Kika Seixas narra sua história de amor e dificuldades com Raul Seixas em livro intimista: “Nem o sucesso, nem o amor e nem a família bastava”

Kika Seixas aproveitou a pandemia para revisitar o passado. A produtora de 68 anos, que foi casada com Raul Seixas entre 1985 a 1979, com quem tiveram Vivian, de 40 anos, acaba de lançar o livro “Coisa do Coração – Minha História com Raul Seixas”, da editora Ubook. Na obra, que segundo ela não é uma biografia do músico, a quarta companheira do artista revisita as dores do passado, momentos intimos inesquecíveis, dificuldades e a falta eterna de um gênio, tudo em sua visão. “Não quero e não posso ser arrogante em pensar isso, mas o livro está entre as biografias mais adquiridas na Amazon”, celebra ela. (por Baárbara Martinez)

Glamurama: Como foi contar essa história de amor em momentos tão sombrios como esse que estamos vivendo?
Kika Seixas: Esse projeto começou no final de 2019. Comecei a escrever esse livro com meu parceiro de projeto, o Toninho Buda, que já é escritor e fez alguns livros do Raul. Ele é um amigo meu muito querido e confiável. Porque imagine, você abrir suas intimidades e o coração para uma pessoa estranha seria quase impossível. Então, fiz questão que fosse alguém que conhecesse a obra do Raul, e que me conhecesse também, sabendo da minha honestidade, dos meus antecedentes. Ele tinha principalmente esse dom, esse talento de escrever. Eu escrevo bem no dia a dia, mas não para elaborar um livro. Então, o processo foi de mandar áudios para o Toninho, isso foi em outubro e novembro de 2019, eu mandava o áudio para ele e ele transcrevia, depois mandava para mim pelo computador e ficávamos horas e horas lendo junto no Skype. Durante o processo, fiz com que ele mantivesse o meu jeito de falar. O texto ficou bem a minha cara. Eu não tinha intenção de escrever esse livro para lança-lo comercialmente, a minha intensão era dedicar esse livro para a minha filha, Vivian. Sempre foi essa a intenção. Como conhecia a editora de conteúdo da Ubook, ela, curiosa, leu o livro, gostou e fez a proposta de lançar a obra. A pandemia atrasou o lançamento, mas até que achei bom, pensando pelo conteúdo do livro, porque tive mais tempo de pesquisar. Tenho um acervo enorme do Raul, com manuscrito, livros, cartas dele para mim, cartas da mãe dele para mim. O Toninho vinha aqui e ficávamos mexendo nesse baú, descobrindo peças que vieram a melhorar e sustentar muita coisa no livro. Agora, estou 100% feliz com o material que conseguimos coletar. É importante ressaltar que a obra não é uma biografia do Raul, a biografia é da Kika.

G: Há algumas biografias já existentes do Raul. Qual o diferencial da sua? Você chegou a ler todas as outras publicadas?
KS: Tem mais de 40 livros sobre o Raul, tem biografias e biografias. Dessas 40, se tiver 4 que são confiáveis é muito. Chegou um momento que parei de ler [as biografias], comecei a ler coisas tão absurdas, achômetros. Gente que não sabia nada do Raul, que não tinha intimidade. Todo mundo querendo aparecer. 40 pessoas que quiseram virar escritoras e não eram […] Esse rapaz, Jotabê Medeiros, que há uns seis meses lançou um livro [“Raul Seixas: Não diga que a canção está perdida”] falando monstruosidades. Ele caluniou o Raul, falou que ele tinha entregado Paulo Coelho [na ditadura]. Ele [Jotabê] foi fazer uma pesquisa e decidiu, interpretou as perguntas que a polícia fez para o Raul [na época], como se o Raul tivesse entregando o Paulo. Só que o Paulo já estava sendo procurado e encontrado pela polícia federal. O Paulo e a mulher dele já eram conhecidos como militantes, então não foi o Raul. Horrível! A história do Jotabê Medeiros…foi um crime o que esse rapaz fez […] O Raul falava muito pouco sobre o passado dele, se para mim, mulher dele, isso acontecia, imagine para um curioso.

