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A pandemia fez Kika Seixas revisitar o baú e o coração. A produtora de 68 anos, que foi casada com Raul Seixas entre 1979 a 1985, com quem teve Vivian, de 40 anos, acaba de lançar o livro “Coisa do Coração – Minha História com Raul Seixas” (editora Ubook). Na obra, a quarta companheira do artista traz à tona as dores do passado, momentos íntimos, dificuldades e a falta eterna do gênio, que morreu em 1989. Tudo sob a perspectiva de quem viveu ao lado de um dos cantores mais talentosos – e problemáticos – do Brasil: “Não é uma biografia do Raul, a biografia é da Kika”, avisa ela.

  • Por que Raul é eterno?

  • Me perguntaram recentemente qual era o meu entendimento sobre Raul ter 42 biografias; Tom Jobim e João Gilberto, que são gênios, só uma cada; Vinicius de Moraes, duas. Não soube responder. Talvez porque as músicas do Raul são atemporais. Quando Tom e Vinicius cantavam que o barquinho vai e o barquinho vem, era um período ali de Ipanema, algo específico. “Medo da Chuva” é uma música que não tem validade, todo mundo continua pensando assim até hoje. Olha que coisa curiosa: Bruce Springsteen, um dos artistas de rock mais geniais, fez um coro no meio do show do no Rock In Rio, em 2013. Alguém pediu “toca Raul”, o que seria um absurdo, e ele começou a cantar “Sociedade Alternativa”, 200 mil pessoas batendo palma, cantando. Um amigo estava lá, filmou e me mandou. Volto a pergunta para você: Como justificar isso? Eu não sei.

  • Há algumas biografias já existentes do Raul. Qual o diferencial da sua? Você chegou a ler as outras publicações?

  • Existem mais de 40 livros sobre o Raul. Desses 40, se quatro são confiáveis, é muito. Chegou um momento em que parei de ler [as biografias] porque tinham tantas coisas absurdas, “achometros”. Todo mundo querendo aparecer, 40 pessoas que quiseram virar escritoras e não eram… Raul falava muito pouco sobre o passado dele, se para mim, mulher dele, isso acontecia, imagine para um curioso.

  • Há algumas biografias já existentes do Raul. Qual o diferencial da sua? Você chegou a ler todas as outras publicadas?

  • Não tenho dúvida, saio da mesmice das outras biografias. Falo do Raul pai, marido, ciumento, do Raul antes do show, eu como produtora dele, as dificuldades que vivemos. Nos conhecemos em 1979, quando trabalhava na gravadora e ele tinha terminado o contrato e estava em uma fase muito ruim, desprezado. Nessa época, ele não ia aos programas de televisão, não teve tanta visibilidade. Inclusive, ficou doente na época de lançar um LP, enfim, fase ruim. Quando começamos a morar juntos, conheci um Raul diferente, até meio triste, é o que retrato inclusive no livro. Ao mesmo tempo, nós dois completamente apaixonados. Nesse momento, ele estava duro, meu pai foi o fiador do nosso apartamento, minha mãe trazia comida para a casa. Não passamos dificuldade, mas tivemos esse suporte porque o artista só ganha dinheiro quando faz shows ou vende discos, que no caso Raul não estava fazendo. Sobrevivíamos apertados, mais com o valor dos direitos autorais.

  • Como foi contar essa história de amor em momentos tão sombrios como o que estamos vivendo?

  • Esse projeto começou no final de 2019 com meu parceiro de projeto, o Toninho Buda, que é escritor e fez alguns livros do Raul. Fiz questão que fosse alguém que conhecesse a obra do Raul e que me conhecesse também, sabendo da minha honestidade e antecedentes. O processo foi mandar áudios para o Toninho, ele transcrevia, depois mandava de volta e ficávamos horas e horas lendo no Skype. Fiz com que ele mantivesse o meu jeito de falar, por isso o texto ficou bem a minha cara. Eu não tinha intenção de lançar esse livro comercialmente, queria dedicar à minha filha, Vivian. Como conhecia a editora de conteúdo da Ubook, ela, curiosa, leu o livro, gostou e fez a proposta para lançar a obra. A pandemia atrasou o lançamento e achei bom porque tive mais tempo para pesquisar. Tenho um acervo enorme do Raul, com manuscritos, livros, cartas dele para mim, cartas da mãe dele. Agora estou 100% feliz com o material que conseguimos coletar. É importante ressaltar que a obra não é uma biografia do Raul, a biografia é da Kika.

  • No livro, você fala sobre a dependência química do cantor sem julgamento. Acredita que é assim que as pessoas devem lidar com essa questão?

