Vamos à história: Fran Clemente é uma carioca, moradora do Leblon, no Rio de Janeiro, e influenciadora com milhões de seguidores. Para ela, a pandemia é uma oportunidade de “fazer um balanço da vida”, “buscar novos desafios” e “crescer como pessoa”, bem no estilo #gratiluz. Fran tem três domésticas que trabalham em sua casa, mas apenas Ju aceita passar a quarentena com ela (as outras duas são mandadas para casa na condição de ganharem apenas metade do salário). Em nome do sustento da família, Ju, que tem uma filha chamada Drica e a fotografia como hobby, inicia uma dura convivência com Fran, que se revela mais alienada e cruel do que ela poderia supor.
Para alguns esse enredo pode parecer coisa de novela, mas grande parcela da população, vive ou presencia situação muito parecida.
Escrita ao longo de 2020, a tira “Confinada”, criada por Leandro Assis e Triscila Oliveira, conquistou centenas de milhares de leitores nas redes sociais. Ao unir crítica social, drama e humor, a trama é um olhar agudo para o racismo e as desigualdades sociais no Brasil, dando cara, nome e cor a uma realidade que muitos preferem não enxergar. “A ideia surgiu de querer fazer uma série com a mesma premissa do “Os Santos”, só que com personagens que estão vivendo em confinamento, já que era para falar da pandemia. Então, em vez de duas famílias (patrões X empregadas) veio à ideia de focar em duas mulheres”, explica Leandro em papo com GLMRM.
“Para reforçar a ideia de desigualdade social, decidimos que a patroa deveria ser milionária. E como ela deveria estar trabalhando durante o confinamento, surgiu à ideia de ser uma influenciadora. E assim “brincar” com a própria plataforma em que a série foi veiculada, o Instagram. Depois que decidimos que a Fran seria uma influencer, fomos pesquisar algumas. Então ela é resultado de uma mistura de várias influenciadoras digitais”.
A ideia de Assis de ilustrar a desigualdade do país nasceu com “Os Santos”, série de quadrinhos do ilustrador que aborda a desigualdade observando a relação entre patrões e empregadas, para ser uma espécie de resposta à onda de conservadorismo de direita no Brasil. “Eu queria falar de um determinado tipo de eleitor do Bolsonaro. Moradores da zona sul do Rio, gente com dinheiro e horror a pobre. Um pessoal que votou sem constrangimento em um sujeito incompetente, homofóbico, machista, anti-democrático”, pontua.
Poucas obras surgidas durante a pandemia tiveram tanto impacto quanto a série “Confinada”, que revela as engrenagens racistas e classistas da nossa sociedade, mas também apresenta uma geração que luta para retomar o protagonismo da sua história e criar uma nova realidade. “Me surpreendi de ver que muita gente diz que reviu seu modo de agir e de pensar por causa da sete”, conta ele, que também recebeu muitas críticas por conta de seu trabalho. “Críticas construtivas são bem-vindas. Mas há críticas que claramente tentam negar o racismo, o elitismo. Algumas pessoas tentam relativizar certos comportamentos mascarando como críticas”.
Mas aí ele lembra: “O que falta para nossa sociedade ser mais como a personagem de Ju e menos como a de Fran é empatia. Capacidade de se colocar de verdade no lugar do outro. Acho que esse é o primeiro passo”.
Ansioso pelo lançamento do livro, que finalizou a campanha de pré-venda nessa quinta-feira, com lançamento previsto para a primeira semana de novembro, Assis revela estar curioso para saber como as pessoas vão receber a publicação. “Apesar de ter feito a série de uma forma que ela pudesse ser adaptada para o livro, “Confinada” foi feita para ser lida no Instagram. Uma ou duas tiras por semana. A leitura do livro vai ser muito diferente, com todas as tiras juntas. E ainda o material dos perfis da Fran e da Ju. Estou mesmo curioso para receber o retorno”.
Para o futuro de Ju e Fran, ele ainda não sabe se vai ter uma segunda temporada, em livro ou no Instagram. “Agora só consigo pensar em “Os Santos”, que é a série que está no ar. Ainda temos muito chão pela frente, um ano mais ou menos de trabalho. Só depois vou pensar numa próxima da ‘Confinada’”. Mas será que podemos esperar ver as protagonistas de “Confinada” na telona um dia? “Ah… Tenho certeza de que a Fran adoraria”, ele brinca.