Das experiências do luto coletivo: o que podemos aprender?

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Todos nós vamos deixar esse mundo em algum momento, certo? Bem, “certo” talvez não seja a palavra que dá forma ao que sentimos diante dessa verdade absoluta mas, o fato é que, nada e nem ninguém é permanente.

Junto dessa verdade absoluta, vem a inevitável e dolorosa experiência do luto. Essa soma de saudade com angústia, de insegurança com impotência, de devastação da alma com vazio existencial, entre outras dicotomias e ambiguidades emocionais que caracterizam a retirada permanente daqueles e daquelas que amamos. É uma experiência comum.

No fatídico ano de 2020, uma das produções que mais me tocou foi a minissérie da Marvel em parceria com a Disney, “WandaVision”, que nos oferece uma lupa para observarmos melhor a  realidade de uma das “vingadoras” mais surpreendentes da S.H.I.E.L.D ( o QG da Marvel): Wanda Maximoff ou a Feiticeira Escarlate.

Wanda(Elizabeth Olsen) em Wandavision. Foto: Divulgação/Disney+

A trama não tem nada de espetacular, do ponto de vista da produção cinematográfica que era esperada por muitos que vêm acompanhando as peripécias da Marvel nas grandes telas. Exceto o patamar humano em que coloca a protagonista Wanda e que se vale de um recurso capaz de criar uma identificação instantânea entre a personagem e o espectador. Esse recurso é a abordagem de uma experiência que é comum a todo e qualquer ser humano em todo e qualquer lugar desse planeta: a experiência do luto. 

A vivência da Feiticeira Escarlate comoveu a todos e levou muitos a revisitar seu próprio processo de luto que, a maioria de nós acredita que dura apenas o tempo em que o ritual fúnebre acontece. 

Na verdade, o luto, que é objeto de diversos estudos e pesquisas, é um processo longo, que tem fase distintas, conforme abordou a psiquiatra suíço-americana Elisabeth Kübler-Ross (falecida em 2004) em sua obra “Sobre a Morte e o Morrer”, de 1969: negação, raiva, barganha, depressão e aceitação. Importante dizer que, a dor da perda se faz presente em todas as fases. 

Mas sempre me intriga a experiência de lutos coletivos, aqueles que nos abatem quando da perda de pessoas famosas, artistas de enorme visibilidade ou celebridades em geral, como mais recentemente foram as despedidas precoces da cantora Marília Mendonça e do ator Paulo Gustavo.

Essas pessoas que não conhecemos em suas complexidades genuinamente humanas, mas que, inevitavelmente se tornam personagens que consumimos, já que são oferecidos pelas mídias, mas que amamos, nos identificamos, nos irmanamos até. 

Quando pessoas como Marília Mendonça e Paulo Gustavo saem de cena, do palco da vida para a eternidade, deixam um multidão conectada pela dor da ausência, formando uma experiência coletiva de luto. Essa experiência difere daquela em que vários grupos distintos estão chorando a perda de um ente querido, como aconteceu ao longo da pandemia, pois no caso da morte de pessoas muito famosas, são milhares de pessoas chorando a mesma perda, pela mesma pessoa(s). 

E nesses casos, apesar de toda dor que nos toma nesses momentos, talvez um foco de alívio possa nos despertar a resiliência, elemento fundamental para nos recompormos e seguimos a vida, levando apenas a inevitável saudade. Aparentemente, diante dessas experiências de luto coletivo, não há nada de positivo. Mas não, há sim.

Sem apelar para o misticismo ou para a religiosidade (entendendo que a fé é diversa e cada um parte de dogmas diferentes), há algo de muito bonito que emerge desses momentos inevitáveis, mas que é ofuscado pela agudeza do sofrimento: a (r)existência do amor. 

Ninguém sofre pela perda de algo ou de alguém de quem não ama. Quanto maior a dor, maior a certeza de que o amor esteve concentrado na presença de quem se foi. E isso não é apenas consolador. É, principalmente, inspirador. A experiência do luto, seja individual ou coletiva, nesse momento, é um portal que nos conecta com nossa capacidade de amar, que anda tão invisível

O mundo tem vivenciado uma onda de ódio, no mínimo, desumanizante. É preciso repensar as possibilidades de construção de relações sociais, em um pacto possível pela sociabilidade que vem se enfraquecendo cotidianamente, sob nossos olhos desatentos.

Nos momentos de luto coletivo, já se tornou clichê dizer que “a vida é um sopro”. Mas não, a vida é uma oportunidade que se confirma como tal diante da experiência do luto, que nos convida a olhar ao redor e nos perguntar: pra que serve essa oportunidade que me é dada e reafirmada cotidianamente? 

Se por um lado, as fases do luto são tão inevitáveis quanto intensas, por outro, deveria ser igualmente inevitável não prolongá-las vivendo um luto imperceptível da nossa humanidade. Luto esse que é sentido como uma ansiedade e se mistura com a dor da perda, individual também mas, principalmente, coletiva.

Estamos matando, literalmente, o belíssimo potencial humano que carregamos com questões pequenas, com muita mesquinhez e gerando frustrações profundas e simultâneas. É quando as aberrações comportamentais entram em cena, como gente oportunizando o luto alheio para se aparecer, tentando depreciar a memória de quem partiu ou ainda, desmerecendo a dor de quem chora pela perda

Isso intensifica a sensação de desperdício de gente, de desperdício de vida, que projetamos em quem está indo embora desse mundo, potencializando ainda mais as dores.

Em geral, nos lutos coletivos (mas também nas experiências individuais), quanto mais pessoas mobilizadas pela dor de uma partida, maior a certeza de que aquela vida valeu a pena, foi vivida de maneira expansiva e semeando amor a cada minuto. 

E nesse caso, o luto ou a dor da ausência, é proporcional a experiência do amor vivido, que levantou e aqueceu muitas pessoas simultaneamente. Vidas que se articulam em torno desse feito, são vidas que foram realmente úteis, produtivas e positivas. 

Evitar a dor, em meio a experiência do luto, é como cair em queda livre de um enorme precipício, acreditando que o “colchãozinho” que está lá embaixo, vai amortecer o impacto. 

A dor pode nos destruir, o luto pode nos colocar em estado de transe involuntário, quando tentamos nos proteger desses sentimentos aderindo a escapismos e criando fantasias insustentáveis. Por isso é preciso se permitir vivê-la, até a última gota, em todas as suas fases. E permitir que os outros vivam também, cada um a seu modo, sua imensa dor.

Mas é bom ter em mente que, assim como diz o rap dos Racionais “até no lixão nasce flor”, ou seja, até no profundo sentimento de perda existe uma oportunidade única de descobrirmos quem somos e o poder que temos em mãos. 

E a chave para o entendimento e superação da dor aguda do luto, foi perfeitamente verbalizada pelo personagem Visão, marido da Wanda Maximoff, nos momentos finais da série: “O que é o luto, se não o amor que perdura?”

É com esse amor que curamos feridas latentes das perdas inevitáveis que sofremos e que demoram a passar e, é com esse amor que eternizamos os laços e confirmamos o quão valioso foi o tempo de vida das pessoas que se foram. 

Joice Berth é arquiteta urbanista, ativista feminista e autora do livro “O que é empoderamento?”

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