  • É muito difícil lidar com alcoólatra. O alcoolismo é uma doença que não afeta somente a pessoa, mas a família toda. O sofrimento não para, as expectativas, as promessas desfeitas. Eu vivi isso. A pessoa tem que estar disposta a não beber, senão encontra um jeito. Como eu iria ver isso? Estava na produção, na bilheteria. Enfim, depois de um ano juntos, comecei a ver que não era apenas um vício, ele bebia desde às 8h da manhã. Até que chegamos em São Paulo, Raul teve uma crise no pâncreas e ficou internado, teve que retirar parte da glândula e o médico pediu para ele nunca mais beber. Seis meses após o procedimento, ele voltou como se nada tivesse acontecido. Quebrou a promessa que, na verdade, fez para o médico e não pare ele mesmo. Quando descobri que estava entregue à bebida, ainda sim fiquei com ele, muito esperançosa com o nascimento da Vivi e a recuperação da carreira, na época do “Plunct, Plact, Zum” – ali foi um estouro começamos a ganhar dinheiro e voltamos a fazer shows –, só que mais uma vez nem o sucesso, nem o amor e nem a família bastavam. Infelizmente. Tem um capítulo do livro que falo sobre isso. Quando achei que ele tinha chegado ao fundo do poço, afiou as unhas e cavou mais fundo. Aí foi internação, internação e hábitos horríveis. Foi a decadência de um homem que amei tanto, de um artista genial que não tinha forças para subir no palco. A gente tinha prometido que íamos envelhecer juntos, tantos planos. Foi uma desilusão total. O Raul artista tomou conta do Raul pessoa. Ele já acordava tomando vodca com Coca-Cola, virava um personagem, já não era o Raul que levava a Vivi para o colégio.

  • Tem alguma história com o Raul que ficou de fora e se arrependeu de não ter colocado no livro?

  • Tem sim! Teve uma época em que quis que ele entrasse em forma, era muito magrinho. Pedi para entrar na academia para se preparar para os shows. Comentei que o Mick Jagger ficava se mexendo no palco, de um lado para outro, e que o Raul também tinha que se preparar para as apresentações. Ele era bonzinho, acabou concordando. Aconselhei ele a ir na academia que eu estava indo, era do lado de casa. Eu ia em um horário, e ele em outro, com um calção, sapato de couro e uma meia que não tinha nada a ver com o treino. Deixei o visual quieto, não falei nada. Após um tempo, achei que ele não estava muito com cara de ginástica, não suava. Depois de umas três semanas, pensei que não era possível. Ao ser questionado, Raul disse que não estava animado, mas que fazia sim [os exercícios]. Até que um dia fui na academia na parte da manhã e questionei o professor, que confessou que ele ficava na porta da academia, em um barzinho, que tomava uma cervejinha e conversava com todo mundo (risos).

  • Qual sua música preferida do Raul?

  • Fiz 15 músicas com o Raul. Difícil escolher uma favorita, tem mais de 150. O cara é um gênio. “Coisas do Coração” é uma obra-prima. Na época da criação, estávamos muito apaixonados, ficava com ele à noite, usávamos drogas para ficarmos acordados, compondo. Nessa música, opinei sobre um verso ou outro, disse algumas palavras, mas acredito que eu seja mais a inspiração do que a parceira musical. “Rockixe” também, “O Dia em que a Terra Parou”, que foi feita em 1977, era a visão exata do que estamos vivendo agora. O Raul não era médium, mas era um visionário. Nessa música, ele diz que ladrão não tem mais por que roubar, diz que o padre não vai mais à missa porque não tem ninguém para rezar. É o que estamos vivendo!

  • O que Raul estaria pensando deste momento de pandemia?

  • Quando não tinha resposta para algum jornalista, Raul dizia: “Só telefonando”. Vou responder da mesma forma, bem irônica e divertida, como Raul responderia.

  • Existe algum artista da atualidade que te faz lembrar do Raul?

  • De música popular, acho Zeca Baleiro genial; Roberto Frejat, que eu amo de paixão, meu amigo; Marcelo Nova, parceiro do Raul, ele tem uma coisa irônica, agressiva que o Raul também tinha. Não vejo nenhum artista, não desmerecendo ninguém, mas não vejo uma aproximação de estilo, nada.

  • Do que mais sente saudade na relação com ele?

  • Eu já vivo 20 anos com meu namorido e ele sabe do amor que eu tenho pelo Raul. Ele não tem ciúmes até porque eu e a Vivi nos dedicamos até hoje à obra do Raul. Meu namorido brinca: ‘Pô, o Raul está mais vivo agora do que quando estava vivo’. Raul era tão doce, carinhoso, o jeitinho dele, tímido, o jeito de falar, aquela coisa do baiano. Ele cantava músicas no meu ouvido, um amor, sinto saudade. Vou amar eternamente, a gente se amou muito, muito, muito. Não tenho nenhuma raiva, nenhum ressentimento. Inclusive, passei esse amor para a Vivi, nunca deixei ela sentir que o pai a abandonou. Até mesmo após a separação, quando ele já estava vivendo com outra mulher, sempre deixei vivo esse sentimento de amor e profundidade. Em fevereiro de 1989, ele me escreveu uma carta linda pedindo para voltar. Então, sei que ele me amou muito, não tenho dúvidas nem ressentimentos, brigas, rancor… só amor.

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