Apontado como sucessor de Ivo Pitanguy, o cirurgião plástico passou 36 anos na cadeia, condenado por dois homicídios e outros crimes mais leves. Liberto desde 2016, agora aos 71 anos candidatou-se a deputado federal e finaliza uma autobiografia “nada autopiedosa”. Nesta entrevista, critica o sistema prisional, elogia o PCC, diz-se um homme à femmes e revela uma insuspeita simpatia por Geraldo Alckmin
Por: Fábio Dutra / Fotos: Paulo Freitas
Há algo de opaco nos olhos de quem passou pelo cárcere. Criminalistas experientes costumam dizer que é uma tatuagem eterna a provar que existe mesmo o tal contrato social, conceito que a sociologia usa para tentar explicar a razão da organização das comunidades pelo menos desde Thomas Hobbes – a privação de liberdade impõe o distrato. Com isso na cabeça imaginei encontrar um homem cheio de cicatrizes na alma no restaurante A Figueira Rubaiyat, local deste Almoço de PODER. Mas Hosmany Ramos é um homem vigoroso aos 71 anos, 36 deles passados na cadeia. De terno de três peças sob medida, unhas e dentes extremamente bem cuidados – sua marca registrada desde os tempos do grand monde –, penteado bem fixado e sapatos impecavelmente engraxados, ele chegou ao restaurante conduzido por motorista particular desde a clínica em que voltou a atender na avenida Brasil, em São Paulo – a mesma em que batia estetoscópio quando jovem.
Tão alinhado e com algumas intervenções estéticas no rosto, sobre as quais ele desconversa, de longe nos remeteu a um âncora de telejornal prestes a entrar no ar ao vivo. Não foi apenas em seu rosto que se nota uma interferência médica: uma cicatriz na palma da mão esquerda ululava durante sua gesticulação. Ele explicou que desenvolvera “mão de bispo”, uma incômoda situação em que os movimentos ficam prejudicados e, como é caso de anestesia local e ele é destro, operou a si mesmo para corrigir o problema. Esse é Hosmany Ramos, o médico-monstro do imaginário coletivo das décadas de 1970 e 1980. Inteligente, articulado e atualizado quanto ao novo mundo digital que surgiu enquanto ele penava – manobra seu iPhone 8 como garoto e tem até canal no YouTube – e também quanto ao avanço da medicina – ele agora combina cirurgia com a revolucionária doutrina ortomolecular, para “cuidar da lataria e do motor e garantir que o cara viva até os 120 com capacidade plena até para trepar (risos); veja como a Marília Gabriela parece ter 30 anos a menos por conta disso” –, ele divide seu tempo entre a clínica em São Paulo e no Tocantins, onde mora a mãe. E também se dedica à campanha para deputado federal pelo Avante, partido que disputa as primeiras eleições este ano. Sem tempo de TV, ele diz que a própria notoriedade pessoal em São Paulo, onde cumpriu a maior parte da pena, lhe garantiria “pelo menos 100 mil votos”. “Em vez de votar nos bandidos, melhor votar no ex-bandido que se regenerou”, ri.
