Semana passada eu caí. Caí na frente de casa, domingo à tarde, chegando de um passeio com meu filho, que havia adormecido no carro. Caí com ele no colo — ele, que já carreguei adormecido tantas vezes, provavelmente não foi a causa da queda. Talvez o salto (pequeno) da sandália? Só me lembro de não conseguir me equilibrar e de assistir, como a recortes de um filme, à aproximação da quina da porta na minha testa, e da dor. Uma dor aguda, que me solicitava inteira, de olhos fechados, como que pulsando um pedido, enquanto minha mão apalpava o abaulamento: passe, passe, passe. E do meu filho assustado, intacto, indo chamar o pai: a mamãe se machucou. Depois, o rastro, da sobrancelha ao couro cabeludo, também um raladinho no nariz, o inchaço, e o joelho, e o braço, e a mão.
O dia mudou de direção naquele instante, os planos de um fim de tarde qualquer foram substituídos por gelo e repouso (felizmente, não precisei ir ao hospital). Deitada, segurando o pano gelado na testa, eu me perguntava: como caí? Por que caí? Há, afinal de contas, algum motivo por detrás do que nos acontece? Há sinais? O que determina, além da quina da porta, além das arestas em que esbarramos pelo caminho nos dizendo não, o que determina esses instantes decisivos, escondidos pelos nossos dias, que os mudam de direção?
Há mais ou menos um mês, meu filho, esse que estava no meu colo, caiu. Estávamos numa pizzaria com amigos, tínhamos ido ao circo, as crianças brincavam lá fora e nada me fazia supor que algo daria errado. Que algo daria tão errado. Eu soube pelo grito: a gente sabe quando o filho se machucou de verdade, a gente reconhece pelo grito. É um grito diferente de um choro, é um choro diferente do comum, de quando dói um pouco, de quando é manha. É um som que tem algo de animal, algo de absurdo, um som que tem dentro algo quebrado, a própria voz quebrada, feita duas, como o instante, como a pele do corte.
Eu ouvi aquele grito e me levantei inteira em alerta, inteira me preparando para o que veria, ainda que jamais estivesse preparada para ver tanto sangue saindo do nariz do meu filho, um sangue que jorrava e manchava a blusa dele e caía no chão, no tênis, os pezinhos dele se mexendo, pisando sem saber onde pisar, e o grito continuando, calando todo o resto, silenciando tudo.
Eu o peguei no colo e chamei meu companheiro e imediatamente disse para irmos para o hospital, mas eu não encontrava forças para segurá-lo, minhas pernas tremiam, não se sustentavam, eu não conseguia fazer o ar chegar direito no meu peito, até que um dos amigos que estavam conosco (obrigada, Tiago) me disse Natalia, você precisa se acalmar. Você precisa estar calma para estancar o sangue, você precisa se acalmar para acalmar seu filho. Sim, sim, e então segui a ordem como a um rastro de lucidez que eu não tinha então, qualquer coisa que me tirasse do meu próprio desespero para que eu cuidasse de quem me precisava naquele momento, o meu filho, o meu filhinho sangrando tanto.
Eu via os olhares das pessoas para nós no hospital, o sangue na blusa dele, o corte logo acima do nariz, uma fenda, um buraco. Choro, muito choro madrugada adentro. Anestesia geral. Meu filho mais velho cuidando de mim, nos ajudando tanto, dormindo sozinho em casa pela primeira vez, meu companheiro voltando para o hospital. Os pontos que aproximaram os lados do corte.
Deu tudo certo. Fica uma cicatriz, uma cicatriz bem visível, no rostinho dele, que continua lindo e agora tem também uma cicatriz. Vamos nos completando ao longo do tempo, nossa história impressa no corpo todos os dias, as células mudando, o crescimento, às vezes a história tem a forma de uma cicatriz. O instante que rasgou em dois junto com a pele, o metal que era afiado e não deveria estar ali. A sorte, afinal, de não ter sido no olho, de não ter sido mais grave, de o osso do nariz ter segurado sem quebrar.
Lembrei, então, de outro corte. Na verdade o corte não cheguei a ver, lembrei da cicatriz. Uma cicatriz no rosto, o rosto da mulher que eu atendi no hospital penitenciário em que trabalhei como psiquiatra por oito anos. Não me lembro do nome dela, lembro do corte que atravessava sua face, seu rosto feito dois, sua vida feita duas, antes e depois daquela briga com o companheiro. Os cortes estão espalhados pelas coisas, nos esperando, esperando para abrir nossa pele e mudar nossa vida, enquanto nossa pele segue íntegra para que vivamos sem cindir tecidos cutâneos e momentos. Mas há vidas mais propensas aos cortes, há vidas em que as coisas estão mais armadas, em que as coisas são armas de verdade, como a faca que rasgou o rosto daquela mulher. Há vidas em que a violência está mais a postos, há vezes em que não é sem querer.
De repente, penso no mar. Penso em uma gaivota sobrevoando as ondas. Penso que, neste instante, enquanto estou aqui, enquanto consigo estar apenas em um lugar, há todas as pessoas em um só lugar neste mesmo edifício, há a cidade, há a floresta, os barulhos, há todas as pessoas em todos os lugares e há os lugares sem pessoas, cada um podendo estar só ali a cada vez, cada lugar sendo só si mesmo, tudo existindo ao mesmo tempo. Provavelmente, neste exato instante, o sangue esteja brotando repentino da pele cortada de alguém. E o corte — o corte, a separação do que era coeso, a ferida, o buraco, nos diz que o tempo não volta, e que em algum momento tudo, absolutamente tudo que era íntegro vai deixar de ser.
Quem sabe nesse longo percurso deponhamos as armas que cortam mais uns do que outros. Espero estar e ser íntegra para contribuir com isso.