1. Uma boa dose de utopia temperada com alguma ingenuidade paira no ar. Algumas pessoas vêem no “capitalismo” a essência do mal e da perdição do homem. Acreditam que a crise que se instalou na economia mundial é o começo do fim da hegemonia do “capitalismo” americano. Esta começou a criar-se depois da Primeira Guerra e consolidou-se depois da Segunda. Estaríamos, agora, no início de uma nova forma de organização social onde a convivência entre os homens será mais harmônica e cada um poderá realizar livremente suas potencialidades. Em lugar da competição desenfreada e do egoísmo exacerbado produzidos pelo “capitalismo”, emergirá uma nova forma de organização social, onde a cooperação e o altruísmo que são as tendências naturais do homem, quando não corrompido por ele, produzirá a felicidade geral. A falta de imaginação chama isso de “socialismo”. É claro que o objetivo dessa construção é generoso. Cada vez, entretanto, que um fino cérebro peregrino “inventou” uma “nova” fórmula para realizá-la, algum brutamonte tentou implementá-la com um final sempre trágico.
2. O “capitalismo” não é uma coisa. É o resultado provisório de um processo de seleção histórica que responde à eterna busca do homem por uma organização social que seja compatível com a liberdade individual e tenha eficácia produtiva capaz de permitir-lhe gozá-la. Ele tem defeitos: é instável e produz desigualdade, o que sugere que continuará a evoluir. Certamente não é perfeito mas, certamente, também, é mais adequado às necessidades do homem do que qualquer um dos sistemas “inventados” até agora para substituí-lo.
3. A crise atual é a 46a. que a economia americana registra desde o fim do século XVIII. De cada uma delas (e algumas muito profundas como a de 1929) ela saiu um pouco melhor. E é o que provavelmente vai acontecer agora, porque os EUA continuam o centro das “inovações”. O mundo emergente (inclusive o Brasil), graças ao exagerado consumo americano, melhorou sua estrutura produtiva e o centro de gravidade da atividade econômica mundial se desloca em sua direção. É ilusão, entretanto, supor que ele vai transformar-se, amanhã, na locomotiva do planeta. Isso só acontecerá quando ele for o criador das inovações. Por enquanto, e por muito tempo ainda, será apenas copiador, particularmente a China.
4. O sabor ingênuo da utopia é exemplificado no voluntarismo construtor de uma nova “moeda reserva”. Por que o Banco Central do Brasil não compra papéis do Banco Central Chinês e este papéis daquele, para substituír os bônus do Tesouro dos EUA que ambos têm em suas reservas? Eles estão livres de fazê-lo. Não precisam de autorização dos EUA. Não o fazem apenas porque suas moedas não têm nem a liquidez nem a confiança das outras nações no poder liberatório do dolar, que são as condições fundamentais de uma “moeda reserva”. A “moeda reserva” é uma instituição social que emana da confiança. Não pode ser criada por um ato de vontade: será resultado de uma evolução histórica.
Antonio Delfim Netto