Meu amor Bandido
Osmane Ramos, nascido em Jacinto, norte de Minas Gerais, no Vale do Jequitinhonha, uma das regiões mais pobres do país, radicou-se no Rio de Janeiro, onde estudou medicina na UFRJ. No terceiro ano do curso, perdido quanto aos rumos profissionais, trancou a matrícula e se mandou para uma temporada nos Estados Unidos. Lá, conheceu algumas figuras da elite nova-iorquina (ele cita nome a nome, sublinhando os sobrenomes), que o aconselharam a eleger entre a cardiologia dos transplantes – o primeiro procedimento bem-sucedido desse tipo era o assunto dos jornais da época – e a cirurgia plástica, liderada pelos brasileiros. Voltou à academia na Guanabara e se especializou em cirurgia geral antes de prestar a prova de admissão na clínica de Ivo Pitanguy, o midas do assunto. Passou em primeiro. E mudou o provinciano Osmane para Hosmany, com tônica na sílaba final tal qual a fonética do idioma francês e do sobrenome do chefe notável. Talentoso, sedutor e bom com as palavras escritas, logo foi informalmente alçado à posição de sucessor do mestre – que não tinha filhos médicos –, responsável por preparar e praticamente se encarregar das principais clientes da clínica de cirurgia plástica mais famosa do mundo. O Rio era uma boemia só e logo ele era figurinha carimbada das colunas sociais mais badaladas, como a de Ibrahim Sued – “sorry, periferia!” – n’O Globo. “Logo que terminava o expediente em sua clínica em Copacabana – especializada também em implantes de cabelos masculino –, Hosmany chegava em casa, um apartamento alugado na avenida Atlântica, no Posto 4, e tomava um uísque cowboy. Mais tarde, já arrumado e sempre exagerando nas roupas de marca, frequentava jantares, boates e festas”, escreveu Rena¬to Fernandes numa edição de 2007 da revista J.P, que foi às bancas com a atriz Cleo Pires, então neófita, na capa. Entre o Regine’s (o point da night) e as feijoadas na cobertura de Humberto Saade (fundador da Dijon, marca que revelou Luiza Brunet em suas campanhas publicitárias) no edifício Chopin, contíguo ao Copacabana Palace, Hosmany estava presente em tudo que era in. Nessa rotina frenética e ilustrada ele arrematou coração após coração com seu jeito quieto e observador combinado com a fama de gênio precoce que o precedia. Marisa Raja Gabaglia, que apresentou o Jornal Hoje, da Rede Globo, publicou o livro Meu Amor Bandido para documentar o romance quentíssimo que viveu ao lado dele. Vera Bocayuva, “prima do Marcelo Rubens Paiva”, não gostava de mencionar que fora apaixonada pelo médico mineiro depois que ele se transformou no marginal nacionalmente famoso, mas todo mundo se lembra. E Beki Klabin foi sua mulher e porta de entrada dos grandes salões por alguns anos – relacionamento que terminou após um roubo em seu apartamento que as más línguas insinuavam ter sido obra dele. De novo Fernandes na J.P: “Uma noite chegaram na cobertura da Vieira Souto, em Ipanema, e um ladrão havia roubado todas as joias de Beki e absolutamente nada de Hosmany. Beki nunca fez um boletim de ocorrência, mas no dia seguinte mandou trocar todas as fechaduras da casa e Hosmany nunca mais entrou lá. Depois disso, dizia a todos que ele era o ladrão. Ninguém na sociedade carioca acreditava”. O cirurgião, tomando vodca com gelo e incomodado com a versão, apresenta a sua: “O ladrão se aproveitou da obra no prédio ao lado que facilitava a entrada pela varanda da cobertura da Beki e entrou com uma faquinha de cozinha; eu acordei e lutei com ele – sempre fui bom de artes marciais – e ele fugiu levando as joias que ela havia usado naquela noite, coisa leve do dia a dia que estavam na cômoda para a empregada guardar no dia seguinte. O cofre estava aberto e o prejuízo podia ser bem maior, tenho comigo que salvei uns US$ 4 milhões, por baixo. E a Beki nunca me acusou”.
Hosmany e os Manos
Hosmany foi condenado em 1981, segundo consta, por roubo de aviões, contrabando de automóveis e pelos assassinatos de seu piloto pessoal, Joel Avon, e do estelionatário Firmiano Angel, mas ele desconversa quando entro no assunto. Prefere sempre ressaltar sua capacidade de pagar pelo que fez e de se regenerar num sistema que não privilegia isso: “Naquela época, naquelas rodas, quem não usasse drogas era um outsider: mergulhei nesse mundo e ficava acordado a noite toda, dava uma cheirada de manhã e ia pro consultório. Meu organismo aguentava, mas fui perdendo a noção da realidade e acabei cometendo os erros que me marcaram a vida. Foram só três meses: comecei essa rotina em setembro e em novembro eu estava preso”, lembra. Será que ele se arrepende? “Fui muito sacaneado pela minha notoriedade, vivi no inferno. Mas pude ajudar muita gente também pelos meus conhecimentos num lugar em que falta tudo e o ser humano é tratado igual bicho. Sempre digo que a cadeia no Brasil é uma maneira muito cara de piorar um ser humano. Se eu me arrependo? Ora, com tudo que eu tinha, e sendo apontado pelo Pitanguy como sucessor, imagina o que eu poderia ter atingido profissionalmente”, admite.
