“Mas muitos de nós buscamos a comunidade apenas para escapar do medo de ficar sozinho. Saber ser solitário é fundamental para a arte de amar. Quando podemos ficar sozinhos, podemos estar com outras pessoas sem usá-las como meio de fuga.” bell hooks
Sem sombra de dúvidas, a feminista negra norte-americana bell hooks foi fundamental para a conscientização e letramento racial e de gênero de milhares de mulheres negras em todo o mundo. Inclusive, mulheres que não são ou não se posicionam como feministas (e aquelas que também não saibam que são). A autora foi uma das minhas primeiras referências de leitura.
Sua partida precoce deixou o mundo todo estarrecido e com um sentimento de desamparo, exceto aquelas pessoas que levavam os escritos de hooks a sério o bastante para realmente se transformarem. Sim, porque a produção intelectual de hooks sempre foi ancorada na realidade que vivemos diariamente e com uma abordagem que toda e qualquer pessoa pode se identificar, apesar do refinamento acadêmico com que ela escrevia e pensava.
Aliás, é bom lembrar que uma das premissas do feminismo negro é a ruptura com a ideia de ser um acadêmico é algo definitivo na produção de saberes. Todas as feministas negras norte-americanas, de hooks a Patricia Hill Collins, passando por Angela Davis e Alice Walker, refutam esse trunfo raci-machista criado para desmerecer a potência dos saberes empíricos de nossas avós, bem como paralisar nossa percepção adquiridas com a vivência da realidade que não cabe em nenhuma teoria.
A versatilidade, a franqueza cortante e a tranquilidade com que hooks tratou nossas questões emocionais, que abriram uma abismo nas nossas subjetividades, justamente por serem atravessadas pelas opressões de raça, classe e gênero, podem ter muitas definições, menos as que tangenciam a ideia de patriarcal de amor.
Ao falar sobre de amor, bell hooks “salva” mulheres não brancas e até mesmo as mulheres brancas que buscam se desprender das armadilhas do machismo, da idealização ou romantização do amor real.
Ao falar sobre o amor, bell hooks foi peça fundamental na (trans)formação de muitas mulheres confinadas nas garras da rejeição do mercado afetivo, que propagandeia o amor mercantilista ou essencialmente excludente e pautado em uma lógica desumana
Muito me espanta a quantidade de pessoas que literalmente esvaziaram a discussão sobre o preterimento afetivo de mulheres negras ou de todas aquelas que não se encaixam no padrão de aceitabilidade do amor de mercado, dizendo que leram bell hooks e, pior, convertendo suas falas sobre o amor, que são completamente contrárias a lógica em que a sociedade vive, em cards de autoajuda ou em personificação do que Bauman chamou de “amor líquido”.
Honrar o legado de bell hooks é antes de mais nada avaliar pragmaticamente a colonização afetiva e comportamental a que fomos e estamos condicionados e que de um jeito ou de outro nos moldou. Isso porque bell hooks é pseudônimo visível de Glória Watkins mas, o seu pseudônimo oculto ou sublimar poderia ser CORAGEM.
Podemos inclusive dizer que hooks, assim como os grandes nomes do feminismo negro (seja internacional ou nacional), tem um relacionamento sério com o enfrentamento das opressões que as limitam, afinal, mulheres negras estão localizadas na base da pirâmide social e expostas ao extremo das desigualdades.
Então, o único lenitivo que poderia nos fortalecer e ser convertido em instrumento ativo de desarticulação de todos os efeitos das desigualdades seria o…amor.
Certo?
Sim, porém não é assim que a coisa acontece. Uma vez que estamos imersos na lógica do amor capitalista ou do amor líquido de Bauman, amar e ser amada fica muito distante da realidade de mulheres negras. E é aí que a coragem de bell hooks liberta, pois de maneira revolucionária ela politiza o amor e abre o leque de caminhos por onde nós, mulheres negras e não negras, podemos trilhar para colher o afeto que realmente nos transforma e pode transformar a sociedade.
Ou seja, hooks nos resgata da ilusão de que “um super homem pode nos restituir a glória” nos fazendo entender que amor é, antes de tudo, um exercício prático de irmandade e justamente por isso não pode estar condicionado a materialidade mundana. E justamente por isso temos outros caminhos, menos excludentes e, por consequência, menos violentos.
A partir dessa reflexão estrutural de sua produção intelectual, podemos repensar não apenas nossas relações, mas sobretudo nossas carências.
Minha experiência com bell hooks me levou a entender que o movimento do amor é de dentro para fora e que ele é pedagógico. Falando em pedagogia, o confronto de bell hooks com os deslizes machistas de Paulo Freire, foi uma das demonstrações mais bonitas do quanto ela vivia o que ensinava. Além de ser uma grande lição de diálogos para esses tempos de cancelamentos e polarizações.
Ao apurar a linguagem sexista presente nos livros de Paulo Freire, onde o autor referenciava “o homem” como experiência única de humanidade, hooks o chamou para o diálogo e foi prontamente ouvida. Freire se comprometeu a reavaliar o erro e suas obras se tornaram mais amplas para nós, mulheres
Enquanto lia Freire, em nenhum momento deixei de estar consciente não só do sexismo da linguagem, como também do modo com que ele constrói um paradigma falocêntrico da libertação – onde a liberdade e a experiência de masculinidade patriarcal estão ligados como se fossem a mesma coisa. Isso é sempre motivo de angústia para mim, pois representa um ponto cego na visão de homens que têm uma percepção profunda. Por outro lado não quero que a crítica desse ponto cego eclipse a capacidade de qualquer pessoa (e particularmente das feministas) de aprender com as percepções.” bell hooks em Ensinando a Transgredir
Entre todas as lições de hooks, essa é uma das mais necessárias para a atualidade: podemos e devemos discordar sempre. Mas quando o amor é uma prática, pautada na liberdade e no respeito ao outro, contrária a lógica mercantilista que nos coloca como opositores “naturais”, isso é feito de modo transformador.
Por essas e muitas outras ideias presentes em em 40 livros publicados, centenas de artigos, palestras e entrevistas que a colocaram como uma das mais importantes pensadoras do século XX, é preciso dizer: Viva bell hooks!