Criador do conceito do lulismo, o cientista político e ex-porta-voz de Lula analisa os movimentos que levaram ao impeachment – para ele “golpe por dentro da Constituição” – de Dilma e vê pouco espaço para a esquerda retomar o poder caso não faça o “movimento clássico”: juntar-se e conquistar a unidade
POR DADO ABREU FOTOS PAULO FREITAS
Em meio a prisões, reacionarismo e uma série de incertezas, o eleitor brasileiro está a pouco mais de três meses de vivenciar um dos pleitos presidenciais mais abertos e indefinidos das últimas décadas. A lógica que marcou as pregressas seis eleições, com a tradicional divisão entre um candidato petista e um peessedebista no segundo turno, nunca esteve tão fincada no campo do improvável, ao passo que a prisão do ex-presidente Lula, líder isolado nas pesquisas de intenção de voto, tonifica as condições para a formação de um horizonte especulativo. À vista disso, PODER sentou-se à mesa para almoçar – e tomar uma aula – com uma das poucas figuras capazes de interpretar todo esse cenário: o cientista político, jornalista e professor da Universidade de São Paulo (USP) André Singer, autor do recém-lançado O Lulismo em Crise (ed. Companhia das Letras), um quebra-cabeça do período Dilma (2011-2016) no qual decifra as variáveis que levaram ao impeachment – ou “golpe por dentro da Constituição”, segundo Singer – da ex-presidente.
“Me considero alguém que tenta compreender, da maneira mais objetiva possível, a política brasileira”, resume o professor, com a humildade de quem ensina aprender. “Claro que tenho as minhas posições e sei que elas me influenciam. Mas, na hora da análise, faço um esforço importante para separá-las daquilo que eu consigo enxergar. E além disso, caso a minha interpretação não faça sentido, estarei sempre disposto a me corrigir. Isso é algo que aprendi com meu pai e uso como um mantra.”
André Singer é filho do professor e economista Paul Singer, um dos fundadores do Partido dos Trabalhadores (PT), morto em abril deste ano, aos 86 anos, vítima de septicemia. Foi Singer, o pai, o principal responsável pelo DNA econômico da legenda vermelha ao defender a ampliação do mercado interno via inclusão social, conceito que seria colocado em prática décadas depois com o surgimento do lulismo.
Daí a conexão partidária entre pai e filho, pois foi André, herdeiro intelectual do grande Singer, o criador do termo que passou a definir, nas ciências políticas, o programa de governo iniciado com o ex-presidente Lula – e consequentemente seguido na gestão Dilma Rousseff – que busca diminuir a pobreza no Brasil sem a ruptura da ordem e do status quo.
“A essência do lulismo indica uma alteração sobre o que era a história do PT, que era um partido abertamente radical. E esse modelo se mostrou eficiente, porque apresentou benefícios importantes para as camadas mais pobres da população”, explica, antes de recorrer aos números do economista Waldir Quadros, da Unicamp. “Em 2002, por exemplo, era 24,1% da população em situação de miséria e essa proporção foi diminuída para 6,6% em 2014. Então deu certo.”
Do ponto de vista teórico, a principal ideia versada por André Singer enquanto degusta, pausadamente, uma posta de robalo assada no forno de barro do restaurante A Figueira Rubaiyat, remete ao alinhamento partidário dos três principais grupos políticos do Brasil – PT, MDB e PSDB. É esse o tema central apresentado em O Lulismo em Crise. Historicamente, segundo o autor, é baseado nessa formação que se organiza o sistema partidário nacional, com a presença forte de um partido popular, outro voltado para as classes médias e um terceiro, mais maleável, chamado por Singer de “partido do interior”, de viés clientelista. “Tenho a ideia de que existe uma estrutura de classes no Brasil que, em condições democráticas, se reflete na política dessa maneira.”