A Constituição Federal veda a prisão perpétua, ao passo que o Código Penal impõe o limite de 30 anos alijado da sociedade para qualquer cidadão. Hosmany ficou 36. Ele reclama e cita as sociedades europeias em que cumpriu pena onde o juiz que julga é o mesmo que solta – “ao contrário do Brasil, onde a pena vence e o cara resta lá esquecido, como tantos que conheci”. Em 1996, exercendo direito de saída temporária, fugiu. Foi recapturado por ter participado de um sequestro que lhe ocasionou nova condenação de cerca de 30 anos. Participou de fugas, respondeu a vários inquéritos e acabou por lograr a liberdade forçada quando, em 2009, durante outra saída temporária, ele se recusou a voltar para a cadeia pela imprensa e escafedeu-se. Tinha manifestado a vontade de se apresentar aos juízes da Vara de Execuções Criminal na data estabelecida para retornar ao retiro forçado, mas, diante da negativa dos magistrados de o receberem, se mandou. Foi localizado na Islândia, procedente da Noruega (país em que mora seu único filho, um jovem criador de uma startup que negocia bitcoins), usando o passaporte do irmão. Após breve período nas cadeias locais em que tinha quarto privativo e telefone à disposição (que utilizou para dar entrevistas para a televisão brasileira a elogiar o sistema carcerário islandês em oposição ao inferno brasileiro), foi extraditado. Dessa vez foi parar em Mirandópolis (SP), numa cela superlotada em que dormia, já idoso, encostado na latrina e tinha que acordar e se afastar caso alguém precisasse se aliviar. Dividia o sofrimento com diversos detentos débeis, até mesmo um cadeirante. “Cara, em toda cadeia que passei, e foram tantas, vi pichado ou ouvi a terrível frase ‘de alguma maneira, em algum lugar, alguém vai pagar por este sofrimento’. Um preso custa sete salá¬rios mínimos ao Estado para sair de lá de dentro cheio de violência no coração. Falam mal do PCC, mas acabaram com os estupros e homicídios indiscriminados, eliminaram o crack e instauraram um poder tal que hoje os carcereiros nem têm mais acesso às galerias, e num lugar onde o filho chora e a mãe não ouve”, sustenta, voz mais alta e olhar opaco. “Quantos companheiros de cela desistiram de pedir auxílio médico para não ter que passar pela revista vexatória desnecessária e agressiva? Tenho bom conceito nos presídios porque operei, tratei e mediquei, mandando listas de materiais aos diretores para providenciar, em locais em a que os médicos não tinham acesso ou não eram chamados e que a polícia entrava para sufocar motins a bala e a porrete. Isso não pode dar certo.”
Para defender essas ideias, candidatou-se a deputado federal pelo Avante. O partido apoia Ciro Gomes, mas Hosmany se diz propenso a votar em Geraldo Alckmin – paradoxalmente o governador que esteve mais tempo no comando do estado de São Paulo, responsável pela administração do sistema prisional que critica [até o fechamento desta edição, o primeiro turno ainda não havia sido realizado]. Seguro da vitória nas urnas, passa os dias a finalizar sua auto¬ autobiografia “nada autopiedosa” a ser lançada ainda este ano pela Geração Editorial, a mesma do livro A Privataria Tucana e da biografia de José Dirceu. Ele fala com respeito de admiração de Luiz Fernando Emediato, editor e publisher da Geração: “É um intelectual à moda antiga, não mero comerciante, e acreditou em mim desde 1996, quando publicou meu outro livro, Pavilhão 9 – Paixão e Morte no Carandiru”.
Depois de tantos anos encarcerado, pergunto ao notório conquistador como anda o seu estado civil. Ele apenas sorri, debochado: “Estou casado com Brasília!”, diverte-se, fazendo alusão à campanha. Mas será que dentre tantas conquistas houve algum genuíno grande amor a sacudir suas entranhas? Ele rememora Marisa Raja Gabaglia – que o visitou e se correspondeu com ele já recluso até o fim da vida –, desconversa aqui e ali, mas se resolve rápido a não contrariar sua personalidade de homem sem meias palavras. Bate forte: “Sou um sujeito de muitas mulheres e poucos amores”. Nessa hora, seus olhos brilham.