G: Você acredita que apresenta um Raul pouco conhecido pelos fãs?
KS: Não tenho dúvida! Saiu da mesmice das outras biografias, porque ali falo do Raul pai, do marido, do ciumento, do Raul antes do show, eu como produtora dele, as dificuldades que vivemos. Quando conheci ele, em 1979, quando trabalhava na gravadora, ele tinha acabado de terminar o contrato lá, por isso, estava em uma época muito ruim, muito desprezado. Nessa época, ele não ia nos programas de televisão, não teve tanta visibilidade. Inclusive, ficou doente na época de lançar um LP, enfim, fase ruim. O conheci em uma fase bem ruim profissionalmente. Quando começamos a morar juntos, conheci um Raul diferente, até meio triste, é o que retrato inclusive no livro. Ao mesmo tempo, nos dois completamente apaixonados um pelo outro. Nesse momento, ele estava até duro [de dinheiro], e meu pai foi o fiador do nosso apartamento, minha mãe trazia comidas para a casa, para encher a geladeira. Não passamos dificuldade, mas tivemos esse suporte, porque o artista só ganha dinheiro quando faz shows, que no caso Raul não estava fazendo. Ou quando os discos vendem muito, o que não estava acontecendo, porque ele estava mal visto. Nessa época, nem todo mundo cantava as músicas dele. Não posso negar que vivíamos também com uma parte dos direitos autorais dele, por isso digo que não passamos dificuldades, apenas algumas privações. Sobrevivíamos assim, mas apertados.

G: No livro, você fala sobre a dependência química do cantor sem julgamento. Você acredita que é assim que as pessoas devem lidar com esse problema?
KS: É muito difícil você lidar com alcoólatra. O alcoolismo é uma doença, que não afeta somente o alcoólatra, afeta a família toda. O sofrimento é sem parar, as expectativas, as promessas desfeitas. Eu vivi isso […] A pessoa tem que estar disposta a não fazer [beber], se não ele entra no banheiro, no camarim antes do show e bebe. Como eu iria conseguir ver [isso]? Estava na produção, na bilheteria. Enfim, depois de um ano juntos, comecei a ver que não era apenas um vício. Era ele acordar de manhã e beber, oito, nove horas da manhã. Até que quando chegamos em São Paulo, ele teve uma crise no pâncreas e ficou internado, teve que retirar parte da glândula e o médico pediu para ele nunca mais beber. Seis meses após o procedimento, ele voltou a beber, como se não tivesse sido operado. quebrou a promessa, que, na verdade, ele fez para o médico, e não pare ele mesmo. Não teve humildade. Quando descobri que ele estava entregue para a bebida, ainda sim fiquei com ele, muito esperançosa que com o nascimento da Vivi e a recuperação da carreira, na época do “Plunct, Plact, Zum”, ali foi um estouro, começamos a ganhar dinheiro e voltamos a fazer show, mas mais uma vez nem o sucesso, nem o amor e nem a família bastava. Infelizmente […] Tem um capítulo do livro que falo sobre isso. Quando achei que ele tinha chegado ao fundo do poço, ele afinou as unhas e cavou mais fundo. Ai foi internação, internação, hábitos horríveis. A Vivi tinha 3 anos de idade vendo o pai desse modo, um pai que fugia das obrigações dele, porque ela [a filha] via ele embragado dentro de casa. Ali foi a decadência de um homem que amei tanto, a decadência de um artista genial, um artista que não tinha forças para ir para o palco. A gente tinha prometido que íamos envelhecer juntos, tantos planos. Foi uma desilusão total, como pessoa humana. O Raul artista tomou conta do Raul pessoa. Ele já acordava de manhã tomando aquele negócio, vodka com coca [cola] que ele gostava, virava um personagem, já não era o Raul que levava a Vivi para o colégio.

G: Tem alguma história com o Raul que ficou de fora do livro e que após a publicação você se arrependeu de não ter colocado na obra?
KS: Tem sim! Teve uma época em que quis que ele entrasse em forma, era muito magrinho. Pedi para entrar na academia para se preparar para os shows. Comentei que o Mick Jagger ficava se mexendo no palco, de um lado para outro, e que o Raul também tinha que se preparar para as apresentações. Ele era bonzinho, acabou concordando. Aconselhei ele a ir na academia que eu estava indo, era do lado de casa. Eu ia em um horário, e ele em outro, com um calção, sapato de couro e uma meia que não tinha nada a ver com o treino. Deixei o visual quieto, não falei nada. Após um tempo, achei que ele não estava muito com cara de ginástica, não suava. Depois de umas três semanas, pensei que não era possível. Ao ser questionado, Raul disse que não estava animado, mas que fazia sim [os exercícios]. Até que um dia fui na academia na parte da manhã e questionei o professor, que confessou que ele ficava na porta da academia, em um barzinho, que tomava uma cervejinha e conversava com todo mundo (risos).

G: O que Raul estaria pensando desse momento que estamos passando, de pandemia?
KS: O Raul, quando não tinha resposta para algum jornalista, dizia: “Só telefonando”. Vou responder da mesma forma, bem irônica e divertida, como Raul responderia.