Tal alinhamento é uma das variáveis que o professor usa para explicar os motivos que levaram ao im-peachment da ex-presidente Dilma – “golpe”, ressalta entre uma garfada e outra. Na análise de Singer, a estabilidade da democracia depende do sucesso eleitoral do partido de classe média porque em momentos de realinhamento, “quando a população de baixa renda escolhe o seu representante”, o partido de classe média passa a ter enormes dificuldades em vencer as eleições e é atraído para uma posição de golpe, como ocorreu com a UDN, em 1964, e o PSDB, em 2016 – nesse contexto, o agora MDB teria desempenhado no processo contra Dilma Rousseff papel semelhante ao do PSD à época do golpe militar de 1964.
“Por isso que não acredito que o PT, mesmo com todos os problemas que atravessa, possa se transformar em outro tipo de partido nesse período de reestruturação. Ele ocupa um lugar que eleitoralmente é muito forte, de representação popular, e não faria sentido abrir mão disso”, ressalta.
A avaliação de André Singer sobre o Partido dos Trabalhadores carrega o conhecimento de quem já esteve do outro lado do balcão. Porta-voz da Presidência da República no primeiro governo Lula (2003-2007) e secretário de Imprensa do Palácio do Planalto (2005-2007), o cientista político é um dos principais intelectuais do partido, ainda que tenha decidido dedicar-se nos últimos anos exclusivamente à carreira acadêmica.
“A esquerda vem sofrendo derrotas importantes. Primeiro com o impeachment e depois outras duas em sequência, nas aprovações do teto de gastos e da reforma trabalhista”, avalia. “Nessa posição ela [esquerda] deveria adotar o que é tido como um movimento clássico na política que é o de se juntar e conquistar a unidade. Mas isso não está acontecendo”, conclui. Uma eventual chapa composta por Ciro Gomes (PDT) e Fernando Haddad (PT), ventilada em grupos de esquerda, seria então uma boa opção, professor? “É cedo para falarmos em nomes, sobretudo tendo em vista que o ex-presidente Lula decidiu manter sua candidatura, embora pareça pouco provável que ele tenha condições jurídicas de disputar [a eleição]”, diz, receosamente.
É com a mesma ponderação que Singer avalia o crescimento da direita – “extrema direita”, ressalta – e seu principal artífice, o militar da reserva e pré-candidato do PSL à Presidência da República, Jair Bolsonaro. “É um fenômeno novo no Brasil, difícil de mensurar. Acho que ainda não está bem compreendido e talvez tenha a ver com processos internacionais, pois não vamos esquecer que o presidente dos Estados Unidos [Donald Trump] também foi uma grande surpresa.”
Durante a sobremesa, André Singer deixa a desconfiança de lado quando convidado a analisar outro assunto que domina com a mesma lucidez que as ciências políticas: o jornalismo. Secretário de redação da Folha de S.Paulo entre 1987 e 1988, ele é há seis anos colunista do jornal que considera, como um ombudsman extraoficial, um periódico “sem simpatia pelo governo deposto”. “Diria que os grandes veículos tiveram uma espécie de simbiose com a Operação Lava Jato”, conta. “Em artigo publicado pelo próprio juiz Sérgio Moro, em 2004, ele diz, de maneira inequívoca, que a Operação Mãos Limpas [que visava esclarecer casos de corrupção na Itália durante a década de 1990] só deu certo porque fez uma aliança com os meios de comunicação”, lembra, observando que, no caso brasileiro, “ainda que tenha um efeito republicano, porque revelou um sistema de financiamento que vinha desde 1945 e envolve a participação entre empresas e estado, a Operação Lava Jato foi muito facciosa porque visivelmente se concentrou no ex-presidente Lula, no lulismo e no PT, o que fica claro na famosa exposição de PowerPoint do procurador [Deltan] Dallagnol, que praticamente passou recibo.”
Foi a última explanação do professor Singer antes de apressar-se para o próximo compromisso. Na mesa de doces do Rubaiyat o convidado de PODER se esbalda, talvez prevendo as dificuldades, nada doces, de lidar com a greve de professores e alunos pela qual passava a Universidade de São Paulo. Restou apenas um solitário macaron, ironicamente verde e amarelo como a camisa da seleção apropriada pelos entusiastas do impeachment.