Todo mundo fala em responsabilidade afetiva tendo como ponto de partida o cuidado que o outro deve ter ao lidar com os sentimentos alheios. Mas como diria minha mãe, eu não sou todo mundo, então eu falo do lugar de quem tem a mais plena convicção de que devemos cuidar de nós mesmos sempre e para sempre.
Seria muito bonito viver em um mundo onde as pessoas são delicadas e cautelosas na lida com os sentimentos alheios, afinal, coração é casa com chão de cristal, qualquer abalo pode ser irreversível, irreparável e dói, como dói, dói demais!
Se vivêssemos em um mundo verdadeiramente dedicado ao exercício da expansão humana, seria compulsório a consciência de que todos devemos pisar macio nesse território tão sensível da afetividade, para não sermos facilitadores dos danos que provavelmente as pessoas infelizmente vão experienciar ao longo de suas histórias de vida. Dificilmente vamos encontrar pessoas que nunca rejeitaram ou foram rejeitadas por alguém em algum momento, em alguma situação em que estavam certas de que “ia rolar”. Isso é normal.
Mas os motivos dessas rejeições podem ser muito mais profundos e naturalizados a ponto de agravarem ainda mais essas dores. Em um mundo ideal, as pessoas escolheriam pessoas apenas por afinidades emocionais e intelectuais ou por desejos, opiniões e crenças compatíveis.
Entretanto, estamos muito longe de viver no mundo ideal. Na verdade, estamos na direção oposta a ele. No mundo ideal, por exemplo, não existiria racismo e outras opressões que afetam diretamente nossos hábitos e costumes, as decisões políticas, as expressões culturais, a economia e mobilidade social, a vida familiar e…obviamente, os relacionamentos todos. Todos? Sim todos. Se estamos falando em coisas estruturais, estamos falando em coisas que estão na base, no alicerce da construção social que conhecemos e vivenciamos. “Ah, mas eu não acredito em racismo” ou “ Amor não tem cor”.
Charcot, médico psicanalista e uma das primeiras referências de ninguém menos que o ilustre pai da psicanálise, Sigmundo Freud, tem uma uma célebre frase que eu adoro: “As coisas deixam de existir porque contrariam nossas amadas teorias”
Joice Berth
Ou seja, não é aquilo que você acredita ou desacredita que pauta o funcionamento do mundo e, sim, a maneira que as bases desse mundo foram forjadas. E entender essas dinâmicas, não apenas nos auxilia a viver melhor como nos permite pensar e principalmente repensar nossas escolhas, posturas, crenças e vivências, de hoje e de ontem.
Uma das crenças que precisamos pensar e repensar é sobre o amor e seus métodos de fazerem presentes. Esse que é o mais desejado e perseguido afeto positivo de que temos conhecimento, sofre distorções terríveis quando em contato com as questões mundanas que habitam e são naturalizadas em nossa sociedade. Todo mundo repete à exaustão que o amor não tem cor mas, são as mulheres negras que estão nas estatísticas de celibato definitivo e compulsório, conforme dizem os estudos e pesquisas acadêmicas. Mas para além dessas informações técnicas, é só passar um breve olhar pelos lugares em que você costuma interagir ou ouvir algumas histórias. Fica fácil constatar que se o amor não tem cor (e não tem mesmo!), as escolhas amorosas sim, tem cor e todos os padrões excludentes possíveis e imagináveis moldados por preconceitos variados. Ou seja, tomando como exemplo o caso da Natália Deodato, designer de unhas e ‘sister’ do maior reality show do país, podemos concluir que algumas categorias de mulheres, por estarem fora dos padrões de aceitação social, até são procuradas para “ficadas” e manifestações sigilosas de afeto, sobretudo com ênfase nas relações sexuais mas, não são cogitadas quando o assunto é relacionamento sério, construção de família e vínculos afetivos mais consistentes.
E isso é histórico, já que o casamento em si, não começa como uma percepção humana de que viver acompanhado por ser melhor e sim com a certeza de que essa é a mais certeira técnica de manutenção de propriedade e bens econômicos. E infelizmente, essa mentalidade está consolidada no nosso inconsciente coletivo, motivando escolhas totalmente alheias a afinidades e possibilidades de construir relações produtivas que culminam em crises e problemas diversos que acabam em separações traumáticas e bastante estressantes, que deixam sequelas que irão comprometer também nossas escolhas e resultados futuros.
Mas, isso, as pessoas só aprendem com o tempo e, às vezes, não aprendem nunca”
Joice Berth
Nesse cenário nada promissor, como cobrar pessoas para que tenham um comportamento afetivo que não seja nocivo, tóxico? Podemos cobrar mas, que garantia temos de que essas cobranças serão atendidas?
Por isso é mais prudente cuidarmos de nós, dos nossos sentimentos, emoções e carências afetivas. É prudente entender essas dinâmicas a fundo e desenvolver formas de não cair no fluxo das relações vazias pautadas por um romantismo débil que enverniza falsos afetos e nos levam a problemas sérios como dependência emocional. Por exemplo, essa atitude que sustenta relacionamentos abusivos e violências diversas. A professora e escritora bell hooks, me deu insights poderosos sobre essa questão ao conduzir reflexões poderosas sobre como o amor, uma vez que é um sentimento, pode ser vivenciado de várias formas. Essa “descoberta” tira o foco do romantismo que nos seduz e induz a erros nas escolhas e nos faz apostar na autoestima e desenvolver redes de relações que não necessariamente irão nos trazer uma satisfação sexual mas, pode nos proporcionar conforto afetivo seguro, como é o caso das amizades. Aliás, não deveríamos cogitar envolvimento afetivo com pessoas com as quais é nítido que não seriam nossas ou nossos amigos.
E, além de todas essas questões sociais que influenciam SIM as escolhas afetivas, há uma questão que deve ser respeitada: ninguém tem a obrigação de nos dar o afeto que queremos, quando e como queremos. Independente dos motivos que levam alguém a rejeitar a oportunidade de construir um amor conosco, precisamos entender que é um direito inegociável rejeitar o que não nos parece adequado. Podemos questionar e discutir a autenticidade desses motivos? Podemos e devemos. Mas jamais a liberdade de escolha, ou do que a pessoa acredita ser uma escolha.
Trocando em miúdos: responsabilidade afetiva é você consciente das dinâmicas que movem o subjetivo campo da afetividade, calculando as suas possíveis desvantagens e precavendo de entrar em barcas furadas de gente que nem ao menos tem responsabilidade com os próprios afetos, quem dirá com os dos demais. Tenha responsabilidade afetiva escolhendo conscientemente não entregar o seu melhor a quem não merece tê-lo.
Infelizmente, isso não foi ensinado para a Natália Deodato e nem para a maioria das mulheres, especialmente negras ou fora dos padrões do mercado afetivo que sofrem com as sequelas das rejeições afetivas (provavelmente) sucessivas. Mas sempre é tempo para aprendermos a não delegar ao outro a árdua tarefa de nos fazer felizes e completas.