Diretor premiado em Cannes na mostra ‘Un Certain Regard’, com o ótimo “Á Vida Invisível’, Karim Aïnouz está de volta. O cineasta brasileiro, radicado em Berlim, está lançando o documentário ‘Nardjes A’. Coproduzido pelo Canal Brasil e filmado com um smartphone no início do Hirak (movimento que tomou conta da vida na Argélia desde o início de 2019), o longa acompanha uma ativista que luta por um futuro democrático naquele país em meio à turbulência política. Nardjes Asli, que dá nome à produção, tem 26 anos e vive em Bachdjerrah, distrito da classe trabalhadora de Argel. É atriz e trabalha meio período em um “café-teatro” onde organiza eventos políticos e artísticos com seus amigos. Nascida e criada em uma família de ativistas, ela se juntou ao Hirak desde seu início, em 22 de fevereiro de 2019. Corajosa, sensível e inquieta, ela se descreve como uma ativista “de boca grande”, que não se cala diante da injustiça.
A estreia mundial rolou na mostra Panorama da 70º Berlinale, no ano passado, e, em seguida, o doc foi exibido no concorrido festival de documentários Visions du Réel, em Nyon, na Suíça. Conversamos com Karim sobre o filme que será lançado em breve nas plataformas de streaming. Confira o papo:
Como surgiu a ideia de fazer o ‘Nardjes A.’? O fato de seu pai ser argelino influenciou nisso?Definitivamente desempenhou um papel importante. Essa foi minha primeira viagem à Argélia, país de origem do meu pai. Eu estava lá, inicialmente, para desenvolver um projeto muito pessoal: a improvável história de amor que juntou meus pais nos anos 1960, um argelino e uma brasileira, e que tem como pano de fundo a Guerra de Independência da Argélia. ‘Nardjes A.’ foi rodado durante essa viagem. Chegar à Argélia no início de 2019 foi emocionante. Argel estava eletrizante, envolta em uma atmosfera de luta e esperança. De repente, as filmagens de ‘Nardjes A.’ surgiram como algo vital. Esse é um filme urgente. O grito das ruas e a excitação vigorosa da cidade ocupada por uma juventude febril me convenceram de que naquelas 24 horas não havia nada mais importante a ser feito: retratar Argel ardendo em esperança. A mesma Argel que tão fervorosamente celebrou a independência do regime colonial em 5 de julho de 1962.
Você filmou com um smartphone no meio das manifestações de rua, como se fizesse parte daquilo. Como você se sentiu?
Por se tratar do retrato de uma manifestação, como já disse anteriormente, ‘Nardjes A.’ tem em seu DNA a urgência. Nesse sentido, foi esse senso que guiou todas as minhas escolhas como diretor, tanto estéticas quanto técnicas. Neste filme procuro registrar um relato íntimo de um dia crucial na Argélia contemporânea. Seguimos o rastro de uma jovem argelina das 8h às 5h do dia seguinte. Minha abordagem foi elaborar um retrato imediato e vibrante de um jovem em revolta, em vez de um relato jornalístico genérico dos acontecimentos. Nada é neutro aqui – tudo é ao mesmo tempo apaixonado e tendencioso. A ideia era que o filme deveria respirar em sincronia com Nardjes, nossa personagem principal. A câmera deveria sentir-se de alguma forma ligada a ela, pulsando com ela, no meio da multidão que invadiu as ruas de Argel. Poder entrar e habitar estes espaços só era possível com um aparelho muito discreto. Desde o início ficou claro que um aparato cinematográfico clássico nos impediria de retratar esse momento ou porque chamaria a atenção da polícia e das forças de segurança ou porque perturbaria os manifestantes. Teríamos que tornar a câmera invisível, então decidimos usar uma câmera de smartphone, o que nos permitiu atravessar a multidão e mergulhar nela. O que estava acontecendo na Argélia não era muito diferente do que acontece nas ruas durante o carnaval do Brasil, uma nuvem de esperança que invade o espaço e tudo parece ser possível através da alegria. Era raiva misturada com vontade, com muita vontade.
Sobre Nardjes Asli, como você a conheceu ou encontrou?
Conheci Nardjes através de meus amigos Fouad e Sarah Triffi. Quando cheguei, fiquei impressionado com o que estava acontecendo na Argélia. Como eu estava lá para fazer outro projeto, já tinha feito alguns contatos. Como as manifestações estavam tomando conta da cidade, este casal de amigos, que fazem parte do meio do cinema argelino, me apresentou a Nardjes. Ela é uma atriz e também tem um emprego em um café no centro de Argel. Nos conhecemos, conversamos muito brevemente, eu propus o documentário e ela aceitou. Foi tudo feito muito rapidamente, não havia tempo nem nada a perder. A única coisa que ela me pediu foi: ‘não me peça para atuar, para representar. Quero estar nas manifestações porque acredito, quero cantar, vibrar, gritar. Estar lá como ativista, e não como atriz’.
O doc também mostra muito da vida social de Nardjes. Isso era importante?
Minha abordagem nunca foi um relato genérico jornalístico. Era capturar a alegria das ruas, aquela energia, aquela sensualidade que não se dissipa quando as manifestações terminam, mas que habita as vidas de quem participa delas, que inflama um estado de espírito. De fato, era importante descrever como essa energia ressoa em suas vidas, além das manifestações. É claro que é um filme político, mas não só. Há uma ambiguidade que eu queria explorar, a política pode ser muito pesada e, até certo ponto, deve ser pesada, mas não só isso.
Como você definiria a cultura jovem na Argélia atualmente?
O que mais me surpreendeu foi a sensação de que estar na Argélia era como estar em qualquer parte do mundo. Penso que há descontentamento com a política em toda parte, uma crise sistemática da democracia que precisa ser abordada com cuidado para evitar o fascismo, que geralmente é a resposta mais fácil a estes momentos políticos.
Por que seu filme é tão diferente de tantos outros filmes sobre a Revolução Argelina?
Minha intenção era capturar o estado das coisas, a voltagem de uma raiva produtiva, uma insurgência e a ambiguidade própria desses momentos. A agenda que tenho por trás deste filme é retratar os encontros, a tomada das ruas como algo vital. Eu queria fazer um filme que trouxesse alegria – o retrato de uma revolta pacífica mas feroz que pode inspirar outros no mundo. Revolta, tumulto e emoção.
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