Considerada a própria reencarnação de Ísis, a deusa egípcia da mágica e do renascimento, Cleópatra, que realmente acreditava em sua divindade, morreu de ego ferido. Derrotada por Otaviano na Batalha de Áccio, a última rainha do Egito preferiu tirar a própria vida, aos 39 anos e supostamente se oferecendo como presa para uma serpente venenosa, tão logo soube que o então futuro imperador romano, Augusto, pretendia exibi-la em público como prisioneira de guerra.
Muitos séculos depois da odisseia ptolomaica, uma outra rainha encerrou com chave de ouro seu reinado de mais de sete décadas, do qual se retirou pela porta da frente e rumo à eternidade graças ao comportamento, por vezes frio, mas notoriamente eficaz e adequado que a tornou a antítese perfeita da amante de Marco Aurélio: Elizabeth II, morta há quase oito meses aos 96 anos, dos quais durante os últimos 70 e mais 214 dias dedicou ao cumprimento do acreditava ser seu dever. A majestade tratava seus títulos e honrarias como “ferramentas de trabalho”, tinha como suas maiores virtudes a crença real de que, acima de si, só havia Deus, assim como sua naturalidade para lidar com a ideia de que, como monarca, sua existência servia para personificar uma nação – o Reino Unido, que a teve como soberana desde 6 de fevereiro de 1952.
Em relação ao fato de realmente acreditar ser subalterna de uma força divina, a rainha britânica não via nisso um privilégio, mas sim um fardo que carregou até a antevéspera de sua morte. E é a esse comportamento prístino dela que a monarquia mais famosa do mundo deve sua existência até hoje, simplesmente por ter tido durante todo esse tempo um “verniz real” que lhe foi dado por Elizabeth II e sua aura de seriedade e imponência, sendo estas características visíveis somente nas pessoas que as possuem por natureza, e jamais naquelas que precisam lembrar a todos o tempo inteiro o poder que têm.
A mãe do rei Charles III, que será coroado nesse sábado (6), enfrentou todas as batalhas possíveis em seus anos de trono, e saiu ilesa de todas. Sua capacidade em não demonstrar emoções e seu entendimento de que o cargo que herdou por sua linhagem de sangue a obrigava a manter bem longe de todos sua jornada pré-régia como Elizabeth Mountbatten, e deixar à vista somente aquela que a definiu, como Elizabeth Regina, eram o que a tornaram quase tão divina quanto a própria Cleópatra pensava ser.
Mas seu estilo “duty first, self second”, se funcionava para torná-la uma chefe de estado respeitada, ao mesmo tempo a afastava de seus familiares, em especial seus quatro herdeiros e, de todos eles, seu sucessor, Charles. Seu senso de responsabilidade a permitiu cumprir uma promessa que fez, pela televisão e na ocasião de seu aniversário de 21 anos, em 21 de abril de 1947, de dedicar sua vida inteira, curta ou longa, aos seus súditos.
A morte de Elizabeth II trouxe à tona muitas questões, dentre as quais a mais importante é justamente se o que sobrou da Casa Real de Windsor contém verniz capaz de manter seus membros mais tidos como celebridades do que como autoridades protegidos pelo brilho do que os tornou uma espécie participantes do “reality show mais antigo da história”, agora menos relevantes diante da ausência daquela que levou consigo vários superlativos – pessoa mais fotografada e mais conhecida entre os 7,7 bilhões de habitantes da Terra, entre os quais – colocando em primeiro lugar o que lhes foi confiado como sangues azuis e jamais os privilégios que têm em razão disso. Exatamente como fez a rainha.
Mais emotivo, um tanto quanto opinativo e determinado a provar o que veio – ai, o bote fatal em potencial – o rei a ser coroado em cerimônia sacra é o avesso da mãe, um indicativo de que a nova era caroleana da qual é o protagonista corre o risco de possivelmente ir ao encontro dos aplausos ouvidos no fim da segunda era elisabetana. Dito isso, Charles tem o diferencial de ser o soberano britânico mais velho a ascender ao poder em toda história, e certamente os mesmos 70 anos e 214 dias que viveu esperando pelo momento que definiu sua própria existência lhe serviram como algum aprendizado.
Do contrário, o veneno cheio de vaidade da cobra que picou Cleópatra e que pode também dar o bote nele poderá torná-lo, apesar de sua descendência real de mais de mil anos e do fato inegável de que a instituição que representa é a grande estrela de tal de sobre-eminência, em apenas uma versão com mais tweed e menos lycra como são as Kardashians.