Criadora de série inspirada nos crimes de Roger Abdelmassih fala do desafio de escrever ficção a partir de histórias reais

Roger Abdelmassih // Divulgação

Como a vida de um escritor se reflete no seu texto? Maria Camargo ensaia uma resposta. “Eu já plantei árvore, escrevi livro, peguei onda, dancei em gafieira, dirigi uns filminhos, amei, desamei e amei de novo, perdi muitas pessoas queridas, mudei de casa, de cidade, tenho filhos, casa, cachorros, problemas de família e prazeres em família. Tudo isso está dentro de mim e aparece na escrita”, revela.

Roteirista desde 1998, ela assina criação e redação final da aguardada série “Assédio”, da TV Globo, ainda sem data de estreia prevista. Escrita em dez episódios, a produção é livremente inspirada no caso de Roger Abdelmassih, médico especialista em reprodução assistida condenado a 181 anos de prisão pelo estupro de pelo menos 37 pacientes, violentadas muitas vezes sob efeito de sedativos.

A pesquisa para a série – baseada no livro “A Clínica: a Farsa e os Crimes de Roger Abdelmassih”, do jornalista Vicente Vilardaga – incluiu reportagens da época, relatos e documentos judiciais. “O conhecimento profundo dos fatos e suas versões é, em casos assim, essencial para o processo de construção da dramaturgia, ainda que o resultado final seja uma história ficcional”, diz a roteirista. “Uma história que nasce da vida real, mas que não é a vida real. Essa preocupação, de equilibrar fatos e invenção com responsabilidade, foi permanente até o fim da escrita.”

Se ao escrever o roteiro de um herói o desafio é mostrar suas fraquezas, para traçar o perfil de um criminoso uma das tarefas é encontrar o que há nele de humano. “Não se trata, é claro, de fazê-lo bonzinho, inocente ou minimizar seus horrores, mas de buscar as motivações e sentimentos que o levam, inclusive, a cometer as atrocidades que comete”, explica Maria.

“Caso contrário, ele se torna um vilão de cartum, que me interessa menos”, diz a autora. “Afinal, estou falando da natureza humana, que contém em si o melhor e o pior. Antes de falar sobre qualquer personagem, seja ele bom ou mau, preciso falar por ele, que acredita, obviamente, em si mesmo. Todo personagem tem que ter a sua verdade em cena. Ainda assim há, é claro, a responsabilidade do autor permeando tudo isso.”

As referências da escrita de Maria Camargo são muitas: vão da fotografia à filosofia, dos grandes romances russos às narrativas de aventuras. Entre seus mestres, ela cita pelo menos uma dezena de cineastas e roteiristas, “autores estupendos como Charlie Kaufman, Jean-Claude Carrière, Lucrecia Martel, Melissa Mathison, David Mamet, Michael Haneke”, mas um sobressai na sua lista. “Queria ter escrito cada uma das linhas que Billy Wilder escreveu”, confessa.

Em um momento no qual denúncias de assédio e de tratamento desigual de gênero na indústria do audiovi-sual ganham projeção no Brasil e no exterior, Maria Camargo acredita que o desafio ainda é longo para a equidade. “Essa é uma luta urgente, necessária e que exige empenho e fôlego”, diz a autora.

“Podemos falar de falta de oportunidades, menor visibilidade, falta de escuta, de desrespeito, de remuneração desigual. Mas devemos falar também de assédio, que nasce dessa relação de poder distorcida e adquire contornos tão graves e, infelizmente, muito comuns. Assédio é crime, e é muito bom que se fale exaustivamente disso”, afirma. “Quebrar o silêncio é o único caminho.”  (por Luis Costa para a revista PODER)

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