A primeira vez que saí de casa sozinha depois de ser mãe, olhava para as pessoas na rua e pensava: a mãe desta pessoa não sabe que ela está aqui nesta calçada, neste momento; vai chegar o dia em que eu não vou precisar saber de cada movimento do meu filho. Estava indo para o dentista e sentia uma estranha mistura de liberdade e opressão: como era bom caminhar sozinha, como era estranho me distanciar daquela criatura que me sugava tanto e a quem eu amava tanto.
Dois anos depois, passei um mês viajando. A culpa vinha não porque eu havia deixado meu filho por aquele período com o pai, mas porque eu me sentia bem, porque era um verdadeiro éden não ser acordada de madrugada por ele, não precisar planejar o seu dia e suas refeições, suas roupas, seus horários, era uma delícia andar por uma cidade como uma mulher jovem e atraente que ninguém sabia ser mãe. Quando cheguei em casa da viagem e ele, de pijama felpudo, catarrento, veio com seus passinhos em minha direção, comecei instantaneamente a chorar, como se fosse um ato mecânico. Só ali, diante dele, senti a saudade acumulada daquelas semanas todas; só ali percebi o nó que já havia.
Eu estava grávida de meu segundo filho quando li “A filha perdida”, de Elena Ferrante. O último volume da tetralogia napolitana ainda não havia saído no Brasil, mas me impressionou a maestria com que, no livro de 174 páginas, ela condensa seus principais temas. Há tempos se fala, na literatura, sobre as marcas que as mães deixam em seus filhos, mas, lendo Ferrante, pela primeira vez fui assaltada de uma maneira tão brutal pela exposição crua das marcas que os filhos deixam em suas mães. Crua, mas ao mesmo tempo muito bem amparada por símbolos. A perda da boneca, este objeto que tantas vezes se cumpre como transicional, aquele que, segundo Donald Winnicott, faz a transição entre a presença da figura materna e a possibilidade de sua ausência, é uma cena fundamental em A amiga genial e aparece também em Uma noite na praia, livro infantil de Elena Ferrante. Perder a boneca, perder a filha, perder-se enquanto filha, enquanto mãe; livrar-se do elo entre mãe e filha, do objeto com o qual uma menina parece ensaiar os cuidados que vai exercer um dia como mãe; interromper a cadeia da maternidade. Nisso pensei quando li A filha perdida, quando me deparei com aquele gesto à primeira vista incompreensível, uma mulher madura, Leda, mãe de filhas já crescidas, que acabaram de ir morar com o pai em outro país, roubar a boneca de uma criança que conhece na praia, em uma viagem de férias, e por cuja mãe, Nina, fica obcecada.
Escrevo este texto, escrevo esta boneca que some, sob a presença da imagem da boneca do filme A filha perdida, dirigido por Maggie Gyllenhaal, a que assisti ontem à noite. Uma adaptação cinematográfica de uma obra literária sempre nos rouba a imprecisão e o esfumaçamento de contornos que a imaginação pode dar às palavras; Leda tem para mim, agora, o suor concreto e o rosto de Olivia Colman, e também o de Jessie Buckley; Nina, o de Dakota Johnson; a menina Elena — nome que Ferrante insiste em dar às suas personagens, convidando o leitor a jogar com sua identidade escondida — agora me aparece importunando sua mãe com uma voz audível, um choro feito de som. Mas a adaptação de Gyllenhaal não comete o erro de tentar se sobrepor ao livro, de explicá-lo com imagens, de preencher suas lacunas. As cenas, pelo contrário, preservam o mistério com que é possível uma simbologia se sustentar como tal. Fiel à obra original e a si ao mesmo tempo, a adaptação consegue respeitar o silêncio que, ainda assim, pesa. E pesa tanto.
Assim que o filme terminou, meu companheiro, irritado, disse: mas ela fica carregando eternamente a culpa por ter deixado as filhas, ela se liberta na juventude para não assumir as consequências dos seus atos depois, o que torna a vida dela uma sucessão de erros; em seguida, exclamou mais irritado ainda que os adultos do filme são um bando de crianças, crianças crescidas que afinal de contas não cresceram.
Ele tem razão: a filha perdida talvez seja a mãe, cada uma delas; a condição de filha, de criança inconsequente, na relutância em aderir completamente ao papel de mãe. Mas ele, ao mesmo tempo, também está errado: a relutância não seria somente sinal de uma infantilidade que se recusa a desaparecer, mas também — e principalmente — a resistência da mulher que existe em cada mãe.
Meu filho mais novo tapa minha boca quando gargalho, se incomoda quando danço, vem inúmeras vezes me puxar para ele: como se meu corpo ainda lhe pertencesse, como se eu, sua mãe, não tivesse nunca mais o direito de ter meu corpo de volta. No filme, a cena em que Leda jovem se masturba e é interrompida abruptamente pelas filhas, ou o contraste entre a conversa com seu amante e a solicitação das crianças no parquinho parecem dizer deste mesmo fenômeno, como se os filhos todos continuassem a exigir a posse do corpo — e o tempo e a exclusividade da alegria e do prazer — de suas mães.
E quanto à culpa, esta cisão entre o que se é e o que se gostaria de ter sido, a culpa é a engrenagem da maternidade: seja para as mães que ficam, seja para as que vão embora. Seja para as que voltam, seja para as que desaparecem para sempre da vida de seus filhos. Mesmo que elas mesmas não a sintam: a culpa pode estar também do lado de fora, nos olhares, nas demandas, na fatura que a sociedade entrega, dia a dia, para uma mulher.
Culpa representada no filme também pela boneca roubada, o gesto sem sentido, mas o mais carregado de sentido de todos. Além da interrupção da cadeia da maternidade, da desarticulação do binômio mãe-filha, Leda perpetra na filha alheia o desamparo que infligiu às suas quando partiu; e então recebe seu castigo, a alfinetada concreta que causa, no livro, “o doloroso fio de fogo” que atravessa aquela mulher e toda e qualquer mãe.