente responsáveis por trazer à tona o questionamento sobre a versão oficial de suicídio para a morte de Vladimir Herzog, jornalista da TV Cultura assassinado nos porões da ditadura), e editor de esportes em algumas das maiores redações do país, como a da Folha de S.Paulo, foi a televisão que tornou o Zé, como os amigos o chamam, uma celebridade, ainda que isso não deva soar tão bem a seus ouvidos. PODER pôde conferir o prestígio durante a inauguração do Instituto Moreira Salles da avenida Paulista, que reuniu o PIB, a turma das artes e um ou outro político no fim de 2017: entre tantos convidados vips e num ambiente pra lá de blasé, ele era interpelado a cada passo, teve até selfie. Talvez daí venha o sucesso imediato do lançamento de seu mais novo livro, Os Beneditinos, uma ficção saborosa em primeira pessoa com traços autobiográficos. Trajano se mostra saudosista, diz que vendeu seu apartamento para descolar uns trocados e agora mora de aluguel na Mooca, o bairro paulistano que mais se parece com a Tijuca em que se criou no Rio, e que tantas reminiscência sobre os tempos do eixo Colégio de São Bento-Campo do América/RJ – extremamente bem descritas – o fizeram reunir os velhos amigos para um campeonato de walking football, um esporte para veteranos que é sucesso na Inglaterra. Não dá pra saber o que é verdade e o que não é – e quem se importa? Por conta dessa aura boêmia, do tamanho do convidado para o esporte e para o jornalismo, abrimos uma exceção para fazer nosso primeiro almoço noturno, digamos assim. Fomos mesmo perto da casa dele, mas na Vila Madalena, no agradabilíssimo Sabiá, onde é habitué e muito paparicado pelo staff. No cardápio, mais vinho Periquita do que comida, como reza a cartilha da boemia.
Se no livro a nostalgia dá o tom, na vida Trajano não parece gostar de olhar no retrovisor. “Cara que fica achando que no tempo dele é que era bom e nega o presente está perdido. Claro que tem lembrança boa e claro que tem jovem babaca – mas está cheio de velho babaca também!”, sustenta. Foi esse um dos motivos para ter decidido abdicar do cargo de diretor de jornalismo da ESPN Brasil, emissora que fundou nos anos 1990 e que marcou época pela originalidade da abordagem do esporte na televisão brasileira ao misturar história e cultura e liberar os comentaristas para se expressarem sem a pasteurização que é praxe na maioria das emissoras. Em 2012, ele passou a ser apenas prestador de serviços como comentarista, tendo acertado ser demitido – rescisão que prova ser lorota aquela história de falência. “Quando você é fundador tende a se apegar ao romantismo dos primeiros tempos, isso atrapalha. A emissora cresceu e precisava de novas visões, eu já estava por aqui e era hora de encerrar o ciclo”, explica, sobre ter passado o comando ao pupilo João Palomino, com quem hoje é rompido. “Acho que ele não foi correto comigo na saída, me ligou no dia em que ocorreu, eu não atendi e depois não disse mais nada, nunca mais falamos, foi esquisito.”
No auge da polarização política em 2016, Trajano, que nunca escondeu ser brizolista e ser contra o impeachment, subiu no palanque de Fernando Haddad, do PT, e discursou, o que não agradou em nada os gringos da Disney, dona da emissora. “Foi engraçado porque no outro dia sabiam exatamente o que eu tinha dito e eu não lembrava”, faz troça. A gota d’água foi alguns dias depois, quando criticou a produção da casa ao vivo por ter trazido o humorista Danilo Gentili, famoso pelo humor politicamente incorreto e que já foi processado por uma piada que fazia menção à violência sexual, na mesma semana em que o país estava em choque com a notícia de um estupro coletivo de uma menor de idade numa favela carioca. Ele concorda que talvez tenha dado os motivos que os partidários de sua demissão queriam, e vai além: “Desde que saí da direção foram mandando embora aos poucos os profissionais que eram identificados comigo, uma coisa de ‘sob nova direção’, e me tirar estava sempre no horizonte”, acredita. “Aliás, todo restaurante que mete uma placa de ‘sob nova direção’ se lasca, sempre digo que é melhor não botar a placa!”, gargalha. Teve sim o período de melancolia e ainda dá pra sentir alguma mágoa, mas ele decidiu tocar em frente com frescor de garoto. Se veio para São Paulo em 1975 meio na doida, com escala em Londrina – sem espaço nas redações cariocas, aceitou o convite de uma turma que estava lançando um jornal no Paraná e saiu nove meses depois para morar e trabalhar na redação-república do EX na Vila Romana –, e depois embarcou num projeto de tevê esportiva do zero tendo passado a vida fazendo jornal impresso, não seria um divórcio sofrido a afundá-lo de vez na depressão. São tempos digitais e ele entrou com tudo. Pode-se dizer que sua atividade profissional na ficha do consultório médico pode ser preenchida como youtuber se desejar. O nome do canal que criou para os programas que grava em seu apartamento com uma equipe de egressos da ESPN se deve a uma polêmica com o blogueiro Reinaldo Azevedo. Indignado por ter sido citado pelo comentarista, Azevedo passou uma semana no ataque, sempre o chamando de “Ultrajano”. Ele adorou e adotou.