G: Qual sua música preferida do Raul e por quê?
KS: Fiz 15 músicas com o Raul. Difícil escolher uma favorita, tem mais de 150. O cara é um gênio. Olha, “Coisas do Coração” é uma obra prima. Nessa época, da criação da canção, estávamos muito apaixonados, ficava com ele a noite, usávamos drogas para ficarmos acordados, compondo. Nessa música, opinei sobre um verso ou outro, disse algumas palavras, mas acredito que eu seja mais a inspiração do que a parceira musical. “Rockixe” também, “O Dia em que a Terra Parou”, olha ai a música que poderia responder o que me perguntou anteriormente, a canção foi feita em 1977, era a visão exata do que estamos vivendo agora. O Raul não era médium, mas era um visionário. Nessa música, ele diz que ladrão não tem mais porque roubar, frases lindas, diz que o padre não vai mais a missa porque não tem ninguém para rezar. É o que estamos vivendo!

G: “Toca raul” é eterno?
KS: Me perguntaram recentemente como é que eu entendia que o Raul tenha 42 duas biografias, o Tom Jobim, que é um gênio, tem uma, Vinicius de Moraes, tem duas, João Gilberto, outro gênio, tem uma. Não soube responder. Talvez porque essas músicas do Raul são atemporais. Quando Tom e Vinicius cantavam que o barquinho vai e o barquinho vem, era um período ali de Ipanema, algo específico. Quando você escuta “Medo da Chuva”, ta ai uma música que você pode colocar como uma das minhas preferidas, ela não tem validade. Ouvindo a letra, todo mundo continua pensando assim até hoje. Olha que coisa curiosa, o Bruce Springsteen, um dos artistas de rock mais geniais que tem, fez no Rock In Rio, em 2013, um coro no meio do show. Alguém pediu “toca Raul”, o que seria um absurdo, um artista estrangeiro tocar Raul, e nisso ele começa a cantar “Sociedade Alternativa”, o pessoal batendo palma, cantando, e aquelas 200 mil pessoas. Um amigo meu estava lá, filmou e me mandou, ele e os amigos deles chorando com a cena, porque era uma coisa impossível. Lindo! Volto a pergunta para você: Como justifica isso? Eu não sei.

G: Existe algum artista da atualidade que te faz lembrar do Raul?
KS: De música popular, acho o Zeca Baleiro genial, Roberto Frejat, que eu amo de paixão, meu amigo, o Marcelo Nova, parceiro do Raul, ele tem uma coisa irônica, agressiva, que o Raul também tinha. Não vejo nenhum artista, não desmerecendo ninguém, mas não vejo uma aproximação de estilo, nada.

G: Do que mais sente saudade na relação com ele?
KS: Eu já vivo 20 anos com o meu namorido e ele sabe do amor que eu tenho pelo Raul. Ele não tem ciumes, até porque eu e a Vivi nos dedicamos até hoje a obra do Raul. Ele [namorido] brinca: ‘Pô, o Raul está mais vivo agora do que quando estava vivo” […] O Raul era tão doce, carinhoso, o jeitinho dele, timido, o jeito de falar, aquela coisa do baiano. Ele cantava músicas no meu ouvido, um amor, sinto saudade. Vou amar eternamente, a gente se amou muito, muito, muito. Não tenho nenhuma raiva, nenhum recentimento. Inclusive, passei esse amor para a Vivi, eu nunca deixei ela sentir que o pai abandonou ela. Até mesmo após a separação, quando ele já estava vivendo com outra mulher, sempre deixei vivo esse sentimento de amor e profundidade. Em fevereiro de 1989, ele me escreveu uma carta linda pedindo para voltar. Então, eu sei que ele me amou muito, não tenho dúvidas nem recentimentos, brigas, rancor, só amor.

Ao final, Kika deixa um recado: “Fica aqui um cuidado, uma atenção especial para as pessoas que bebem, as famílias que bebem e que dão esse exemplo para os filhos desde cedo. Tenha comprienção, saber que isso é uma doença que tem tratamento. É uma doença perigosa que mata. Veja o Raul, nosso querido, um gênio que morreu aos 44 anos. Ele não tinha mais pâncreas, era diabêtico, enfim, no livro vocês podem ver. Graças a Deus, no final, ele estava com Marcelo Nova, seu parceiro querido, que chamou ele para os palcos. Sou eternamente grata por isso. Se não fosse o Marcelo, o Raul iria estar em uma clinica de recuperação, desesperado, mas Marcelo chamou ele para os palcos, e ele morreu do jeito que queria, cantando. Fica aqui meu agradecimento, meu beijo para o Marcelo”.

Sair da versão mobile