Erasmo foi coadjuvante de Roberto, mas protagonista de uma obra singular

Foto: Divulgação/Globo/João Miguel Júnior

As mortes de Erasmo Carlos, nessa terça, e de Gal Costa, 14 dias atrás, representam golpes duríssimos para a tradição e a herança da Jovem Guarda, da Tropicália e da música brasileira moderna em geral. Se Gal foi figura de proa da revolução tropicalista, Erasmo encarnou por seis décadas o coadjuvante dos sonhos, primeiro para a Jovem Guarda e o rock’n’roll nacional, a seguir (e até o dia de hoje) para a rica obra de seu parceiro preferencial, e ídolo pop máximo do Brasil entre os anos 1960 e 1980, Roberto Carlos.

“O que só os adoradores mais fiéis da música brasileira souberam desde sempre é que Erasmo Carlos jamais foi um coadjuvante de Roberto, e sim o protagonista de uma obra singular, valente e pop”

O acordo estabelecido desde muito cedo, de que Roberto e Erasmo assinariam juntos todas as composições, fossem para os discos do primeiro ou do segundo, fixou um duplo padrão, pelo qual as canções gravadas na voz de Roberto teriam preferência e acesso facilitado às paradas de sucesso. Para Erasmo o caminho sempre foi mais espinhoso, e isso ficou retratado em “Sentado à Beira do Caminho” (1969), seu primeiro grande hit após o desmonte do movimento juvenil conhecido como Jovem Guarda ou iê-iê-iê. Em registro delicado de soul music, Erasmo cantava a perplexidade de ter que construir uma identidade própria desatrelada do iê-iê-iê, talvez também do coautor dos versos “preciso acabar logo com isso/ preciso lembrar que eu existo, que eu existo, que eu existo”.

Em 1980, o “Tremendão” iniciou o antológico álbum “Erasmo Carlos Convida…” justamente com “Sentado à Beira do Caminho”, num raro (e formidável) dueto gravado com o parceiro. Demarcava-se assim a primazia de Roberto sobre os outros convidados do LP, entre eles Gal, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Maria Bethânia, Jorge Ben Jor, Rita Lee, Nara Leão, Tim Maia e Wanderléa, que sacramentavam a incorporação do ex-roqueiro inconsequente ligado em pranchas de surfe e carrões envenenados à MPB. Ariscos em relação a Roberto, os colegas emepebistas jamais hesitaram em declarar seu amor por Erasmo.

Wanderléa e Erasmo Carlos. Foto: Divulgação/Globo/João Cotta

Não era por menos. À saída da Jovem Guarda, ele ergueu a fase mais ensolarada de sua discografia, em sintonia fina com o movimento hippie e com a herança tropicalista. Pouco percebido por público e crítica, fez o que quis na década de 1970, o que inclui o inigualável álbum soul “Carlos, Erasmo…” (1971), o rock marítimo-rural de “Sonhos e Memórias” (1972) e o primeiro e genial flerte com a MPB, “Banda dos Contentes” (1976). A bordo do codinome “gigante gentil”, revelou por ali seu canto suave e macio, de um roqueiro afiliado de João Gilberto. Levou Roberto, bom moço por excelência, a assinar com ele uma ode viajandona à marijuana, “Maria Joana” (1971). Gravou versões muito pessoais de canções de Caetano Veloso (“De Noite na Cama”, 1971), Gilberto Gil (“Queremos Saber”, 1976) e Belchior (“Paralelas”, 1976). Tentou libertar-se da maldição da adolescência eterna, cantando o rockão geracional “Filho Único” (1976).

“Não bastassem tantas pérolas de liberdade em composição, interpretação e arranjo, não há como esquecer que o nome Erasmo Carlos estará gravado na história da música brasileira, como coautor de obras-primas como ‘Sua Estupidez’, ‘Detalhes’ e ‘Cavalgada’

Nos anos 1980, a carreira solo de Erasmo exibiu sua face mais pop e radiofônica, não raro habitando temas que jamais seriam frequentados por Roberto (que, no entanto, continuava assinando seu nome nas pequenas e sagazes rebeliões do parceiro). Aderiu ao feminismo incipiente da virada dos 1970 para os 1980 no álbum “Mulher”, dos hits “Mulher (Sexo Frágil)” (a única com a então esposa Narinha na parceria em vez de Roberto) e “Minha Superstar”. Fez sátira político-social dos anos de abertura, em “Pega na Mentira” (1981). Quebrou tabus com “Close” (1984), jogando holofote pop-rock à travesti Roberta Close. Já ao apagar das luzes, construiu pontes com o rap de Emicida (“Termos e Condições”, 2018). Mais comportado, rasgou o lirismo em “Mesmo Que Seja Eu” (1984, dos versos carentes “você precisa de um homem pra chamar de seu/ mesmo que esse homem seja eu”, genialmente apropriadas por Marina Lima dois anos mais tarde) e “Mais um na Multidão” (2001, composta e cantada com Marisa Monte).

Foto: Divulgação/Globo

Não bastassem tantas pérolas de liberdade em composição, interpretação e arranjo, não há como esquecer que o nome Erasmo Carlos estará gravado na história da música brasileira séculos afora, como co-autor de obras-primas não tão livres, mas sempre primorosas, como “Quero Que Vá Tudo pro Inferno” (1965), “Se Você Pensa” (1968), “Sua Estupidez” (1969), “Jesus Cristo” (1970), “Detalhes” (1971),“Além do Horizonte” (1975), “Amigo” (1977), “Cavalgada” (1977), “As Baleias” (1981) e “Fera Ferida” (1982), entre centenas de pílulas pop lançadas no espaço por Roberto Carlos. A parceria arrefeceu nos anos 1990, e de 2005 para cá nunca mais foi gravada uma parceria inédita de ambos, o que já era uma sinalização triste da finitude. A época histórica do pop dos sonhos de Roberto & Erasmo está encerrada, nunca mais haverá um “Meu Nome É Gal” (feita pelos dois para ela cantar, em 1969), e é hora de o Brasil chorar.

*Jornalista e crítico musical desde 1995, Pedro Alexandre Sanches é autor de “Tropicalismo – Decadência Bonita do Samba” (Boitempo, 2000) e “Como Dois e Dois São Cinco – Roberto Carlos (& Erasmo & Wanderléa)” (Boitempo, 2004)

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