ADORÁVEL RABUGENTO
Há ainda espaço e público para Trajano na televisão, claro, e ele está no ar na TVT com Papo com Zé Trajano – que tem mais audiência do que a ESPN mesmo repercutindo menos – e no Canal Brasil com Bonde do Zé. No canal Ultrajano da internet, faz o Tabelinha, com Claudio Arreguy, um clássico programa de comentários sobre o noticiário esportivo, e o Na Sala do Zé, com vários convidados em seu apartamento falando sobre música, literatura, futebol e o que mais convier. Recentemente, em uma noite em que recebia amigos em casa, o porteiro informou que o senhor João Roberto Marinho estava subindo. Ele achou que era troça. Atendeu a porta e ficou surpreso: era o próprio. Muito cortês, Marinho, vice-presidente do Grupo Globo, disse que já conhecia o apartamento, pois tinha assistido a entrevista com o ex-presidente Lula pelo YouTube e o parabenizou pelo bom trabalho. O mal-entendido foi desfeito rápido: o economista Eduardo Giannetti, morador do mesmo prédio, era o anfitrião correto. Trajano aproveitou para lembrar uma dívida de aposta sobre a vitória de Marina Silva nas eleições de 2014 (Giannetti era o responsável pela formulação econômica da candidatura): “Fala pra ele te convidar quando for me pagar o jantar prometido”, brincou. A conversa toda se deu com Marinho pisando no capacho da entrada com os dizeres “Fora Temer!” em letras garrafais.
O tom ameno da conversa de corredor e a maneira elogiosa como se refere a Marinho, homem muito educado, soam estranhos para quem está acostumado com a persona televisiva que ele criou. Tido como mal-humorado e rabugento, no limite do caricato, era de se esperar que soltasse os cachorros contra o dono de uma emissora que se posiciona do outro lado do espectro político, ainda mais se lembrarmos que Trajano foi assessor de Darcy Ribeiro, cujas escolas estaduais de tempo integral que criou durante o governo de Leonel Brizola no Rio de Janeiro, os Cieps, ou Brizolões, foram duramente combatidas pela Rede Globo e por O Globo. Fica claro que ele segue o bom e velho debate de ideias, convicto e apaixonado, mas que preserva as pessoas – por mais desafetos que tenha criado pela vida e que tantas vezes já até o processaram. Ele não gosta de ex-jogador fazendo vezes de repórter – “se o cara é bom, pode comentar, mas ficar na beira do campo fazendo entrevista, jogador entrevistando jogador é palhaçada!” –, tem ojeriza a comentaristas brin-calhões – “Tiago Leifert e Alê Oliveira, por exemplo, estão atrás de ganhar dinheiro com entretenimento, o Alê, que entende de bola e poderia ser sério se quisesse, com eventos e cervejas e não sei o que, e o Leifert com BBB, programa de auditório, não faz sentido esse tom no espaço do jornalismo” – e muitas divergências políticas e editoriais com a grande imprensa. Mas foi incapaz de atacar pessoalmente qualquer de seus adversários mesmo após a segunda garrafa de Periquita estar devidamente enxuta e o Sabiá quase na hora de fechar as portas. Mesmo assim, quando perguntado sobre qual personagem da imprensa mais se assemelha a ele, não teve dúvidas em eleger João Saldanha, jornalista que também foi técnico do Botafogo de Nilton Santos e Garrincha e da seleção brasileira, comunista brigão que costumava ir tirar satisfação armado quando se envolvia em alguma polêmica. “Claro que ele teve uma história muito mais rica, mas gosto de pensar que temos algo em comum”, explica. “E a Thereza Bulhões, que foi casada com ele, assina embaixo!”, ri o americano fanático. O sábio Saldanha, porém, teve melhor sorte: era botafoguense.